Camilo Castelo Branco
Escrito Fialho de Almeida. Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica de Iba Mendes (2017)
Na data de amanhã, em 1890, pôs, como sabem, termo à vida, com uma bala no ouvido, o trabalhador glorioso que foi Camilo Castelo Branco.
Poucos meses
antes, quando o artista foi buscar a Lisboa o desengano da ciência à sua cegueira,
Fialho o recebeu com o artigo que agora transcrevemos, dando-lhe o propósito de
uma homenagem comemorativa à memória do grande escritor.
Está em
Lisboa há quinze dias o ilustre grande homem, e nenhum sinal de festa, nenhum
movimento efusivo e unânime da opinião e da imprensa ainda foram acordar por
debaixo das janelas da casa em que ele habita, rastro sequer de ovação que
traia o aplauso dum povo culto, duma geração literária ou duma simples cotterie, pelo espírito torturado e
imortal de quem não é só um cultor das letras e das artes, um grande e férreo
chefe, sem discípulos nem soldados — mas uma literatura completa, inconfundível
e extraordinária:
Nem os
simples estudantes dos cursos superiores, prestes sempre, pela espontânea
efervescência do seu entusiasmo, a fazerem justiça à misantropia destes grandes
forçados da arte, como Camilo; nem os homens de letras, muitos dos quais há uns
poucos de anos chouteiam na esteira da língua que ele fez, e da poderosa ironia
que ele cinzelou; nem os admiradores, nem os íntimos, souberam na hora da
velhice, quando o mártir escabuja nas atrocíssimas angústias da cegueira e da
nevrose, refrigerar-lhe a alma trucidada, erguer-lhe a vencida coragem, com uma
manifestação coletiva de apreço que o fizesse-, voltar à aldeia, enternecido ao
menos por este grande uníssono de justiça.
E, todavia,
escritor algum português melhor bem-mereceu ainda das nossas homenagens, pela
veemência da sua obra, pelo travor mordente da sua ironia e da sua arte, pelo
teclada de riso e lágrimas que há ferido, pela naturalização eminentemente
portuguesa do seu gênio, e impressiva lucidez da sua afetividade. Ao lado deste
homem, Deus me perdoe, mas cuido que a trilogia romântica empalidece.
Garrett, por
exemplo, é o poeta petit-maitre, o
lírico cético, o romancista dilettanti,
cujo gênio só no Frei Luiz consegue eximir-se às preocupações de dandismo
literário que o conspurcam. Como um monge medievo, o rude Herculano (falo do
artista), quase só fere duas notas com grandeza — atingir na poesia o grave tom
dos hinários do catolicismo primitivo, e explicar a história visionando-a
através a contextura quase sempre enfática dos seus romances. Castilho
afunda-se, e dele sobrenada apenas o retórico de força, que não tendo ejaculado
vida na sua arte, para logo debandou da simpatia das turbas, começando a
ressequir nas páginas das Seletas, e a amarelecer nas citações dos compêndios
de gramática elementar.
Só este nome
de Camilo parece desafiar o tempo e o carnaval das escolas literárias que se
sucedem e desfilam, hoje radiantes, desfloradas e murchas amanhã, qual mais da
moda, e todas em breve esparsas e sepultas, apenas servindo a revelar na fereza
magnífica da obra dele, mais uma aresta, um pormenor, uma arcaria, uma portada;
e através desses cento e trinta volumes, perspectivas profundas, horizontes de
arte incomparáveis, vortilhões de trágicos desfechos, gargalhadas e súplicas: e
por espaços, entre as imprecações e os soluços, as brutalidades e os sarcasmos,
algum doce perfil que rasteja, como a filha do ferrador no Amor de Perdição,
arcanjo e vítima, até aos umbrais da mais extreme dedicação.
