5/28/2017

Ernest Renan: aspectos biográficos



Ernesto Renan: sua obra, o seu espírito, a sua filosofia

Publicado originalmente em 1896, (In: "Pelo Mundo Fora"), pela escritora portuguesa Maria Amália Vaz de Carvalho.  Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica  de Iba Mendes (2016)
I
Venho tarde para acrescentar qualquer coisa ao que neste jornal de certo se tem dito a esta hora da vida de Renan, e da sua morte. Venho tarde para ajuntar, qualquer dado biográfico, qualquer inédito incidente aos já citados aqui por informadores hábeis e inteligentes. 
Mas venho cedo, talvez, para conversar com os leitores acerca desse espírito encantador, que desaparecendo dentre os vivos, deixa na Europa culta uma lacuna impreenchível. 
Não é, porém, meu intento fazer obra de crítico, o que além de mais, seria prematuro ainda. Tentarei apenas dar a impressão, que a minha sensibilidade recebeu da leitura desse fino artista, desse poeta, que tão bem se conhecia a si mesmo, que um dia, figurando-se a si sob o nome Leolin, nos Dramas Filosóficos, dava do seu gênio esta adoravelmente exata definição: 
“O que é que eu faço no mundo? Contemplo e gozo. Vou a toda a parte; entro em todos os lugares e em todos compreendo alguma cousa. Eis a minha profissão. Procuro o Belo, devorado de sede, que jamais saciei. A verdade demanda maior dose de perseverança nos que a buscam; é por isso que ela me foge, talvez.” 
Não há convivência mais estreita, que a que tem largos anos existido, entre mim, obscura e pobre mulher, e essa deliciosa inteligência de artista, um dos mais requintadamente perfeitos que a literatura tem possuído em todo o mundo.

É fora de dúvida que, para mim, o hebraisante, o erudito, o epigrafista sagaz, o arqueólogo meticuloso, o decifrador de textos assírios, o sábio, enfim, que era Renan, me interessava mediocremente. Admirava que um tão grande poeta tivesse a humilde ambição de ser apenas um grande erudito; ambição que lhe era de resto cruelmente contestada por terríveis homens calvos, de óculos azuis com aros de ouro e nomes impronunciáveis de terminações bárbaras, que eu nunca tinha lido, e julgo aqui entre nós, que somente se tinham lido a si mesmos...

Esses, escreviam volumes in folio para provarem que o Sr. Renan não conhecia os textos, e o divino celta que tanta vez me fizera vibrar até às lágrimas com as notas da sua harpa misteriosa ― desesperava-se com a incredulidade daqueles medonhos eruditos alemães, de que toda a gente que se presa ignora a existência, não atinando sequer com a arrevesada pronuncia dos seus respectivos nomes... 
hebraisante era-me pois indiferente, mas o historiador ficava de pé, com a sua intuição extraordinária da alma religiosa das multidões extintas; com a vida intensa que ele sabia dar aos personagens do passado; com a sua visão clara e profunda das cousas que já foram; com o mágico poder de evocação que ele possuía, como Carlile o possuiu, como o possuíram Michelet e Victor Hugo, mas de um modo inteiramente diverso daqueles todos. 
Um Michelet ressuscitando períodos históricos de entusiasmo fremente e de doentia exaltação, saberá dar vida às perturbações nervosas, aos desfalecimentos e aos êxtases dos seus congêneres do passado. 
Um Victor Hugo dará o nítido contorno das coisas, e até para o mundo da alucinação levará o seu poder de descrever o incomensurável, de figurar o impossível...

