5/29/2017

Graciliano Ramos: "Angústia"


Graciliano Ramos: "Angústia"

A aflição de Luís da Silva, personagem central do romance “Angústia”, de Graciliano Ramos, é parte intrínseca do emaranhado linguístico de que se utiliza o autor para tornar a obra aquilo que sintetiza o seu próprio título.
A frustração, a insatisfação e o sentimento de inutilidade do funcionário público Luís, sua impossibilidade de lutar contra uma rotina que consome seu tempo e sua existência, são assim destrinchados nas palavras que este se utiliza para entender o mundo e aqueles que o cercam. “A minha linguagem”, diz ele: “é baixa, acanalhada. Às vezes sapeco palavrões obscenos. Não os adoto escrevendo por falta de hábito e porque os jornais não os publicariam, mas é a minha maneira ordinária de falar quando não estou na presença dos chefes”. É com essa linguagem que ele constrói sua realidade solitária, e é com ela que sua angústia e frustração existencial sobressaem do início ao fim do livro. Palavras como carne, sangue, entranhas, ventre, tripas e outras correlatas, tornam sua angústia à própria angústia de quem o ler:
Parecia-me que aquilo estava chiando dentro de mim, que a minha carne se assava e chiava”. / “O que eu desejava era apertar o pescoço do homem calvo e moreno, apertá-lo até que ele enrijasse e esfriasse. Lutaria e estrebucharia a princípio, depois seriam apenas convulsões, estremecimentos. Os meus dedos continuariam crispados, penetrando a carne que se imobilizaria, em silêncio.” / “Enquanto ele batia na testa, avançava e recuava, eu ia pouco a pouco distinguindo uma figura nua e preta estirada nas pedras da rua. O ventre era uma pasta escura de carne retalhada; os membros, torcidos na agonia, estavam cobertos de buracos que esguichavam sangue; a boca, sem beiços, mostrava dentes acavalados e vermelhos, numa careta medonha; os olhos esbugalhados tornavam-se vermelhos. O negro arquejava. Corria sangue entre as frestas dos paralelepípedos e empoçava na sarjeta. A poça crescia, em pouco tempo transformava-se num regato espumoso e vermelho.” / “Necessário que ele morresse. Julião Tavares cortado em pedaços, como o moleque da história que seu Ramalho contava. Logo me aborrecia da tortura comprida. Nojo, medo, horror ao sangue. Julião Tavares morreria violentamente e sem derramar sangue. Em sonhos ou acordado, vi-o roxo, os olhos esbugalhados a língua fora da boca. Pensei muitas vezes nos bíceps do homem acaboclado que ensinava capoeira ao rapaz, no alto do Farol. Por uma aberração, imaginava que aqueles músculos eram meus”. / “Era o tipo da mulher de subúrbio mesquinho, que varre a casa, lava as panelas e prega os botões com as dores do parto, pare sozinha e se levanta três dias depois, vai tratar da vida. Vida infeliz, vida porca. O homem para um lado, ela para outro, arrastando a filha pequena, a barriga deformada, estazando-se, aguentando pancadas nos olhos. Talvez estivesse na véspera de ter menino, talvez estivesse no dia, talvez já sentisse as entranhas se contraírem. Rebolar-se-ia dentro de algumas horas na cama dura, a carne cansada se rasgaria, os dentes morderiam as cobertas remendadas.” / “Parecia que Marina queria esfolar-se. Imaginava-a em carne viva, toda vermelha. Imaginava-a branquinha, coberta de uma pasta de sabão que se rachava, os cabelos alvos, como uma velha Essas duas imagens me davam muito prazer. Queria que aparecesse a Julião Tavares assim encarnada e pingando sangue, ou encarquilhada e decrépita, os pelos do ventre como um capulho de algodão. A torneira se abria. Lá estava Marina outra vez nova e fresca, enchendo a boca e atirando bochechos nas paredes, resfolegando, sapecando frases desconexas.” / “Os músculos de mestre Domingos eram do velho Trajano. Os músculos e o ventre de Quitéria também. Sinhá Germana concebia e paria no couro de boi, a que o atrito e a velhice tinham levado o cabelo. Quitéria engendrava filhos no chão, debaixo das catingueiras, atrás do curral, e despejava-os na esteira da Isidora, em partos difíceis.” / “Com um pouco de esforço podia admitir-se que fosse redondo, mais ou menos redondo, comparável a uma cabeça chata feita de curva, caprichosas que se torciam como tripas. Pensei em circunvoluções cerebrais, levantei-me e fui beber um gole de aguardente.” / “Na escuridão do cárcere, depois que a chave tilintava na fechadura da grade, o juiz da cadeia recebia os duzentos réis do torno e desfazia os laços que deslocavam os ossos, entravam na carne do homem. Um ladrão de cavalos seria maltratado, aguentaria facão, de joelhos, nu da barriga para cima, um soldado segurando-lhe o braço direito e batendo-lhe no peito, outro segurando o braço esquerdo e batendo nas costas. Depois os presos se aproximariam, camaradas, de repente lhe afastariam as pernas. O corpo cairia na pedra negra, suja de escarros, sangue, pus e lama. O cipó de boi chiaria no ar, cortaria o lombo descoberto.”
A linguagem, portanto, é o que caracteriza não apenas a angústia da personagem, como à do próprio autor, que vivenciou na “própria carne” o tormento do cárcere.
Quando escreveu esta obra, Graciliano tinha sido preso a mando do governo ditatorial de Getúlio Vargas, daí, por exemplo, às constantes menções à “água de bacalhau”, subterfúgio utilizado pela polícia getulista para torturar seus adversários políticos: “Não me matem de fome nem me deem água de bacalhau. Eu me explico.” / “Não seria preciso me darem água de bacalhau. A garganta ardia-me, passei a língua seca nos beiços gretados. Água de bacalhau, dias de fome, noites em claro, um tipo martelando horas a fio...”/ “A garganta doía-me, os beiços colavam-se. Precisava beber água e pensava no caldo de bacalhau. Confessaria tudo, mostraria á roupa rasgada, os bilhetes, as cartas, os artigos.” / “As grades que a gente não pode tocar, tão nojentas são elas, as esteiras, as cortinas de pucumã, os muros grossos, fome, sede, caldo de bacalhau, e nesta miséria José Baía fabricando piteiras, pentes de tartaruga, objetos miúdos de casca de coco.”
O assassinato de seu rival Julião Tavares, que se deu com uma corda que ganhara de presente do pedinte Ivo, torna-se assim o ápice da sua desesperação, o terrível instante em que Luís da Silva se sentiu verdadeiramente "superior”.

É isso!
Iba Mendes
São Paulo, 2011.

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