Escrito em 1924 por Afrânio Peixoto e publicado na revista "América Brasileira, em sua edição de outubro de 1924. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
“Empurrar a porta aberta", de uma certeza, que há três séculos e meio se discute..., quando a evidência nos está, desde muito, saltando aos olhos seria obra descuriosa, se tratar de novo o assunto não nos permitisse estudar as razões “artísticas" e "éticas", de duas ou três, das duas grandes injustiças de Os Lusíadas... São os casos de Vasco da Gama, de Bartolomeu Dias e de Fernão de Magalhães.
“Empurrar a porta aberta", de uma certeza, que há três séculos e meio se discute..., quando a evidência nos está, desde muito, saltando aos olhos seria obra descuriosa, se tratar de novo o assunto não nos permitisse estudar as razões “artísticas" e "éticas", de duas ou três, das duas grandes injustiças de Os Lusíadas... São os casos de Vasco da Gama, de Bartolomeu Dias e de Fernão de Magalhães.
Começam os
Portugueses sua vocação marítima. A fé levá-los-ia à terra de Infiéis,
perseguidos até aí, depois de expelidos da Península:
E assi não tendo a
quem vencer na terra
Vai cometer as
ondas Oceano. (II 48.)
É D. João I:
Este é o primeiro rei que se desterra. (II
48).
Celta é
tomada em 1415; o infante D. Henrique armado cavalheiro na Mesquita moura,
transformada em Igreja cristã, recebe aí a iniciação das notícias e fábulas, de
terras a descobrir, na costa da África, caminho talvez das Índias, e além
dessa, da África ocidental, para as bandas da Etiópia, do lendário Preste João
das índias, cuja piedade seria arrimo das pretensões possíveis dos Portugueses:
a Fé de D. João I teria duas filhas heroicas, na Ambição e na Curiosidade do
Infante de Sagres.
Porto Santo
foi descoberto em 1418; a ilha da Madeira em 1419. Em 1432, completava-se a
descoberta do arquipélago dos Açores. Em 1454, dobrava-se o Cabo Bojador. A
malograda expedição de Tanger, em 1437, se arrefece o ardor militar de D.
Henrique, não diminuiu em nada suas aspirações marítimas. Para Diane!
Em 1443, é
vingado o Cabo Branco. O Senegal alcançado em 45; em 47 o Rio Grande; em 48 a
Serra Leoa. Em 56 é a vez das ilhas de Cabo Verde; em 62 é a Costa de Guiné.
Quando, em 60, morre o infante, a impulsão para o ainda desconhecido seria
irreprimível, pois 1.700 milhas geográficas, de Cabo Não, ao Cabo Mesurado,
ficavam reveladas ao mundo. O sonho do caminho marítimo das índias
realizava-se...
Em 71 é a
Costa da Mina; em 84 é o Zaire ou Congo; em 1486, finalmente, Bartolomeu Dias,
com duas pequenas caravelas, alcança o Oriente, sem o saber, em meio de uma
tempestade, e, só tornado, descobre que passara a meta antártica do continente
Africano que ele chamou o Cabo das Tormentas, e que Dom João II, que -via mais
longe, na aspiração, mudou em Cabo da Boa Esperança...
Prosseguia o
sonho Português e este era o seu momento capital... Agora, achado o caminho,
era só alcançar a índia.
Camões que
não esquece D. João I, como vimos, rende a sua homenagem a D. Henrique: “a fama
nos mares o pubrique por seu descobridor" (VIII 39), tendo já falado das
"novas ilhas", "e os novos ares que o generoso Henrique
descobriu". (V. 4) De Bartolomeu Dias, porém, nem mesmo o nome, nem a
façanha. Apenas "a meta austrina da esperança boa" (IX 16), uma
metáfora para designar o limite sul da Boa Esperança, personificado
anteriormente no Adamastor,
Eu sou aquele
oculto e grande cabo
A quem chamais nós
outros Tormentório (V. 50.)
"Vós outros", os Portugueses, como são eles a quem se refere, na ameaça:
Aqui, espero tomar
se não me engano
De quem me
descobriu suma vingança (V.44)
E ainda quando começam as novas terras descobertas pelo Gama, além das que ficariam atrás e foram o limite de Bartolomeu Dias, diz o Poeta, pelo navegador:
Aquele ilhéu
deixamos onde veio
Outra armada
primeira que buscava
O Tormentório Caba,
e descoberto
Naquele ilhéu fez
seu limite certo (V. 65.)
"Outra armada anterior"... nós teríamos dito: a de Bartolomeu Dias. Com tendência a individualizar o esforço coletivo, Camões não o fez, por um propósito não dissimulado em todo o seu poema, em que celebra aos Lusitanos ou Lusíadas, de preferência, a alguns deles, nominais heróis dos feitos de todo um povo. Mas, não o fez aqui, principalmente, pela mesma razão que tendo de cantar um grande feito marítimo, que havia de ser o episódio central de uma epopéia nacional, seria diminuir o interesse deste, comemorar individualmente os outros heróis marítimos, que o precederam e lhe preparar a glória.