***
Vi ontem,
numa carruagem, Camilo. Era a primeira vez que essa figura me aparecia, oh
diversa, muito diversa da que a minha adoração tinha sonhado! É uma fisionomia
estranha, extinta, imóvel, quase trágica, onde o cabelo põe brumas de velhice,
e o bigode branco, grande, caído, faz sobre a boca como a cortina dum leito
onde estivesse a dormir uma grande voz. A emaciação da doença cobre-lhe dum
livor esverdinhado a pele flácida do rosto — que socavado, tem da caveira a
expressão sardônica e sofredora — e por todo ele nem um lampejo da devoradora
chama do gênio, que se lhe concentra talvez no fundo do crânio, abandonando a
superfície, como a alma desses vulcões que resfriam, cicatrizando a cratera com
as escórias da sua última erupção.
Toda a
figura adquiriu agora uma expressão de courbature
alcachinada, lassa e desfeita, que só se desmancha nos raros momentos de revolta
contra a dor, e só de longe se alumia por algum daqueles flamejantes doestos
contra a impotência dos clínicos, na arte de rejuvenescer para a labuta da
escrita esse doutor Fausto que não pôde resignar-se à ideia de ser velho, e a
quem a morte horroriza, não pela ideia do aniquilamento, mas pela repulsa atroz
da podridão.
Como o
romântico Flaubert, este poderia ter soltado o grito d'alma: — O est étrange, comme je suis né avec peu de
foi au bonheur!
A filosofia
dos seus romances está talvez neste conceito: a falta de fé na felicidade:
neste conceito que pôs no seu espírito um tão amargo travor das coisas da
existência. Mais ou menos, ele tem sido toda a vida um revoltado. A sua mesma
alegria sabe a fel. A mesma sua serenidade era uma espécie de madorna, em que
não raro se estava preparando uma tormenta. A sua bondade chegava a espavorir
os próprios que dela sugavam benefícios, tão coriscante a sua feição de
revelar-se.
Por isso,
entre as manifestações da sensibilidade moderna em literatura, a obra de Camilo
é uma das que na Europa mais característicos espécimenes oferece, e aquela em
que a interferência autobiográfica do escritor no drama idealizado, ressai
completa, vibrante, alastrando raízes por toda a psicologia artística dos tipos
que nesse drama conflagrem e escaramucem.
Vindo a
público já numa época de transição e derrocada, quando o ideal romântico, com a
sua alucinação de grandezas, e a sua febre de heroico e de anormal, fugia às
azagaias dos primeiros mercenários naturalistas, Camilo haveria soçobrado como
tantos outros, cujos volumes perdidos ainda há trinta anos eram reputados obras
primas, se não tivera a sanear-lhe os ímpetos criadores um espírito de análise
fértil, e uma ironia de grande raça, que derivada em sarcasmo, nos seus últimos
panfletos, há de ecoar por séculos na literatura portuguesa, sendo talvez
preciso nomear Rabelais, para que o sarcasta de Seide definitivamente encontre
o seu irmão mais velho.
Ele,
entretanto, como todos os grandes, não pertenceu jamais a escola alguma: nem
Hugo, nem Flaubert; nem papá Dumas, nem Zola. É ele mesmo, é camillesco. Criou
um gênero de graça e linguagem que se lhe cola ligeira ao temperamento, como um
maillot que revestisse o tronco dum
Hércules Farnésio, traindo as arestas dum espírito, a arquitetura dum sonho
interior, o formidando rictus duma
emoção — E aquela indomável, aquela extraordinária epilepsia do seu desprezo
por tudo quanto, escabujando-lhe aos pés, queira mordê-lo.
