5/29/2017

Machado de Assis: “Dom Casmurro”



Machado de Assis: “Dom Casmurro

Como recusar simpatia a um cavalheiro distinto e sentimental, admiravelmente bem-falante, um pouco desajeitado em questões práticas, sobretudo de dinheiro, sempre perdido em recordações da infância, da casa onde cresceu, do quintal, do poço, dos brinquedos e pregões antigos, venerador lacrimoso da mãe, além de obcecado pela primeira namorada?
Com essa indagação, Roberto Schwarz (“Duas Meninas”) tece uma longa crítica ao que ele denomina de “leitura conformista” de "Dom Casmurro", de Machado de Assis, citando como exemplo Alfredo Pujol, que escancaradamente condena Capitu por adultério, enquanto exalta os supostos atributos do "distinto cavalheiro" Bento Santiago, o Dom Casmurro.
A obra machadiana, por sua característica inovadora na prosa brasileira, sufoca ou camufla o caráter pouco estimável e, de certa forma, até monstruoso de Bentinho. Como duvidar de sua isenção e de seus juízos? Como não crer no cavalheiro cético e requintado - a superioridade em pessoa? “O nosso cidadão acima de qualquer suspeita - o bacharel com bela cultura, o filho amantíssimo, o marido cioso, o proprietário abastado, avesso aos negócios, o arrimo da parentela, o moço com educação católica, o passadista refinado, o cavalheiro bele époque...”
Embora a personagem narradora busque apresentar uma garantia moral aparentemente irrefutável, há que se desacreditar em absoluto desta irrepreensibilidade, visto que por trás dessa "inocência" se oculta um ciúme avassalador e doentio, o qual, segundo o mesmo Schwarz, “distorce o que vê, deduz mal, e não há razão para aceitar a sua versão dos fatos”.
Todavia, seriam as acusações de Bento Santiago apenas motivadas pelo seu ciúme? A semelhança física entre Ezequiel e Escobar, a presença deste em casa de Bentinho quando ele não está presente, as lágrimas e a explosão emocional de Capitu no enterro de Escobar não poderiam ser tomadas como vestígios de um genuíno ato de adultério?
Sobre isso escreve Schwarz: “...não há como ter certeza da culpa de Capitu, nem da inocência, o que aliás não configura um caso particular, pois a virtude certa não existe. Em compensação, está fora de dúvida que Bento escreve e arranja a sua história com a finalidade de condenar a mulher. Não está nela, mas no marido, o enigma cuja decifração importa”.
A tese de um “Dom Casmurro” pouco estimável, defendida por Schwarz, parece assim ser a mais plausível sob a ótica da crítica, embora não se possa categoricamente asseverar que tenha sido esta a intenção do seu autor. O advogado Bento Santiago, que conhecia os meandros da “arte de acusar” não hesitou em culpar a esposa, e, aliás, o fez habilidosamente, como um exímio defensor das leis e da moral. O ciúme de Bentinho, portanto, vislumbra-se como sendo a principal causa que culminou na acusação de adultério de sua mulher.
Ivan Cavalcanti Proença, que também defende a tese de um narrador pouco estimável, num comentário concernente a este suposto adultério de Capitu, faz as seguintes ponderações: “Capitu nos é pintada leviana, fútil, a que desde pequena só pensa em vestidos e penteados, a que tinha ambições de grandeza e luxo. Foi comparada, certa vez, pela crítica, à aranha que devora o macho depois de fecundada. E nós perguntaríamos até onde são válidas as discussões em torno de Capitu. Se vale a polêmica foi-não-foi, fez-não-fez. Melhor seria que meditássemos sobre o nosso D. Casmurro e até que ponto foi ele sim, isento e imparcial ao retratar a companheira desde a adolescência: ‘Se te lembras bem de Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca'. O nosso D. Casmurro está contando depois. Isto é, com seu próprio conceito firmado e a separação consumada. Portanto, foi assim mesmo a Capitu menina? Tudo se deu assim? Ou o ciúme, doentio (Otelo e Desdêmona) deturpava a visão dos fatos? A ponto de as lágrimas - clímax - junto ao corpo de Escobar surgirem como melhor argumento para Bentinho, prova inequívoca: ‘Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas... Momentos houve em que os olhos de Capitu fitavam o defunto, quais os da viúva’. Ciúme fruto também de uma paixão intensa, quase doentia”.
Já para Afrânio Coutinho: “se a narração houvesse sido em terceira pessoa, com um narrador onisciente, como no caso do romance Madame Bovary, de Flaubert, o narrador estaria em condições de esclarecer o desenrolar dos fatos, porque sendo ele o narrador situado na perspectiva do criador, tudo conhecia, de modo a não deixar pairando qualquer dúvida sobre as ocorrências... Diante desse quadro, sobra-nos o direito de duvidar de seu testemunho, tanto mais quanto não se baseia em evidências incontestáveis, mas em simples indícios, aumentados pela imaginação e deturpados pela desconfiança... Estaria Bentinho preparado pela própria culpa a atribuir aos outros um erro e felonia semelhantes?"
Logo, é possível concluir que o narrador Bento Santiago, o Dom Casmurro, organizou de tal modo os fatos que fez caber a Capitu adúltera da praia da Glória na Capitu de Matacavalos. Desta hipótese, deu ele por consumado o adultério, como se pode lê em: “...a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve”.
À luz da crítica de Schwarz, conclui-se, portanto, que Bentinho é um perfeito enganador. O ciúme exacerbado aliado aos sentimentos patriarcalistas em que se imbuía foram a causa dos seus delírios e de suas crises de ciúmes, a ponto de premeditar a morte da mulher, do filho e de si próprio. Acerca disso, escreveu Roberto Schwarz: “A instância mais dramática está no ciúme, que havia sido um entre os vários destemperos imaginativos do menino, e agora, associado à autoridade do proprietário e marido, se torna uma força de devastação”.
Enfim, se não é possível provar Capitu inocente, é também impossível, a partir das crises de ciúme de Bento Santiago, condená-la realmente de adultério. Talvez seja o caso de apenas considerar a hipótese de uso intencional da ambiguidade por parte de Machado de Assis, afinal, vindo deste extraordinário autor, tudo é possível ou impossível...

É isso!
Iba Mendes
São Paulo, 2003.

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