Por isso
Gilianes, Affonso Gonçalves, Nuno Tristão, Álvaro Fernandes, Pedro de Cintra,
Sueiro da Costa, Azambuja, Diogo Cão, Aveiro, Bartolomeu Dias... e outra e
outros, não são mencionados, sequer sem que a injustiça se faça, pois que estão
incluídos nesses Lusíadas, que se cantam desde os primeiros versos da epopeia.
Representando em Adamastor o maior perigo natural da travessia, aberta a porta
do Oriente com a transposição desse cabo de Boa Esperança, ficaria ao Gama
apenas o que ficou — acabar de realizar o sonho Português, de chegar, as
Índias, partidos de Lisboa, os Lusíadas. Aliás, isso mesmo não dissimularia o
Poeta, reduzindo o Gama às proporções justas da História.
A injustiça
relativa a Bartolomeu Dias parece-me, pois, obrigada por um recurso de arte, o
de não diminuir o feito central do poema, o pretexto mesmo da epopeia, que essa
celebraria apenas, e tudo, os Lusíadas.
O caso de
Fernão de Magalhães não parece apenas isto, mas o de uma severidade patriótica:
por omissão, Bartolomeu Dias; por demasiado rigor
O Magalhães, no
feito com verdade
Português, porem
não na lealdade (X. 140.)
Camões compreendeu que à glória Portuguesa não seria insensível dar a volta à terra, completando o período do mundo, ainda que não fosse mais que por este verso imortal:
E se mais mundo houvera lá chegara (IX
14.)
E
compreendeu tanto, que não recuou diante de um anacronismo... Júpiter invocado
por Vênus, durante a viagem do Gama, em 1497, refere-se ao estreito de
Magalhães, só descoberto em 1520:
Que nunca se verá
tão forte peito,
Do Gangético mar ao
Gaditano,
Nem das Boreais
ondas ao Estreito
Que mostrou o
agravado Lusitano (11 55.)
Retenha-se esse "mostrou", passado, e esse "agravado Lusitano", que é a mesma linguagem de Tétis, quando, desta vez, profetisa:
Mas é também razão
que, no Ponente,
Dum Lusitano um
feito inda vejais,
Que, de seu Rei
mostrando-se agravado,
Caminho há de fazer
nunca cuidado. (X 138)
Que a façanha era bem digna de Lusíadas está na insistência:
Ao longo desta
costa que tereis
(Isto é, desta costa do vossa do Brasil, que será, depois
de 1500)
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães... (X
140)
E mais avante o Estreito que se arreia
C’o nome dele
agora, o qual caminha
Pera outro mar e
terra que fica onde
Com suas frias asas
o Austro a esconde (X 141)
(Este "agora" de Tétis, é anacrônico, como o "mostrou" de Júpiter)
Depois,
outro sinal dessa importância, é que o Poeta não esquece nunca de nomear ao
Magalhães, devidamente de "Lusitano", e até com a justificativa da
pecha que lhe imputa: "agravado Lusitano", e por duas vezes (II 55 e
XI 38)
É o epíteto
de João de Barros. "agravado del-Rei (Décadas III, liv. C. cap. VIII) e
virá a ser Gaspar Corrêa, nas Lendas da índia (t. II p. II). Resumindo os autos
do processo.... "o qual Fernão de Magalhães indo ao reino alegando a
el-rei seus serviços e pedindo em satisfação que lhe acrescentasse cem réis em
sua moradia por mês, o que lhe el-rei denegou, por lhe não cair em graça, ou
porque assim estava permitido que havia de ser; Fernão de Magalhães disto
agravado, porque muito pediu a el-rei e ele o não quis fazer, lhe pediu licença
para ir viver com quem lhe fizesse mercê, em que alcançasse mais dita que com
ele. El-rei lhe disse que fizesse o que quisesse, pelo que lhe quis beijar a
mão, que lhe El-rei não quis dar".
Injustiça e
severidade que iriam dar a Castela a glória da circunavegação do globo. A
Camões, tais deslizes do poder real não deviam ser estranhos para não falar das
próprias injustiças que sofrera, aquelas que eram sorte geral:
Culpa de Reis, que
às vezes a privados
Dão mais que a mil
que esforço e saber tenham. (VIII. 41.)
Como, apesar disso, de reconhecer a qualidade de "agravado", exaltando a proeza, diz que o herói era, "no feito, com verdade Português", "porém, não na lealdade"?
Evidentemente,
uma injustiça. É que, para Camões, acima dos agravos dos reis injustos, estava
a Pátria, sem culpa, e que se deve servir sem reserva e sem infidelidade, ainda
a provocada: o homem não terá nunca razões contra o patriota; a deslealdade
contra Portugal, implícita num serviço, e glorioso, a Castela. Foi causa da
severidade.
