Guimarães Rosa: "Sagarana"
Guimarães Rosa foi um dos meus maiores desafio de leitura. Embora já tivesse lido outros contos do autor, foram os contos de "Sagarana" que me levou a vislumbrar as deliciosas veredas deste belíssimo escritor mineiro. O livro é composto dos seguintes contos: “O Burrinho Pedrês”, “A volta do marido pródigo, “Sarapalha”, “Duelo”, “Minha Gente”, “São Marcos”, “Corpo Fechado”, “Conversa de Bois” e “A hora e vez de Augusto Matraga”. Na 18ª edição, que encontrei num desses férteis sebos de São Paulo, enfeita a obra o delicioso ensaio de Oscar Lopes, que escreve:
Guimarães Rosa foi um dos meus maiores desafio de leitura. Embora já tivesse lido outros contos do autor, foram os contos de "Sagarana" que me levou a vislumbrar as deliciosas veredas deste belíssimo escritor mineiro. O livro é composto dos seguintes contos: “O Burrinho Pedrês”, “A volta do marido pródigo, “Sarapalha”, “Duelo”, “Minha Gente”, “São Marcos”, “Corpo Fechado”, “Conversa de Bois” e “A hora e vez de Augusto Matraga”. Na 18ª edição, que encontrei num desses férteis sebos de São Paulo, enfeita a obra o delicioso ensaio de Oscar Lopes, que escreve:
"A
construção do romance em flash-back serve, como a toda a melhor épica desde a
Odisseia, para melhor ordenação rítmica do recanto, num jogo de compensações;
serve ainda para enlace dos temas secundários (como as recorrências da
"canção de Seruiz", com o tema da saudade da terra natal; ou como o
desdobramento da experiência erótica até à fixação final, através,
nomeadamente, dos complexos que a figura de Diadorim representa); mas serve
sobretudo para pôr forma aguda e concreta a dialética do bem-e-mal, ou seja, do
pacto. Riobaldo adere a sucessivos chefes de jagunços, e acaba mesmo por ser um
desses chefes, porque descobre que os cangaceiros têm a sua ética. Á ética,
afinal, que a organização gentílica e, depois, feudal idealizou com Aquiles,
Ulisses, Rolando ou o Cid. Ética dotada de instituições, de uma ideologia e até
de uma retórica — pois assistimos a coisas como um julgamento em forma entre
cangaceiros; a luta entre bandos emaranha-se com lutas políticas estaduais ou
federais, o que a alguns dá o sentimento de levantamento revolucionário ou de
exército regular oficializado; e há discursos patrióticos, legalistas, com
todos os ingredientes demagógicos da retórica política brasileira at its worst.
O status final do narrador, feito proprietário pacato, sugere que a luta entre
bandos se resolvera, pelo menos em grande parte, com o extermínio dos
Hermógenes. Mas foi o pacto que o permitiu, quer dizer: a dialética do bem e do
mal, como fins ou como meios. Recordemos a propósito a Oréstia de Esquilo, em
que a moral gentílica da vingança, ou vendetta, entre clãs, ou dentro dos clãs,
se resolve absorvendo o último vingador, Orestes, e instituindo o tribunal da
Cidade, passando as Fúrias (deusas da 'Vingança antiga, retaliação meramente
familiar) ao serviço de uma nova forma de vingança, ou repressão, superior,
institucionalizada pelo Estado. Simplesmente, Guimarães Rosa, edificado por
mais dois milênios e meio de experiência histórica e pela evidência imediata do
seu mundo, reabre o problema que Esquilo julgara estar resolvido. Nenhumas
ilusões maniqueístas sobre o dualismo absoluto do bem e do mal. O homem
continua pactário. Ninguém chegou ainda à destrinça inequívoca, e, como insinua
a bela "estaria" "O Espelho", todos deveriam estremecer à
simples pergunta de "Você chegou a existir?" Hermógenes não estava
definitivo. Mas ainda ele não fora morto, e já nos Gerais havia um homem como
Habão que não sabe olhar para outro homem sem o ver na qualidade de força
trabalhadora anônima, reprodutora de investimento, tal como a Medusa, que
convertia, a um simples olhar, qualquer mortal em rochedo. O Taturana fez-se,
ele próprio, Habão, sem dar por isso. Todos continuamos Faustos, ou Orestes, e
mais inacabados são ainda os que o não sabem."
E, como texto-ilustrativo, selecionei este trecho do
conto "Conversa de boi", que segue como estímulo aos que também
desejam superar a dificuldade inicial de penetrar na maravilhosa linguagem do
genial autor de "Grandes Sertões: Veredas":
"Que já
houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é certo e
indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas, hoje-em-dia,
agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali, e em toda a parte, poderão os bichos
falar e serem entendidos, por você, por num, por todo o mundo, por qualquer um
filho de deus?!
— Falam,- sim
senhor, falam!... — afirma o Manuel Timborna, das porteirinhas, — filho do
Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa infinidade de timborninhas
barrigudos, que arrastam calças compridas e simulam todos o mesmo tamanho, a
mesma idade e o mesmo bom-parecer;— Manuel Timborna, que, em vez de caçar
serviço para fazer, vive falando invenções só lá dele mesmo, coisas que as
outras pessoas não sabem e nem querem escutar.
— Pode que
seja, Timborna. Isso não é de hoje:... "viso sub obscurum noctis
pecudesque locutae. Infandum!..." mas, e os bois? Os bois também?...
— Ora,
ora!... Esses é que são os mais!... Boi fala o tempo todo. Eu até posso contar
um caso acontecido que se deu.
— Só se eu
tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e pouco...
— Feito! Eu
acho que assim até fica mais merecido, que não seja".
É isso!
Iba Mendes
São Paulo, 2011.
São Paulo, 2011.
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