5/24/2017

Camilo Castelo Branco: "Epitáfio do lirismo" (Ensaio)


Os contrafatores brasileiros da produção literária de Portugal

Escrito em 1879 por Camilo Castelo Branco. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)


A poesia sentimental acabou. Devia naturalmente acabar assim que o amor se julgou supérfluo no casamento do vate. Eram, noutro tempo, os poetas uns amadores vitalícios que cantavam e amavam todas as meninas de uma ou duas freguesias; mas não casavam com elas. Enfeitavam-nas de flores para maridos maganões, que sorriam deles com uma piedade quase benévola e os tratavam, com excessos de delicadeza, até ao requinte de os porem na rua com poucas bengaladas. Os maridos, às vezes, quando os poetas bisavam os seus cantares, faziam no espinhaço das esposas o compasso. Isto soube-se; a desordem da família constou cá fora, e o lirismo começou a cair como imoral. Caído o lirismo, o poeta foi compreendido nas regras do gênero humano. Entrou a casar sem versos. Em vez de perguntar à vizinha quantas estrelas tinha prediletas no azul, indagava quantos prédios tinha o papá: e, se era órfã e herdeira, não lhe azedava saudades do progenitor com necrologias: ia ao cartório do escrivão do inventário examinar o formal de partilhas; e, recolhido ao silêncio do seu gabinete com os apontamentos, em vez de:
Mulher amada, que o meu peito abrasas,
Escrevia:
Por metade do prédio da Rua das Congostas... 2750$00
Acabou assim a poesia amorosa. Não foi Charles Baudelaire, nem a devassidão dissolvente do Segundo Império, nem os progressos da etnografia e da química, como pretende o Sr. Guerra Junqueiro. A poesia sentimental acabou porque poetas que exercitem a arte por amor da arte já não há nenhum, nem tampouco há mulheres que sintam no peito o vácuo dos sonetos; e, se acontece ainda alguma experimentar vágados íntimos e palpitações estranhas – coisas que outrora se chamavam
Vago aspirar de virginais enlevos,
Come uma sanduíche, um bife de grelha, e fica melhor. Elas, quando saíram do colégio, não traziam geografia e ânsias de ideal: traziam clorose, e fome.
Desfibradas as cordas da citara, era, não obstante, necessário e fatal que alguém cantasse. O gênio é rebelde: se o espezinham, ressalta. Alguns poetas, quais vasos de porcelana frágil, não puderam conter as raízes da flor do sentimento, que se lhes radicaram profundas e largas até os estourar em poemas, nem românticos nem clássicos. Semelhantes coisas são uns extratos sulfídricos necessários ao riso moderno como o estrume à seiva das finas flores aromáticas. Como não podiam cantar com aplauso a violeta roxa, cantam a alporca rubra.
Que eu, a falar verdade, não creio em Goethe. Ele diz que não há literatura clássica nem romântica: há literatura sã e literatura podre. E renovar o feio e a podridão – acrescenta Philarète Chasles –, o falso e o trivial, o frenesi e a obscenidade, o imenso e o exagerado, pela enfermidade e pela demência, é facílima empresa.
Digam lá o que disserem os oráculos. A literatura não é Aristóteles, nem Horácio, nem Boileau, nem Goethe. A poesia, essência fétida ou aromática da literatura, é a expressão de uma época. O feio é o belo, e o belo é o feio. Fair is foul, and foul is fair, diz Shakespeare. Ontem cantava-se a sociedade dispéptica em uso de fígados de bacalhau; hoje canta-se a sociedade podre em uso do proto-iodeto de mercúrio.
Se a tranquilidade pública perdeu ou ganhou com o desuso do sentimentalismo é outra questão. Creio que a sociedade lucrou em peso e perdeu em feitio. A mulher, amada do poeta e conhecida como tal, tinha certo prestígio e uns aromas particulares das grinaldas de rimas que lhe ajardinavam o salão, a alcova, a igreja, o teatro, o passeio, a praia e os sonhos – sobretudo os sonhos, quando não procediam das ceias copiosas. Estes aromas adelgaçavam-lhe o espírito; elas viam as coisas da vida a uma luz elétrica; tinham a palidez ebúrnea das Ofélias cuidadosas dos seus doidos contrafeitos, às vezes sandeus legítimos; sabiam traduzir Telêmaco e os segredos da Lua; mas não conheciam o processo de fazer bons caldos e marmeladas. Depois, as que entraram pela infiltração do matrimônio na substância do poeta, caíram em si, pasmadas e cépticas, quando viram os maridos preferirem a uma meditação de Lamartine um prato de esparregado. Eles é que as despoetizaram, os maridos, pedindo-lhes caldo substancial em vez de um
riso
liso,
Como diz a trova.