Um Carlile terá a visão ardente de um mundo como foi o puritano, capaz de produzir Cromwell; e saberá ― desmontando peça a peça o maquinismo complicado desse caráter de alucinado e de batalhador, de pérfido condutor de homens, e de crente quase fanático ― revelar-nos o segredo da quadra estranha de que ele é o produto natural, a resultante lógica... 
Renan saberá principalmente interpretar e traduzir problemas e sentimentos morais, estados de consciência. Para ele, como para o grande inglês que escreveu o Culto dos heróis, a história, é uma cousa viva, uma cousa inefável e divina, destinada a ressuscitar diante dos olhos do nosso espírito, os sofrimentos, as emoções violentas ou delicadas, as lutas, as tristezas, as fraquezas e heroicidades, dos nossos irmãos que morreram, das gerações que modelaram fatalmente a nossa, e às quais devemos o que somos em bom e em mau. 
***

Quando a notícia da morte de Renan nos veio surpreender dolorosamente a todos, acabava eu de passar dois meses no campo, em uma solidão quase absoluta, em uma isolação moral quase selvagem, lendo apenas com íntima delícia, o mais árido talvez, por ser o mais erudito, de todos os livros do grande exegeta: a sua longa História do Povo de Israel, cujo 4º e 5º volumes ele deixou para serem postumamente publicados. 

E depois de ter vencido aquele primeiro impulso de preguiça, que um espírito de mulher indolente não podia deixar de experimentar ante um trabalho desta ordem ― eu acabara por sentir-me irresistivelmente e deliciosamente transportada àqueles tempos obscuros em que o semita nômade, o soberbo vagabundo da História, enriqueceu o tesouro humano, com a mais alta noção religiosa a que à nossa espécie foi dado ainda atingir, a noção de um deus único, cujo espírito está em tudo, e ao qual o vasto Universo obedece submisso!... 

Assim como a Grécia criou a alta cultura intelectual, a filosofia, a poesia, as artes plásticas; assim como Roma criou as fortes instituições políticas, tendo o Direito por base; o semita criou a religião de que a nossa alma se tem alimentado longos séculos, e que tão profundo cunho lhe imprimiu, que ainda hoje o mais cético de entre os céticos demolidores do passado se não pode libertar da sua poderosa e absorvente influência! 

Essa gênese de monoteísmo, que Renan intitulou a História do Povo de Israel, é talvez de todas as suas obras aquela em que as soberbas e múltiplas faculdades do seu grande espírito tiveram melhor espaço para se desenvolverem. 

Nada mais belo, nada mais profundamente interessante para um espírito que pensa, do que a evolução da ideia religiosa, seguida passo a passo, com os seus períodos de impetuosa florescência, com os seus desfalecimentos e os seus eclipses, com os desdobramentos súbitos de sua apaixonada energia, com as aquisições morais, tão laboriosamente e dolorosamente feitas através de violências espasmódicas e de paroxismos convulsionários. 

Sendo a civilização moderna uma resultante da colaboração alternativa da Grécia, da Judéia e de Roma, as origens da história dessa raça misteriosa, em cujo seio havia virtualmente Jahve e Jesus não podem deixar de produzir uma ardente curiosidade em todo o espírito ávido de conhecimento e de luz moral. 

Eu tinha-me pois, nessa reclusão completa em que vivera, embriagado longamente, voluptuosamente, da prosa, de Renan, capitosa e perturbadora. 

E quem como ele sabia, da língua que falava, extrair efeitos de harmonia, ao pé dos quais, os das outras artes me pareciam absolutamente secundários? 

Falando do idioma hebraico, Renan diz em uma das belas páginas da sua História do Povo de Israel

“Uma aljava de flechas de ouro, um grosso cabo de potentes contorções, um trombone de bronze, dilacerando o espaço com duas ou três agudas notas: eis o hebraico.

Uma língua destas não pode exprimir nem um pensamento filosófico, nem um resultado científico, nem uma dúvida, nem uma percepção do infinito. 

As letras dos seus livros serão contadas como números, mas serão feitas de fogo como a chama. Dirá poucas cousas essa língua, mas as que disser, serão marteladas sobre uma bigorna. 

Derramará ondas de cólera, terá gritos de raiva contra os abusos do mundo; clamará pelos quatro ventos do céu para que acudam ao assalto das cidadelas do Mal. Como os instrumentos rituais do santuário não servirá para uso algum profano; nunca lhe será dado exprimir a alegria inata da consciência, a luminosa serenidade da Natureza; mas clamará a guerra santa contra a injustiça, e o apelo dos grandes panegíricos; será o clarão das neomênias e a trombeta do Juízo final. Felizmente que o gênio helênico comporá, para a expressão das alegrias e das tristezas da nossa alma um alaúde de sete cordas, o qual saberá vibrar uníssono com tudo que é humano, um grande órgão de mil teclas igual às múltiplas alegrias da vida. 

