Bocage Mendigo
Escrito em 1906 por Júlio Dantas e publicado no Brasil em “A Revista”, em sua edição de julho de 1926. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Em Portugal
os poetas, durante todo o século XVIII, foram socialmente qualquer coisa de
intermediário ao bobo e ao mendigo. Para não morrerem de fome e para não
descerem como o Bento Antônio ou o José Daniel a vender literatura de cordel
pelas ruas, acolhiam-se à proteção das casas fidalgas. De ordinário, no estado
das grandes famílias nobres havia um poeta, — tão naturalmente como havia um
cabeleireiro italiano, um frade alcoviteiro ou uma boba mulata. Eram preferidos
os que cantavam lundus à viola, ou tinham prática de glozar motes em outeiros
de abadessado. Alexandre Antônio de Lima foi o poeta-bobo dos marqueses de
Gouvêa; Caldas Barbosa, o dos condes de Pombeiro. Ambos mulatos, ambos célebres
nas modinhas brasileiras e No lundu chorado, ambos eméritos na complicada arte
de fazer rir o seu semelhante. O talento era então um simples título para se
ser admitido à mesa dos criados nas grandes casas da nobreza. Os poetas
tornavam-se os mais temíveis concorrentes dos franciscanos. Tolentino passou a
vida a pedir esmola, com o hábito de Cristo ao pescoço. Bingre, o Malhão e o
idiota do Saunier apodreciam horas e horas nas antecâmaras fidalgas exercendo
unia verdadeira mendicidade. Dedicar um soneto equivalia a estender o chapéu.
As cartas pedinchonas de muitos poetas no século XVIII desqualificariam hoje o
mais modesto homem de letras. No fundo dessas criaturas apagadas tinham-se
obliterado as mais fundamentais noções de dignidade. Não havia orgulho, quase
não havia caráter. A Nova Arcádia, com o doutor França, com o beneficiado
Caldas, com José Agostinho, com Bingre, era uma corte de bobos da casa
Pombeiro, lisonjeando a condessa, comendo doce de ovos, tocando viola, dizendo
facécias, roçando os calções pelos canapés, humilhando-se, intrigando,
bajulando, alcovitando.
O conde,
pelo luxo fidalgo de ter uma Academia em casa, dava esmola e mesa aquela
assentada de Menalo, cujo distintivo simbólico era, contraditoriamente, um
lírio de prata impoluto. O Almanach das
Musas ficou como documento reles das “quartas-feiras de Lereno”. Poetas que
eram príncipes pelo talento, mendigavam como pedintes de portaria. E nem uma
revolta, nem um repelão de dignidade, nem uma reação de orgulho: absolutamente
nada. Foi preciso que aparecesse a figura pálida curvada, raquítica de Bocage,
para surgir com ela a primeira revolta e o primeiro protesto. É certo que
Bocage mendigou lambem, que também pediu esmola para não morrer de fome; mas,
honra lhe seja, —rebelou-se e protestou.
Há quem
duvide ainda da grandeza moral do primeiro dos nossos poetas setecentistas. Há
quem lhe não perdoe vícios e defeitos, isolando-o da sociedade a que pertenceu
para o encarar sob o falso critério da moral de hoje. Ora os grandes homens são
produtos do seu meio e da sua época. É necessário conhecer-se a sociedade do
fim do século XVIII para avaliar Bocage em toda a sua estatura moral. É
indispensável compreender-se a que supremo abandalhamento, a que situação de
subserviência e de miséria tinha chegado o homem de letras sob a intendência de
Manique, para que a rebelião e o protesto desse falido glorioso surjam em toda
a sua significação e em todo o seu valor. No momento histórico em que
desgraçadamente viveu, a bravura de orgulho, a selvageria de independência, de
Bocage são a afirmação irrecusável dum grande e sólido caráter. Evidentemente,
ser-lhe-ia fácil ter triunfado na vida, tanto quanto entre nós, em 1790, podia
triunfar um poeta. Como todos os outros bobos e mendigos seus confrades, podia
encostar-se aos Mecenas que o reclamavam, cocar a casaca em espaldares de
damasco, trazer o estômago quente e a algibeira cheia. Bastava transigir,
amoldar-se, adaptar-se. Em vez de andar embrulhado no seu velho capote de
baetão azul, a arrastar pelas tabernas a sua independência e os seus sapatos
rotos, a sua miséria de alcoólico e o seu orgulho de príncipe, podia ter
explorado o meio em que vivia, ter sido como os outros, como todos, devoto e
bandalho, parasita e adulador, bobo e alcoviteiro. Mas não. Entre Bocage e a
sociedade que o rodeava estabeleceu-se desde logo uma essencial e profunda
irredutibilidade. Deu sempre um pontapé na fortuna, quando era preciso
comprá-la ao preço duma transigência.