E as esposas, com o espírito engordurado da gula dos maridos, ensinam às filhas o desprezo da velha poesia; e, quando as colhem de assalto embebidas no êxtase dum moço magro e macilento, dizem-lhes: “Vosso pai também assim era delgado e pálido antes de casar; mas depois, com os caldos fortes, engordou.” Estas palavras são o epitáfio do lirismo escrito no seio da geração nova. Toda a menina que prevê a poesia flutuante do esposo consolidada em tecido celular prefere as formas finas e flexíveis de um marido sem exame de instrução primária.
Tudo o que nos alegre, poema ou tolice, é um raio da misericórdia divina. Das poesias deste Cancioneiro pode dizer-se o que o conde de Chevigné dizia dos seus Contes Remois:
J’ai, pour guérir, des recettes certaines;
Chaque ordonnance est un joyeux récit.
On souffre moins du moment que l’on rit.
Je vous apporte un remède aux migraines.

“Que há de fazer a gente senão alegrar-se?” – pergunta Hamlet: Whast should a man do, but to merry?
A seriedade é uma doença, e o mais sério dos animais é o burro. Ninguém lhe tira, nem com afagos nem com a chibata, aquele semblante caído de mágoas recônditas que o ralam no seu peito. Há nele a linha, o perfil do sábio refugado no concurso ao magistério, do candidato à Câmara Baixa bigodeado pela perfídia de eleitores que, saturados de genebra e Carta Constitucional, desde a taberna até à urna, fermentaram a crisálida de consciências novas. O burro é assim triste por fora; mas é feliz por dentro, e riria dos seus homônimos se pudesse igualá-los na faculdade de rir, que é exclusiva do homem e da hiena, a qual ri com umas exultações ferozes tão autênticas como as lágrimas insidiosas do crocodilo.
Nestes ramalhetes de poesias não há flores para jarras de altares nem de jazigos. Umas são a facécia antiga portuguesa, sinceramente lorpa e boa; outras são a ironia moderna, o riso amargo da decadência que espuma fel pelos lábios lívidos. On ne rit plus aujourd’hui, on ricane (diz Léon la Forêt). Si l’on fait parfois de l’esprit, c’est de l’esprit facile, au dépens du prochain. On ne rit plus que pour mordre, et le plus grand poète de notre triste temps pourrait lui appliquer ce vers, où il ne voit dans le rire qu’une menace:
D’une bouche qui rit on voit toutes les dents.
O leitor tem entre mãos o livro mais consolador que se lhe poderia oferecer nos mais triste período das artes, das letras e das indústrias honestas em Portugal. Quando se reformar o Curso Superior de Letras com todas as disciplinas indicadas urgentemente pelas necessidades da ciência moderna, e se criar uma cadeira de Poesia patusca, este Cancioneiro será a seleta do curso.
E o aluno, então, a ímpar de ontologia e antropologia, como se comesse o indigesto Sr. Teófilo e mais dois marmelos crus, irá à aula dos saudáveis risos tonizar a arca do peito de ar bem oxigenado de chalaças luso-brasileiras.
Psychologie sociale, obra posthuma.
São Miguel de Seide, 1 de Janeiro de 1879.
OS CONTRAFATORES BRASILEIROS
DA PRODUÇÃO LITERÁRIA DE PORTUGAL
POR: CAMILO CASTELLO BRANCO
PUBLICADO NO BRASIL EM 1906

