10/26/2017

À hora da prisão (Conto), de Valdomiro Silveira


À hora da prisão

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Sempre foi uma atroada, a mulher do Silvano. Bonita, isso então era até ali, mas até ali também ia a falta de juízo e parava. Nunca se viu coisa semelhante nos arredores! Moravam no capim, e a Brígida – foi o nome que lhe deram à pia do batismo – vivia entre os dentes de meio mundo: não havia quase quem não tivesse qualquer coisa a dizer de mal da mesma. As mulheres tinham-lhe uma jeriza danada, e falavam de raiva ou ciúmes; os homens falavam por falar; e saíam horrores a respeito dela.

Antes de se fechar o trato do casamento, avisaram ao Silvano que não caísse desse cavalo; raparigas formosas não faltam, agora o que não é muito fácil é o encontrarem-se formosas que o mesmo tempo sejam honestas e trabalhadeiras. Ora ninguém ousaria clamar contra a honra da Brígida, que andava guardada às sete chaves dos cuidados da mãe: mas, enfim, que diabo? − uma criatura que, quando vai ao arraial, está só voltando a cara pra trás e reparando em quanto moço vê, não pode ter muito pano na carapuça, e deste modo procedia ela.

O Silvano parece que não deu fé: se desse fé, teria antes pedido a Deus um bom morrer! A uns e outros retorquiu que a Brígida, por morar num fundo de roça, ficava curiosa, em chegando ao povoado, e pegava a atentar em todos os desconhecidos – moços e velhos, bem-compostos e feios. E também ela não lhe jurara amor ainda, e por consequência podia olhar a quem mais lhe aprouvesse. Teimou, bateu pé, e casou-se.

Não lhe tardaram os desgostos. A mulher, falando com certos sujeitinhos meio pelintras da redondeza, mudava completamente de tom; a voz tornava-se-lhe mais vagarosa, o olhar mais quebrado, o gesto mais cheio de fogo; tinha algumas conversas pouco permitidas à gente séria, uns risos escancarados, um andar bambo e provocador. Aparecendo-lhe um folgazão dos de fama, em casa, aceitava logo convite para cantarem modas, e ali em presença do Silvano ferravam direito na toada; mas afinal aquilo tudo tinha jeito de não ter segundas intenções, porque era tão inocente, e o Silvano ia aguentando.

Saiu um dia para São Pedro do Turvo, e nesse dia voltou, vindo encontrar em casa o Ernesto Carreiro, que corria como antigo namorado da Brígida. A prova que estavam tendo nada mostrava de ruim; porém não gostou de ver o Ernesto em casa, sabendo às claras, que ele durante muito tempo arrodeara a moça, com pouca resolução e coragem de pedi-la em casamento: não gostou, mas nada tugiu, fez cara alegre para o Ernesto e para a Brígida e tudo assim ficou.

Chegara-se ao fim de dezembro. Apesar de umas chuvas que de quando em quando caíam, o Silvano continuou no serviço de cinco alqueires de roça que empreitara: afastava-se do rancho à ruiva do amanhecer e voltava à ruiva do sol posto, porque era um mouro para o trabalho. Um dia, como de novo achasse de prática a mulher e o Ernesto, e logo que este se foi, falou à Brígida, com toda a brandura e amor, que evitasse tais visitas quando ele estivesse fora. Não duvidava de sua querida mulherzinha (e afagava-a), mas enfim ela não desconhecia que o Ernesto a namorara no passado, e havia muita língua má no mundo que seria capaz de inventar baixezas e dizê-las à conta dela.

Aquilo foi um tempo quente! A Brígida fitou nele uns olhos queimantes de fúria; não fosse tirá-la à mãe, se desconfiava dela! Conhecia ao Carreiro desde pequenina, pois era muito mais criança que ele, tinha muita liberdade, mas cada qual sabia do seu lugar. O Silvano, ao vê-la iracunda assim (que ela então se tornava mais tentadora do que nunca), nada mais fez do que beijá-la, abraçá-la, cobri-la de festinhas, prometendo-lhe que não lhe tocaria, de futuro, em tais amofinações. Ela ameigou o semblante, chorou seu pouco, e ele também não deixou de sentir os olhos um tanto aguados.

A noite do Natal rompeu linda que dava para encantar. São Pedro é longe, por isso quase ninguém assistiu à missa do galo; mas o Zequinha Floriano fez uma reza, e depois da reza havia de haver um fandango. Houve o fandango – dos que são capazes de deixar um soalho partido! – e o Silvano e a mulher estiveram rentinhos. Nem bem escureceu, já o povo principiou a aparecer; até hoje muitos se recordam da quantidade de violas que se via naquela função, e ficam admirados.