Era por
temperamento, por caráter, por instinto, uma criatura livre, azeda, combativa e
revoltada. Levado ao Paço, de coche, suntuosamente, para improvisar por ocasião
do nascimento da infanta Maria Tereza podendo conseguir a proteção do príncipe,
a simpatia da corte, infiltrar-se, meter-se, insinuar-se, triunfar, — Bocage
afasta-se do Paço. Apresentado a Beckford, quando o riquíssimo inglês, com
Verdeuil e o conde de Lucatelli vinham de visitar a Sé de Lisboa, podendo
valer-se da sua amizade evidente, aproveitar o entusiasmo da sua admiração,
colocar-se, impor-se, — Bocage afasta-se de Beckford. Devendo utilizar a estima
da condessa de Oyenhausen, sua admiradora até à ternura, protetora desvelada de
sua irmã Maria Francisca, lisonjeá-la, frequentá-la, agradar-lhe, — Bocage
afasta-se da condessa de Oyenhausen. Um dia, o erudito Thomé Barbosa hospeda-o,
mata-lhe a fome, fá-lo sentar à sua mesa, ler na biblioteca, servir pelos seus
criados, trata-o como a um filho, e quando lhe ia dar um começo de vida, como
seu secretário, como seu colaborador, como seu amigo, — Bocage afasta-se de
Tomé Barbosa. Por último, fazendo parte da Nova Arcádia, admirado com
sinceridade pelo conde de Pombeiro, regedor das Justiças do reino, sendo-lhe
fácil conseguir, como o mulato Caldas, um lugar na Casa da Suplicação, podendo
subir, triunfar, vencer, colocar-se, — Bocage, de súbito, sem motivo, sem causa
aparente, mete a ridículo o conde, as quartas-feiras de Lereno, o chá, os
versos, os consócios, o ex-frade, o Mecenas, inimiza-se, insulta, achincalha, e
declarado incapaz de ser recebido numa sala, move contra si a justiça, o
intendente, a Academia, as “sérias”, a nobreza, — e ao mesmo tempo temido e
detestado, admirado, e perseguido, liquida-se, perde-se, isola-se, mata-se. Se
compararmos este amontoado de rebeliões, de isenções heroicas, com a
subserviência de bandalhos dos poetas da segunda metade do século XVIII,
compreendemos então que valor incalculável teve o protesto de Bocage, —
protesto único, isolado, digno, honesto, no meio duma literatura untuosa de
frades, de bobos, de hipócritas e de pedintes. Entretanto, pediu esmola, —
dir-se-á. Não há dúvida. Pediu-a, quando tinha fome. Mendigou muitas vezes um
cruzado novo para o jantar da irmã. Recorreu alguns dias ao caldo e ao albergue
dos frades da Boa-Hora. Mendigou, é certo, mas revoltava-se com toda a sua
alma, com toda a sua indignação, com todo o seu orgulho, contra a necessidade
de mendigar. A diferença entre Bocage pedinte e os seus confrades do século
XVIII estava positivamente nisso. Os poetas mendigos de 1780 cultivavam a
esmola, parasitavam, beijavam untuosamente, hipocritamente, a fivela do sapato
do benfeitor. Era um hábito, era uma abdicação, era uma vergonha. Bocage, pelo
contrário: mendigava, — mas protestava. Foi pedinte, não por costume, não por
índole, não por baixeza, — mas por necessidade orgânica, inadiável, no último
extremo, na última miséria, protestando sempre, rebelando-se sempre. Era a
revolta natural do obreiro contra a sociedade que desvaloriza a sua obra. Como
havia ele de comer, se vendia os livros a Tadeu Judas por três moedas? Como
havia de vestir-se com a miséria que lhe dava por mês frei José Veloso?
Constrangido pela fome, recorria à mendicidade, não como unia dádiva vexante, —
mas como uma indenização. Não recebia a esmola com humildade; aceitava-a com
altivez. Como Diógenes, não pedia; reclamava o que lhe era devido. Daí, a
ausência lógica, em Bocage, de todo o sentimento de gratidão. Acusavam-no de
ingrato todos os seus protetores, costumados à genuflexão hipócrita do
reconhecimento, — José de Seabra e a marquesa de Alorna, Thomé Barbosa é frei
Joaquim de Foyos. Bocage nunca soube agradecer, — como nunca soube lisonjear.
Era uma criatura bárbara, selvagem, primitiva, independente. Ao passo que
Tolentino, com a fita de Cristo sobre a vestia de seda preta, dava lições de
subserviência e de untuosidade aos franciscanos profissionais, — Bocage
estendia a mão com a altivez de quem reclamava uma dívida. Os poetas das
luminárias e dos outeiros pediam como bandalhos, estendendo o tricorne: Bocage,
pelo contrário, mendigava como um grande de Espanha, — de chapéu na cabeça. Por
isso, a nossa saudação não deve ser apenas dirigida ao mais brilhante dos
sonetistas que teve o século XVIII, — mas também, e acima de tudo, ao mais
fidalgo dos mendigos que tem tido Portugal!
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