A Grécia conhecerá toda as delícias, desde as danças em coro nos píncaros do Taigeto até ao banquete de Aspásia; desde o sorriso de Alcibíades até à austeridade do Pórtico; desde a canção de Anacreonte até ao drama filosófico de Ésquilo e aos sonhos dialogados de Platão.” 

Este admirável, este soberbo trecho, que acabamos de traduzir integralmente, em que o gênio das duas línguas toma forma, em uma outra língua, nunca falada com tal melodia e tal poder, quisera eu que fosse posto como epigrafe à História do Povo de Israel, em que Renan traduziu genialmente sob a divina inspiração do gênio Grego, a alma tumultuosa e sombria, agitada e sequiosa de justiça, dos profetas da raça semítica. 

Oh! como eles renascem ali nas páginas do grande escritor, os fundadores de quanto há de tremendo e de sombrio na religião que veio depois a dominar o mundo!

Como ali se reflete igualmente, na prosa divina do Mestre, a Grécia que sobre a Acrópole lhe revelou o segredo dos seus primores! O assunto é o semita, mas a língua em que essa sublime evocação se fez, o mágico instrumento, através do qual nós comunicamos com o árido e difícil assunto, a inspiração adorável, que presidiu a este trabalho de reconstituição histórico-religiosa, a arte plástica, com que ele é genialmente modelado, tudo isso foi colhido pela alma de Renan, abelha ébria de luz e de perfume e de sucos balsâmicos, no coração da Grécia! 

É só aí que a Beleza e a Razão têm a mesma forma e a mesma essência; é só aí que a Vênus Anfitrite sorri à musa de Sócrates e que a Poesia e a Religião enredam voluptuosamente a fantasia e a sensibilidade do homem na mesma rede azul e ouro tecida de sonhos, que são símbolos e de quimeras entontecedoras, que são divinas verdades. 

Mas quem leu somente de Renan a História do Povo de Israel ficará conhecendo todo o gênio complexo do escritor? 

Decerto que não. Ele é um grego pelo amor da beleza plástica, mas é um celta pela sensibilidade doentia, pela delicadeza concentrada do seu gênio. 

Os que desejarem conhecê-lo, precisam de ler tudo que ele escreveu. 

Precisam de segui-lo através dos meandros, alguns quase inacessíveis, da sua História das origens do Cristianismo

Precisam de penetrar bem no estranho misticismo que há no fundo deste temperamento de cético; precisam de interrogar os escaninhos inesperados desta imaginação de poeta, que em certas páginas, ― como por exemplo, no sonho de Leolino, na Eau de Jouvence, invocando a alma da adorada irmã morta; nas páginas dulcíssimas dos Souvenirs de Jeunesse; na sinfonia esplêndida que se chama La Prière sur l'acropole; na dedicatória de um dos seus livros celebres; em trechos dos seus estudos de História Religiosa; ― atinge uma virtuosidade, um poder de harmonia, excita uma emoção, faz vibrar tão intensamente os nervos do leitor, que pode bem dizer-se que a língua falada e escrita se transforma sob os seus dedos de mágico em música transcendente que parece vir de além da terra, em música que penetra no coração e o desfalece de delicioso êxtase. 

II
Este conhecimento da obra total do grande escritor, que eu considero imprescindível em quem, com acerto e justiça, quiser falar dele, não o tinham, estranho é dizê-lo, senão com raríssimas exceções, os que em França, no jornalismo, comemoraram lutuosamente o pensamento de Renan. A acusação que eu aqui deixo, fê-la, com a sua graça incomparável Júlio Lemaître no artigo que ao seu querido filósofo consagrou no Jornal dos Debates. Porque Renan escreveu muito, escreveu imenso. Durante cinquenta anos trabalhou dez horas por dia, o que é extraordinário. 