Combatendo as ideias que Alexandre Herculano pôs, numa carta a Garrett, contra o direito de propriedade literária — a propósito de uma convenção de Portugal com a França, em prejuízo das edições belgas — Camilo Castello Branco assenta essencialmente o seu poderoso arrazoado sobre o fato patético da contrafação das obras portuguesas pelos editores brasileiros. O grande escritor, que nem sempre, ingratamente, foi nosso amigo, como aliás quereria a retórica da fraternidade luso-brasileira, endireita as suas admiráveis insolências contra o nosso caráter nacional, que ele, graças ao infortúnio dos seus nervos, edifica na consciência dos editores brasileiros, que só tinham e só têm de brasileiros o direito de impunidade — na prática das suas bandalheiras não só em relação a livros estrangeiros como aos mesmos nacionais.
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As ideias de Alexandre Herculano agradaram infinitamente no Império brasileiro, quero dizer, adivinharam-nas com rara intuição os contrafatores do Brasil, porque eu não imagino que eles, antes de nos reproduzirem os livros, se dobrassem, meditabundos, à lâmpada noturna, sobre os Opúsculos do célebre historiador, assim como nunca me constou que lá os seus salteadores da Ilha da Caqueirada lessem com espírito hostil as invectivas de Proudhou contra a propriedade quando a estabeleciam nas algibeiras dos honrados burgueses da rua do Ouvidor.
Também não posso acusar os contrafatores de nos quererem infligir, roubando-nos, o castigo alvitrado pelo Mestre, que votou pela dieta dos discípulos logo que eles não lucubrassem as suas vigílias em livros de uma conspicuidade assaz untuosa. Não.
Os livreiros do Brasil operam as suas contrafações movidos de um pensamento chão, correntio e singelo: roubar-nos. Eles não desejam definitivamente que os escritores portugueses desanimem e vão para o Brasil alistar-se em maltas que medrem no latrocínio; pelo contrário, ambicionam que a pobreza nos agrilhoe e force a escrever muito, para que eles, como pregoeiros da nossa fecundidade, possam continuar a roubar-nos e encher-nos de edições e glórias transatlânticas. A glória! que mais queremos nós? Alexandre Herculano aconselha com eloquência comovente os escritores a darem-se por pagos com a consideração, respeitos e distinções com que a sociedade trata o homem que perante o seu tribunal deu provas indubitáveis de talento ou de gênio; e ao mesmo tempo nos vai contando, no mesmo escrito e quase na mesma página, que o gênio da ciência e da consciência morre de fome, e que Luiz de Camões morrera entre as angústias da miséria e do abandono na pobre enxerga de um hospital — como se isto fosse verdade.
Como quer que seja, os contrafatores é que não escorregam nestas incoerências.
Com uma seriedade harmônica, sistemática e impávida, não só reproduzem a milhares os livros que em Portugal ainda encontram editores ousados e temerários; mas até com um desvergonhamento que deslumbra o nítido descaro da ladroeira, contrafizeraram um livro que não se vendeu em Portugal, e que fora enviado ao Rio de Janeiro com uma venerável ressalva que os piratas não respeitaram. Traduziu o sr. d. Luiz I, como é notório e até glorioso, o Hamlet de Shakespeare. Distribuiu s. m. os exemplares da sua versão pelos monarcas, pelas bibliotecas públicas, pelos diplomatas, pelos seus amigos e por escritores notáveis. Logo que escrevi escritores notáveis seria pleonasmo acrescentar que foi excluído; mas não me despeço de deleitar-me na leitura desta versão del-rei, quando eu puder haver um dos exemplares contrafeitos no Rio de Janeiro, e vendido a irrisórios pregões no peristilo dos teatros. Apregoavam os gaiatos subalternos a tradução do Hameleto, feita por d. Luiz, rei dos ilhéus. E aquelas gentes variegadas de beiços grossos e rubros, olhares mortiços do quebranto langoroso da mulataria, davam casquinadas de riso, compravam o livro com a boçal presunção de o perceberem, e associavam-se em alegres biltres à proterva satisfação do contrafator. Vai nisto tudo uma porcaria infame, o cachet de um país de mercantilagem pelintra.
Que fazer? É o título moderno de um romance do russiano Tchenischefski, em que se dá o relevo de insanáveis aleijões da sua sociedade. Que fazer contra o crime de roubo perpetrado pelos contrafatores do Brasil aos escritores e editores portugueses? A ideia mais óbvia — na impossibilidade do tribunal e da grilheta — é a celebração de um tratado de propriedade literária com o Brasil.
Quando esteve em Portugal, pela primeira vez, o sr. d. Pedro II, os literatos e editores de Lisboa projetaram ir em corporação pedir ao doutíssimo Imperador que preponderasse com a sua benigna e poderosa e eficacíssima influência na celebração do tratado. Esperavam os suplicantes que sua majestade imperial aproveitaria a ocasião para fazer enforcar ou pelo menos suspender temporariamente os ladrões que lhe manchavam o Império e passeavam triunfalmente os seus chapéus do Chile era Petrópolis e no Corcovado. Constando, porém, que Alexandre Herculano era avesso ao requerimento dos espoliados, e que o Imperador abundava nas ideias do seu ilustre amigo, em matéria de propriedade, a junta dos queixosos desanimou e debandou; parte foi jantar à taberna inglesa, outros ao Penim e os verdadeiramente sábios, segundo o funéreo treno do Mestre, morreriam de fome.
Conta o sr. Ramalho Ortigão, no seu estilo de conceituosa graça, que j à foi conviva em um jantar no Hotel Universal, onde se congregaram os escritores para comer o boi e discutir o espírito da propriedade literária. Como o boi timpanizou, ao que parece, a glândula depositária da ideia em discussão, nada discutiram; e o insigne crítico, roubado em Pernambuco, pede que se torne a jantar a fim de se obter cora o Brasil um tratado de propriedade literária.
Eu não confio nada no segundo jantar no Hotel Universal. Discussões sérias são incompatíveis com digestões pesadas. De mais a mais, suas excelências os escritores, com os ventres repletos, desbotariam a cor local do assunto, sendo o seu intuito reclamarem como escritores famintos.
A mim quer parecer que incumbe ao governo atender a uma necessidade que não carece de ser discutida e formulada em assembleias. Alexandre Herculano alvitra que seja o Estado quem dê os meios de subsistência aos escritores prejudicados ou não prejudicados pelas contrafações. Se pois o governo português não quer ou não pôde celebrar com o governo brasileiro uma lei que caucione os meus direitos à remuneração do trabalho, e os direitos sagrados dos editores a quem vendo os meus livros, diga-me a que repartição hei de ir mensalmente receber a pensão indenizadora do roubo irremediável. Em geral, neste país, há um só escritor que sem prejuízo sensível na algibeira pôde ser reproduzido no Brasil: é o sr. d. Luiz I. Felicito o augusto literato; e peço-lhe curvadamente que influa no seu governo sentimentos benignos a favor dos seus colegas pobres e súditos humildes.

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