Graciliano Ramos: "Angústia"
A aflição de Luís da Silva, personagem central do romance “Angústia”, de Graciliano Ramos, é parte intrínseca do emaranhado linguístico de que se utiliza o autor para tornar a obra aquilo que sintetiza o seu próprio título.
A aflição de Luís da Silva, personagem central do romance “Angústia”, de Graciliano Ramos, é parte intrínseca do emaranhado linguístico de que se utiliza o autor para tornar a obra aquilo que sintetiza o seu próprio título.
A frustração, a insatisfação e o sentimento de
inutilidade do funcionário público Luís, sua impossibilidade de lutar contra
uma rotina que consome seu tempo e sua existência, são assim destrinchados nas
palavras que este se utiliza para entender o mundo e aqueles que o cercam. “A minha linguagem”, diz ele: “é baixa, acanalhada. Às vezes sapeco
palavrões obscenos. Não os adoto escrevendo por falta de hábito e porque os
jornais não os publicariam, mas é a minha maneira ordinária de falar quando não
estou na presença dos chefes”. É com essa linguagem que ele constrói sua
realidade solitária, e é com ela que sua angústia e frustração existencial
sobressaem do início ao fim do livro. Palavras como carne, sangue, entranhas,
ventre, tripas e outras correlatas, tornam sua angústia à própria angústia de
quem o ler:
“Parecia-me que
aquilo estava chiando dentro de mim, que a minha carne se assava e chiava”.
/ “O que eu desejava era apertar o
pescoço do homem calvo e moreno, apertá-lo até que ele enrijasse e esfriasse. Lutaria
e estrebucharia a princípio, depois seriam apenas convulsões, estremecimentos.
Os meus dedos continuariam crispados, penetrando a carne que se imobilizaria,
em silêncio.” / “Enquanto ele batia
na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma figura nua e
preta estirada nas pedras da rua. O ventre era uma pasta escura de carne
retalhada; os membros, torcidos na agonia, estavam cobertos de buracos que
esguichavam sangue; a boca, sem beiços, mostrava dentes acavalados e vermelhos,
numa careta medonha; os olhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro
arquejava. Corria sangue entre as frestas dos paralelepípedos e empoçava na
sarjeta. A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e
vermelho.” / “Necessário que ele
morresse. Julião Tavares cortado em pedaços, como o moleque da história que seu
Ramalho contava. Logo me aborrecia da tortura comprida. Nojo, medo, horror ao
sangue. Julião Tavares morreria violentamente e sem derramar sangue. Em sonhos
ou acordado, vi-o roxo, os olhos esbugalhados a língua fora da boca. Pensei
muitas vezes nos bíceps do homem acaboclado que ensinava capoeira ao rapaz, no
alto do Farol. Por uma aberração, imaginava que aqueles músculos eram meus”.
/ “Era o tipo da mulher de subúrbio
mesquinho, que varre a casa, lava as panelas e prega os botões com as dores do
parto, pare sozinha e se levanta três dias depois, vai tratar da vida. Vida
infeliz, vida porca. O homem para um lado, ela para outro, arrastando a filha
pequena, a barriga deformada, estazando-se, aguentando pancadas nos olhos.
Talvez estivesse na véspera de ter menino, talvez estivesse no dia, talvez já
sentisse as entranhas se contraírem. Rebolar-se-ia dentro de algumas horas na
cama dura, a carne cansada se rasgaria, os dentes morderiam as cobertas
remendadas.” / “Parecia que Marina
queria esfolar-se. Imaginava-a em carne viva, toda vermelha. Imaginava-a
branquinha, coberta de uma pasta de sabão que se rachava, os cabelos alvos,
como uma velha Essas duas imagens me davam muito prazer. Queria que aparecesse
a Julião Tavares assim encarnada e pingando sangue, ou encarquilhada e
decrépita, os pelos do ventre como um capulho de algodão. A torneira se abria.
Lá estava Marina outra vez nova e fresca, enchendo a boca e atirando bochechos nas
paredes, resfolegando, sapecando frases desconexas.” / “Os músculos de mestre Domingos eram do velho
Trajano. Os músculos e o ventre de Quitéria também. Sinhá Germana concebia e
paria no couro de boi, a que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Quitéria
engendrava filhos no chão, debaixo das catingueiras, atrás do curral, e
despejava-os na esteira da Isidora, em partos difíceis.” / “Com um pouco de esforço podia admitir-se que
fosse redondo, mais ou menos redondo, comparável a uma cabeça chata feita de
curva, caprichosas que se torciam como tripas. Pensei em circunvoluções
cerebrais, levantei-me e fui beber um gole de aguardente.” / “Na escuridão do cárcere, depois que a chave
tilintava na fechadura da grade, o juiz da cadeia recebia os duzentos réis do
torno e desfazia os laços que deslocavam os ossos, entravam na carne do homem.
Um ladrão de cavalos seria maltratado, aguentaria facão, de joelhos, nu da
barriga para cima, um soldado segurando-lhe o braço direito e batendo-lhe no
peito, outro segurando o braço esquerdo e batendo nas costas. Depois os presos
se aproximariam, camaradas, de repente lhe afastariam as pernas. O corpo cairia
na pedra negra, suja de escarros, sangue, pus e lama. O cipó de boi chiaria no
ar, cortaria o lombo descoberto.”
A linguagem, portanto, é o que caracteriza não apenas
a angústia da personagem, como à do próprio autor, que vivenciou na “própria
carne” o tormento do cárcere.
Quando escreveu esta obra, Graciliano tinha sido preso
a mando do governo ditatorial de Getúlio Vargas, daí, por exemplo, às
constantes menções à “água de bacalhau”, subterfúgio utilizado pela polícia
getulista para torturar seus adversários políticos: “Não me matem de fome nem me deem água de bacalhau. Eu me explico.”
/ “Não seria preciso me darem água de
bacalhau. A garganta ardia-me, passei a língua seca nos beiços gretados. Água
de bacalhau, dias de fome, noites em claro, um tipo martelando horas a fio...”/
“A garganta doía-me, os beiços
colavam-se. Precisava beber água e pensava no caldo de bacalhau. Confessaria
tudo, mostraria á roupa rasgada, os bilhetes, as cartas, os artigos.” / “As grades que a gente não pode tocar, tão
nojentas são elas, as esteiras, as cortinas de pucumã, os muros grossos, fome,
sede, caldo de bacalhau, e nesta miséria José Baía fabricando piteiras, pentes
de tartaruga, objetos miúdos de casca de coco.”
O assassinato de seu rival Julião Tavares, que se deu
com uma corda que ganhara de presente do pedinte Ivo, torna-se assim o ápice da
sua desesperação, o terrível instante em que Luís da Silva se sentiu
verdadeiramente "superior”.
É isso!
Iba Mendes
São Paulo, 2011.
São Paulo, 2011.
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