E além das monografias científicas e dos estudos especiais que publicara nas Revistas e nos Jornais de Ciências, além da História das Origens do Cristianismo, que vai de Jesus a Marco Aurélio, e que se compõe de sete grossos volumes, além da História do Povo de Israel de que há publicados três volumes e para publicar dois, ele passou as horas que não consagrava à sua principal tarefa, a escrever toda a espécie de artigos literários: ensaios críticosdiálogos filosóficos à maneira de Platão, como os que publicou em volume com o título que acima demos; comédias e dramas à moda e na tradição de Shakespeare como o Prêtre de NemiL'eau de JouvenceCaliban, etc. etc.; cartas que são celebres como aquela escrita à un ami d’alémagne, e outra a Mr. Berthelot; fragmentos de história religiosa; estudos de moral; trechos adoráveis como o consagrado a Francisco de Assis, o santo que teve a adoração de Michelet e de Renan, etc. etc. 
As mil faces do talento de Renan só as conhece o que leu essa obra vastissima atravessada por uma flecha ideal de encanto e de magia; para a saber apreciar devidamente, é contudo, necessário mais do que havê-la lido, porque então, nesse caso estava a minha humilde pessoa, a qual se recusa a tão elevada empresa. 
Uma das acusações feitas a Renan, até pelos seus críticos mais benévolos, é a de contraditório e a de incoerente. 
Batizaram de renanismo uma certa qualidade requintada e subtil de dúvida amável, que acolhe todas as ideias, que acha em todas alguma cousa de verdadeiro e muito de falso, que se balouça voluptuosamente entre doutrinas adversas, que se inclina ora para uma ora para outra das mil formas da vida sem se dar completamente a nenhuma delas, que em cada quimera acha um fundo de verdade, e em cada verdade aceita e indiscutida um fundo de inanidade e de ilusão, que ante a Natureza, ― Ísis de mil faces, ― se limita a compreender e aceitar as contradições do Universo, explicando-as se pode, e admitindo a legitimidade absoluta dos mais variados pontos de vista, sem ter nenhuma das qualidades estreitas e limitadas do sectário ou do fanático. 
Ora esse modo de ser intelectual é tanto da nossa época, que Renan, professando-o, não fez mais do que representar em uma condensação superior de pensamento e de crítica, a filosofia do seu tempo. 
Que culpa teve ele de nascer justamente em um período da civilização em que estes caracteres da inteligência são justamente os que assinalam o homem superior, o artista consciente, o representative man de uma fase do pensamento humano.

De resto, querendo dizer a verdade toda, esse estado de espírito de Renan, é-lhe comum com as inteligências mais altas de todos os tempos. Shakespeare, que foi também um diletando genial não dizia já que o homem è talvez feito do mesmo estofo que os seus sonhos
A interpretação dos fenômenos visíveis do mundo é feita por esses espíritos, não de um modo racionalista e lógico, mas consoante a fugitiva inspiração do momento que passa. 
A raiz de toda a realidade mergulha em um abismo insondável e obscuro, em que eles gostam de debruçar-se, ora trementes de pavor, ora gelados pela dúvida...