Injustiça
oposta seria atribuir o Poeta a Vasco da Gama toda a glória portuguesa das
navegações, por havê-las completado: o que evidentemente é sem razão. Como a
Odisseia, a Eneida, o Orlando Furioso, a Messiada, à Henriada, o poema poderá
ter um endereço pessoal; poderá ter o do fim a atingir, perdido ou recuperado,
ou evocado, como a Ilíada, a Parsália, a Jerusalém libertada, a Divina Comédia,
o Paraíso perdido, a Lenda dos séculos: o poema de Camões poderia chamar-se
"Vasco da Gama", ou "As índias". Não, — chama-se,
inconfundivelmente, — "Os Lusíadas".
Não
precisaria de mais, se não fosso próprio do caráter humano a contradição, até à
verdade. Não é de um camoniano e dos maiores, de Epifânio Dias, isto que clama
à razão: "Negar que Vasco da Gama é o herói dos Lusíadas e falar de um
"herói coletivo" é fingir desconhecer o valor técnico do termo herói,
e cerrar os olhos à evidência"!
Entretanto,
na página anterior, que o seu mau humor contrariante, até de si mesmo,
inspiraria a este sábio, fugira, a esta evidência, repetindo o que vinha sendo
visto de longe: "Pondo em efeito o intento de cantar:
O peito ilustre
Lusitano,
A quem Netuno e
Marte obedeceram.
Felizmente, o que esse lusíada contraditório vê mal, outra grande autoridade, e de estrangeiro, não vacila: "O poema dos Lusíadas contém, de fato, diz D. Carolina Michaelis, a história poetizada das obras gloriosas do povo inteiro, tanto por terra como por mar. A confirmar esta definição temos declarações formais do poeta. Logo no introito: "As armas e os barões" (I, 1). Barões no plural. E não Arma virumque cano. Depois: "Que eu canto o peito ilustre lusitano (I 3).. Leitores discretos assim o entenderam em todas as idades. O censor da primeira impressão, Padre Bartolomeu Ferreira fala em dez cantos "dos valorosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa!"
Cita a
insigne camonista outros documentos. Para a unanimidade não precisaríamos mais
que ver esse "herói coletivo". Os Lusíadas apontados como a razão do
poema por um Souza Botelho, na monumental edição de 1817, e por um Whielm
Storck, nesse outro monumento a "Vida de Camões", nos nossos dias...
Camões fez
entretanto tudo para ser entendido. O endereço patriótico, tradicional, e o
profético, nacional, antes que dinástico ou pessoal, mil e uma vezes está
apontado no poema. Quando a Vasco da Gama, bem que seja imensa a honra que lhe
confere, pessoalmente, há sombras no esboço de sua figura, como se o Poeta
tivesse querido, e quis, marcar que ele ou outro lusíada, contanto que fosse
lusíada, seria capaz de levar a cabo a empresa irresistível de conduzir os
Portugueses às Índias.
O final do
Canto V no-lo revela, com meridiana clareza. Sim "estas navegações que o
mundo canta", são inferiores, certo, a esta", "que o céu e a
terra, espanta" (V 94); sim, mas ao invés, os outros tem tido reis e
heróis, que sabem prezar "a quem os faz cantando gloriosos" (V. 82)...
Os nossos não, duros e robustos apenas, não tem mais fama, porque não prezam as
artes, e sem Virgílios e Homeros, não há Enéas e Aquiles (V. 98). Assim também
seria, e o Gama seria esquecido, se não fora o amor da pátria que fez a Camões
cantar:
Às Musas agradeça o
nosso Gama
O muito amor da
pátria, que as obriga
A dar aos seus, na
lira, nome e fama
De toda a ilustre e
bélica fadiga (V. 99.)
Pois que ele, nem os seus o merecem tanto, incapazes de estimarem essa glória:
Que ele, nem quem
na estirpe seu se chama,
Calíope não tem por
tão amiga
Nem as filhas do
Tejo, que deixassem
As telas d'ouro
fino e que o cantassem. (V 99)
Mas, não importa:
Porque o amor
fraterno e puro gosto
De dar a todo o
Lusitano feito
Seu louvor, é
somente o prosuposto
Das Tágides gentis,
e seu respeito. (V. 100.)
"É somente" e na boca dele próprio, o Gama, define o Poeta:
Que ele não era
mais que um deligente
Descobridor das
terras do Oriente. (VIII- 59.)
Injustiças, para menos ou para mais; a Bartolomeu Dias, a Fernão de Magalhães, a Vasco da Gama; é culpa somenos, pois se trata apenas da Pátria, que isto é tudo: "é somente" o que existe para um lusíada, tal qual Camões, ainda à revelia dela, com a ingratidão dela, não importa:
Amor da pátria, não
movido
De prêmio vil, mas
alto e quase eterno (1.10.)
Essa nobreza do Poeta tem tal sublimidade, que se duvidarmos, blasfemamente, que o herói cantado nos Os Lusíadas como já o fizeram, com outra intenção, — é o Povo Português, só um outro endereço condigno haveríamos de adotar, tomando o Poeta pelo Poema... "Lusíada"... de Camões.
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