***
Era trinta e
seis anos, cinquenta e quatro romances publicados, o primeiro dos quais, Anátema, tenda vindo a lume em 51, ainda
agora se lê com simpatia, ao cabo de tantas e tantas revoluções na arte de
narrar e de escrever. Em todos esses livros, o poeta dá o braço ao analista: e
a análise, posto que incisiva, não viviseca os tipos até aos seus últimos
pormenores de histologia, nem decompõe o trabalho duma cabeça, como faz Zola,
ideia por ideia, e impulsão por impulsão. Neste luxo de ciência, que é um dos
mais hábeis artifícios do romance moderno, muita vez o sábio prejudica as
qualidades inventivas do artista, reduzindo a obra de arte a uma monografia
seca, a uma espécie de história clínica, em que o rigor do detalhe expulsa o
sonho, substitui à arte a medicina, abdica da fantasia em favor da fórmula, e
dispensa a criação do talento individual, para produzir romances como quem
cozinha pasteis, segundo uma receita doseada; monótona, e sempre a mesma. A
isto chegaram os descendentes do flaubertismo em França, como Paulo Bonnetain,
J. K. Huysmans, Camilo Lemennier, e o sobrevivente dos. Dois Goucourt, que ao
sentir-se estancar, proclama a monografia, no prefacio da Cherie, como a
fórmula assinalada ao romance do futuro.
É ver como
Camilo triunfa em todas estas preocupações alambicadas e leva ao romance as
exigências da sua paixão ardente e sempre nova, e nos visiona o seu mundo
através os sobressaltos cruéis da sua fantasia. Para a reconstituição dum tipo,
dois ou três fatos lhe bastam, como a Cuvier bastava uma maxila e uma vértebra,
para a reconstituição dum antediluviano.
Entre esses
fatos, vem o poeta intercalar o que falta para a completa remodelação dum
personagem. E é admirar-lhe a sobriedade e a precisão! Por vezes, no enxadrezar
dos caracteres, há singulares revelações de psicologia individual: o homem fala
por detrás das suas figuras, como nas Novelas do Minho, e naquele
extraordinário romance do Esqueleto: exaspera-se da sua angústia,
entenebrece-as da sua melancolia negra e irreparável; e sem querer vai-nos
contando os anos da sua mocidade, as misérias sofridas, traições, desgraças,
ilusões e sonhos desmanchados. A sua nervosidade compraz-se em dramas curtos e
precisos, cuja catástrofe se precipita, entre os granizos da ironia ou da
cólera, sempre justa e animada dum sopro que por vezes chega a ser
miguelangesco.
***
Não vai,
porém, o tempo a sabor de apoteoses espontâneas, nem a sociedade portuguesa
agora tem momentos lúcidos para atentar nos imortais que não hajam subido a
pedestal, pelas escadarias sebosas de São Bento.
Mas se entre
os homens de agora — eu dirijo-me aos novos — houver ainda um vislumbre da
antiga integridade, se ainda houver na alma da mocidade portuguesa,
emotividades que lhe alumiem o caminho da justiça, ousaria eu propor fôssemos
todos, de chapéus ao vento e braçadas de flores, passar por diante da casa de
Camilo, como Paris, no dia em que Victor Hugo completava oitenta anos.
Oh, como
seria doce a Camilo, cuja obra resume, como a de Herculano e a de Garrett, a
genuína literatura portuguesa; como lhe seria doce o escutar de bocas amigas,
numa ovação suprema, palavras de afeto que lhe enchessem de paz os últimos
dias! e como havia de resignar-se a entrar na grande noite, esse rebelde, que
sendo o maior escritor português do nosso século, ainda achou meio de ser
também, entre os homens de gênio, o maior desgraçado!
E daí quem
sabe! Com um pequenino esforço mais, poderíamos assentar cúpula de ouro, sobre
o edifício desta generosa iniciativa. Solicitaríamos do público auxílio
coletivo para uma grande edição nacional das obras de Camilo, para a qual todos
os nossos artistas dessem ilustrações, e que assim ficaria entre as memórias do
tempo, como um protesto às apoteoses por aí feitas, na política e na arte, aos
Judas de semestre, que enquanto fingem beijar na face a pátria, o mais que
pensam é em receber o ouro dos fariseus.
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