Mas a justiça, que nem sempre fazem a Renan e que é necessária fazer-lhe, exige que se acrescente a esses traços por assim dizer exteriores de seu talento esta qualidade fundamental que ressalva o que eles podiam ter de perigoso para os discípulos de sua filosofia. 
Há uma cousa em que ele acreditou sempre, da qual não negou nunca a existência necessária, embora lhe contestasse às vezes nos caprichos da sua ondeante palavra, cariciosa e triste, os resultados úteis, ou as compensações interesseiras; essa cousa é a moral
“A moral é a cousa séria e verdadeira por excelência; basta ela para dar um sentido e um fim à vida humana, diz ele no prólogo dos seus Ensaios de Moral e de Crítica
Escondem-nos véus impenetráveis o segredo deste mundo estranho, cuja realidade se impõe a nós e nos esmaga; a filosofia e a ciência procuram eternamente, sem jamais a encontrarem, a fórmula desse Proteu que a razão não limita e que a linguagem não exprime. Mas há uma base indubitável que o ceticismo por mais completo não pode abalar, onde o homem achará até ao termo dos seus dias o ponto fixo de todas as incertezas; o bem é o bem; o mal é o mal. Para odiar um e amar outro, não é necessário qualquer sistema, e é neste sentido que a fé e o amor, que na aparência não têm ligação alguma com a inteligência, são o verdadeiro fundamento da certeza moral e o único meio que o homem possui para compreender alguma cousa do problema da sua origem e do seu destino.” 
Por estas palavras sinceras e que Renan honrou tão nobremente, em uma longa existência laboriosa, honesta e casta, consagrada ao trabalho incessante, à desinteressada investigação da verdade, às sondagens tão difíceis da História, ― por estas palavras se percebe bem claro, que o renanismo não significa indiferença moral, mas sim benévola simpatia por ideais diversos, contemplação amorosa dos fenômenos que se sucedem em perpétua fluidez, em perpétua transformação, embevecimento perante as mil formas aliciadoras com que a eterna ilusão nos tenta, nos seduz, nos anestesia, para nos fazer aceitar o pesado encargo da vida... 
A riqueza extraordinária desta inteligência consiste na quantidade de contrastes, de aspectos e de nuances que nela se conciliam e nela se contém. Os contrastes de um caráter são o selo da sua individualidade, da sua vida exuberante e intensa. Os contrastes de ideias cabendo em uma inteligência dão a medida do seu grande valor. 
As contradições que desnorteiam uma lógica vulgar, não assustam por exemplo o pensamento alemão de uma tão extraordinária complexidade. A concepção, a síntese magnífica de um Hegel envolve e concilia os mais contrários termos no seu vastíssimo seio. Ora, em Renan, além da influência da Bíblia, tão acentuada no seu modo dizer e de sentir, além da influência grega tão esplendidamente demonstrada na oração sobre a acrópole, que vem inserta nos adoraveis Souvenirs de jeunesse, atuou de um modo profundo, decisivo a influência da Alemanha. 
Na sua moral Renan obedece à inspiração de Kant, na sua concepção do Universo, Renan é Hegeliano. E senão vejamos esta frase característica: 
“Deus é imanente no conjunto do Universo, e em cada um dos seres que o compõem. Não se reconhece, porém, igualmente em todos. Reconhece-se mais na planta que no rochedo, mais no animal que na planta, mais no homem que no animal, mais no homem inteligente que no cérebro limitado, mais em Sócrates que no homem de gênio, mais em Buda que em Sócrates, mais em Cristo que em Buda.” 
Eis o resumo de toda a teologia hegelina e renanesca
Se acrescentarmos a isto a afirmação de que nenhuma vontade particular se tem manifestado até hoje, nem poderá jamais manifestar-se na evolução do Universo, ou na marcha da humanidade, mas que esse Deus, de que ele nega a existência pessoal, está por assim dizer em formação no tempo e no espaço, à proporção que o mundo vai atingindo a consciência sempre mais perfeita de si próprio, e que o homem vai descobrindo as eternas leis da verdade, da beleza, da virtude e do bem; de que o Universo tem um fim ideal, aspira a um divino objetivo e não é nem pode ser a resultante de uma agitação inane, inútil e vã; que a razão, reinando mais e mais sobre a humanidade, acabará por criar Deus, criando o bem absoluto, e a divina harmonia das cousas; ― nós teremos completado a filosofia de Renan, nem sempre original, e em todo caso pouco consoladora para os humildes e para os pobres de espírito que em nada colaboram para a formação definitiva desse Deus, que está em via de aparecer visível aos homens que hajam atingido o mais alto ponto da consciência... 
Esta filosofia reveste-se porém, das mais deliciosas formas, ela tem para se desenvolver e para se reduzir a preceitos gerais, um instrumento incomparável, de uma graça que nenhum artista ainda igualou. 
Esse instrumento, que é a prosa de Renan, é que o torna principalmente querido entre os que lêem... 
A sua melancolia de celta, a sua sensibilidade doentia, a doçura estranha, inspirada de algumas das suas frases, tem tido sobre a minha alma de mulher o poder inexplicável de um sortilégio.
III
O desinteresse levado quase a um extremo irritante para os práticos homens de hoje, a fidelidade tocante a todas as causas vencidas; um amor das tradições da raça, que se exalta até à poesia, uma forma de imaginação absolutamente singular e inconfundível caracterizam os Celtas, a cuja raça Renan tanto se orgulhava de pertencer. 