O Ernesto era triste para rasgar o pinho, cuera de verdade! Em se lembrando alguém dalgum divertimento, ouvia logo a recomendação:

— Não vá faltar o Ernesto Carreiro!

E não faltava em pagode nenhum, o dianho, não faltava. Todos o queriam para animar as reuniões; mutirão em que ele não estivesse, perdia metade do valor, e a moçada fugia de tal mutirão, de modo que o serviço perigava. Agrados e carinhos, todos os faziam ao malvado, e ele ia só serenando no bairro do capim, lisonjeado com tanta contemplação. Foi, pois, à reza do Zequinha Floriano, depois de haver tomado uma cabriúva, para limpar a garganta, e ninguém teve coragem de cantar antes dele; também, que voz macia nosso senhor lhe dera, que voz!

A Brígida, logo que o viu de lenço de setineta no pescoço, flor no chapéu novo, lacinho de fita de nobreza na viola, não sossegou mais. Olhava um minuto ao marido e meia hora ao Ernesto; quando este agarrou a cantar, ela sentiu-se amolentada da cabeça até os pés e pegou a apanhar laranja, até no sapateado; o Silvano, que era seu parceiro no fandango, pediu-lhe que reparasse na dança e não errasse daquele feitio. E muito embora forcejasse por ter paciência, o coitado estava com uns apertos no coração, que lhe doíam demais; houve um instante, quando estavam dando a volta, em que rogou à mulher, pelo amor de Deus, que não o atormentasse e fugisse de chocar tanto o folgazão. Ela deu no corpo um galeio de enfado, e continuou no mesmo sistema.

O Silvano estava de peito cortado: fazer-lhe a Brígida tamanha ingratidão, à vista do pavaréu, foi coisa que o deixou louco de tristeza e de zanga; apesar de ser um rapaz assentado, e não ter por costume virar, aproximou-se da dona da casa, logo que a primeira moda se acabou, e pediu uma queimada. Bebeu quase um martelo, duma vezada só; daí a pouco rugiam-lhe os ouvidos, as pálpebras tornavam-se-lhe preguiçosas e um enorme desejo de vozear alto como que o engasgava; ao em vez, porém, de fazer alarido e praguejar, sentou-se a um canto da sala, contemplativo, e pôs-se a pitar um cigarro que não tinha fim.

Nessa ocasião, o Bertoldo, também cantador afamado, empunhou a viola e disse:

— Companheirada, vamos tirar outra irara!

Todos se foram juntando, e as de saia eram as mais influídas. A Brígida, convidada pelo Ernesto Carreiro e sem consultar ao marido, ficou à frente do antigo namorado, como uma das primeiras. O Bertoldo gargarejou uma das modas pândegas e chulas que sabia, e o palmeio parece que começou num frenesi de loucura. O Silvano, então, pinchou ao largo o cigarro de macaia que não se acendia, e perfilou o tronco; o olhar queimava-lhe; as mãos tremiam-lhe; a sala como que se esvaziara, ficando apenas, para ele, a mulher e o maldito Carreiro... 

Depois, quando os viu falar assim de certo jeito, um à orelha do outro, no meio mesmo da dança não pôde conter-se mais: levantou-se que nem uma fera, puxou da cinta a garrucha fulminante, aproximou-se do rival e desfechou-lhe um tiro à queima-roupa. O tiro varou o queixo do Ernesto Carreiro, que foi caindo ao soalho, numa lagoa vermelha. O Silvano atirou a garrucha para o canto em que estivera, e pôs-se a remirar a Brígida, como se nada tivesse acontecido; e vendo-a branca tal e qual a cal da parede, as lágrimas deram de lhe correr pela cara abaixo, aos pares. Um silêncio terrível se fizera.

O Zequinha Floriano, rompendo da cozinha, intimou-lhe:

— Está preso à ordem do subdelegado!

Cercaram-no quase todos os caboclos, amarraram-no, magoaram-lhe as carnes: e ele, apatetado e lerdo, parecia não compreender o que lhe estavam aprontando. Assim, porém, que o mandaram sair, para ser conduzido à cadeia de São Pedro, uma dor cruciante como que lhe tomou a garganta inteira. Soluçou que nem um perdido, que nem um louco, e ao ver a mulher, que de longe o espiava, aterrorizada e pálida ainda, gritou-lhe:

— Você perdoa, Brígida, você perdoa?

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