“Em parte alguma, diz ele, a eterna ilusão se adornou de mais sedutoras cores, e no grande concerto da espécie humana nenhuma família igualou esta, nos sons penetrantes, que vão até o coração. Os seus cantos de alegria acabam em tom elegíaco; nada iguala a deliciosa tristeza das suas melodias nacionais; dir-se-iam emanações do céu, que, deslizando gota a gota dentro d'alma, a penetram, como reminiscências de outro mundo. 
Ninguém, como ela, saboreou jamais tão longamente essas volúpias solitárias da consciência, essas reminiscências poéticas, em que se cruzam simultaneamente todas as sensações da vida, tão vagas, e profundas e penetrantes, que, a prolongarem-se muito, fariam morrer, sem que pudesse dizer-se se era de delícia ou de amargura. 
A infinita delicadeza de sentimento que caracteriza a raça céltica está estreitamente ligada à sua necessidade de concentração... Daí esse pudor delicioso, esse não sei quê de velado, de requintado, de sóbrio, a igual distância da retórica do sentimento tão familiar aos povos latinos e da ingenuidade refletida que tanto se faz sentir nos alemães. 
Essa raça quer o infinito; tem sede dele; procura-o a todo o preço, para além da tumba, para além do inferno...” 
Estas frases de Renan, colhidas no seu esplêndido estudo sobre a poesia das raças célticas são o segredo de mil particularidades daquela fina sensibilidade de artista. 
O que ele diz dos cantos nacionais da sua raça, podia igualmente aplicar-se ao gênero indefinível de encanto quase físico que a sua prosa exerce em temperamentos acessíveis a certa ordem de emoções. 
A estranha combinação que nele se fez de duas inspirações tão opostas e ambas tão pronunciadas no seu espírito, a da poesia bíblica e a da poesia dos Celtas; a alta cultura complexa que o seu entendimento assimilou de um modo tão feliz; o dom irresistível da ironia que a fada que presidiu ao seu nascimento lhe trouxe oculto entre as mais finas flores de uma sensibilidade mórbida; o otimismo de um temperamento são e de uma calma existência, lutando com a noção pessimista que a ciência lhe deu do Universo e da vida; as suas tendências de diletante e de aristocrata, desenvolvido em um meio de brutal democracia e de luta pela vida frenética; a hereditariedade de uma mãe da Gasconha e de um pai bretão; até a estranha circunstância de ele ter ouvido ― nos braços maternos e dos lábios queridos de onde lhe escorria o mel dos únicos beijos que não mentem, ― contados com a mais graciosa florescência de incidentes e detalhes, todas as nebulosas tradições do Ciclo de Artur, todas as lendas poéticas de Bretanha, isto por uma deliciosa voz irônica, que não acreditava nelas, e que era como o acompanhamento musical da serenata de D. Juan, o risonho desmentido àquela poesia tecida em sonhos; ― todos estes contrastes, todas estas influências contraditórias, compuseram em não sei que misterioso laboratório, a essência rara que era o gênio de Renan. 
Esse filtro capitoso, inebriante, seria salutar? Parece-me, receio bem que não! Renan era muito do seu tempo para não ter dele a pontinha de corrupção intelectual, que, em temperamento físico menos equilibrado, levaria ao ceticismo dissolvente, à egoística indisciplina que se traduz pela satisfação de todas as paixões, ainda as mais funestas. 
Ele, que era um santo na prática da vida, e que, saindo do seminário, quis trazer para o trato social as virtudes, a castidade, a serena despreocupação de sentimentos que o agitassem, que lhe haviam sido recomendadas pelos padres que o criaram; ele, que era um santo na moral, podia na vida intelectual ser esse delicioso diletante que se comprazia em perder-se nos complicados meandros do pensamento, amando como Sócrates a virtude e chamando-lhe como Bruto um nome vão! glorificando o martírio e notando ao mesmo tempo a impossibilidade que há para o homem superior em morrer por uma ideia, necessariamente falsa, pois que nunca a verdade pode estar em uma só face de qualquer doutrina; recomendando a moral como “a cousa por excelência verdadeira e séria” e dizendo aos homens, aos fracos mortais a quem o desinteresse custa tanto, que nenhuma recompensa lhes advirá dos sacrifícios feitos a essa abstração sublime; negando a intervenção de Deus na obra universal e afirmando que o Universo tem um fim divino; sentindo e comunicando aos que o lêem, as sensações mais dúbias e as mais contraditórias; vibrando ao influxo das ideias mais diversas, desde o misticismo até a transcendente ironia, tendo feito a viagem à roda do mundo do pensamento, e vindo de lá, da sua longa e laboriosa romaria, igualmente indiferente ou igualmente benévolo para todas as doutrinas, para todos os estados da alma, menos para o fanatismo dos sectários, que lhe inspirava um desdém piedoso, e que ainda assim compreende, porque ninguém entendeu melhor Jeremias e Ezequias, os profetas da feroz Jerusalém! 
Ele podia ser essa encarnação suprema do gênio da crítica moderna. Mas os que não têm o mesmo dom feliz de separar a vida da inteligência da vida dos sentidos? Mas os que vivem a sua filosofia e traduzem em atos as suas teorias?...

Oh! para esses, a doutrina desse santo será o mais corrosivo dos venenos; o encanto miraculoso daquele gênio ondeante, cujo pessimismo desabrochava na flor de um sorriso e cuja esperança se afundava, misteriosa e lúgubre ninféia, no pântano glauco de uma negação sombria, ― seria a mais desorganizadora e a mais corruptora das lições! 
***

Mas esquecemos o que houve de triste e de negativo nessa filosofia, cujas raízes mergulham no complicado e cético pensamento germânico! 
Nós, as mulheres, amemo-lo pela graça ― esse dom feminino, que ele possuiu como ninguém mais, pela linguagem divina, de que ele revestiu as suas ideias, por milhares de trechos verdadeiramente impecáveis, de uma untuosidade evangélica, de uma pureza transcendente, de uma poesia inefável, com que ele enriqueceu a literatura universal. 
Como havia em Renan de tudo, ― e é este o seu característico mais singular, e é este, em face da estrita lógica, o defeito mais repreensível da sua inteligência ― podia um admirador consciencioso e delicado extrair, dos seus livros inúmeros, um livro piedoso, espécie de Imitação, menos ascético, porém, mais perfumado das flores do Evangelho primitivo; livro para ser lido em hora de crise d'alma, livro para ser decorado pelos delicados, pelos contemplativos, pelos tristes... 
No prefacio dos seus Estudos de História religiosa, diz Renan pouco mais ou menos isto mesmo. 
Formula o voto de que alguém, das pérolas soltas do seu escrínio, que sabemos ser de milionário, compusesse uma espécie de livro d'horas, para ser folheado depois da sua morte, por finas, esguias e brancas mãos patrícias, na paz obscura e calmante das catedrais. 
Oh! Como a subtil ironia que atravessa, flecha de luz área, este voto estranho, é bem dele! Desse aristocrata, que deveu à democracia a liberdade que amplamente gozou; desse diletante, desse místico que desejaria ser enterrado na nave lateral de uma sombria igreja católica; desse ironista que manejou tanta vez o arco de Voltaire com setas mais finas, setas feitas de ouro; desse filósofo que pregou a inanidade da sabedoria; desse sábio que se ria da ciência; desse iconoclasta dos templos que ungiu de bálsamos tão inefavelmente doces os pés de Jesus Cristo, e que achou na piedade da sua alma uma fórmula de ceticismo mais respeitosa que muitas orações, de um realismo por assim dizer concreto e material... 
***

Se eu pude traduzir a impressão que ele me dava, impressão confusa e deliciosa, indefinível e querida, impressão que era ao mesmo tempo receio de me deixar seduzir, encanto ao sentir-me arrastada na corrente daquele feiticeiro perigoso; se eu pude dizer todo o amor com que lhe quis, e todas as restrições com que este sentir me subjugara, dou-me por feliz, porque a fazer a crítica da obra de Renan, a isso nunca eu ousaria aspirar. 

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