10/26/2017

Mutirão (Conto), de Valdomiro Silveira


Mutirão

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Tovaca das grandes já cantou na mata-virgem, surucuá do peito amarelo já deu seus garganteados lá para as bandas do morro, e o sol está sai-não-sai. Faz um tempo de encantar. Nhô João da Grota, que é quem mais madruga por estes cafundós, já andou corre-correndo a invernada, para tocar as vacas pro curral, e está de volta, com o nariz vermelho por causa do frio; dendem, sua mulherzinha, pequetita e franzina, mas engraçada que em uma maravilha das mais miúdas, aprontou o chá de congonha e ficou esperando-o.

Assim que ele apontou, dendem botou a bandeja de chá com broinhas de fubá mimoso em riba da mesa; e enquanto o bule ainda está abafado, para ficar bom às direitas, ela vai arranjar um picuá com virado de galinha, porque nhô João da Grota convocou mutirão para uma derrubada. Ele chegou, entrou, sentou-se junto à mesa, e pegou a tratar de adquirir sustância para serviço até a hora do almoço; e nem bem acabou de bater a última broinha e engolir a derradeira xícara de chá, foi, renteando com a cerca, olhar se as vacas estavam comendo as espigas de milho do costume; depois, voltou, garrou o picuá e a ferramenta, e abalou para o espigão da derrubada.

Agora o sol já mostrou um ar de sua graça; uns fiinhos de luz riscaram as montanhas. A passarinhada gorgeia que é um Deus nos acuda. Os piripixios, revoando dois a dois por cima dos carurus amadurados, não têm mais propósito e pintam a manta; têm sabiás os arvoredos, que a gente chega a perder a conta deles; tirivas grasnam poderosamente; saíras pulam, bicando as frutas. Um tucano dos grandes, num voo vagaroso e cheio de importância, acaba de passar pelo meio da passarinhada, sentou um galho de juvévé; olhou de roda, e como está fomento, desceu a uma fruteira.

Nhô João da Grota ouvia tudo e nada via; baixava o olhar ao chão e ruminava projetos e mais projetos; a madeira que estava jurada de cair, daria um tanto; a lenha, outro tanto quase; e depois, quando estivesse tudo escampo, havia de plantar uns dez mil pés de café; quando o café pegasse a dar, − então, Jesus! − não haveria mãos a medir. Já tão longe deste mundo, que não percebeu a meia risada que os parceiros do mutirão soltaram, ao vê-lo passando arcado e banzando de tal jeito no sossego do caminho. Afastara-se bastante de casa, fronteava uma capaúva grandalhona, quando ouviu a voz do Maneco Furquim, que isto dizia:

— Nhô João! Ó nhô João! Espere a gente! Já se acha tão rico e soberbo que nem vê os pobrinhos?

Ficou enleado e sem ter coisa que servisse de resposta. Voltou-se para os lados de onde rompera a voz, e qual não foi o seu espanto, ao notar que a companheirada vinha ali, tendo-o por certo visto passar! E ele não a vira! Até gaguejou. Foi-se repondo, entretanto, pouco a pouco, a ponto de caçoar com os caboclos, atirando-lhes pilhérias cheias de afeto. A um chamava araponga, porque o via com a cabeça branca, branca; a segundo, que ladeava este, graúna, por ter pelo contrário o coco preto, preto; a outro, paca das mais guasqueiras, por andar ainda àquela hora, meia do dia, meia da noite. E as gargalhadas espalhavam-se no seio quieto da mata por onde seguiam.

O frio estava tinindo! Cada qual trazia seu ponche, seu xale-manta, sua japona, seu pala; e como de prevenção cada qual trouxera também os pés bem enfiados em sapatos ou tamancos, o rumor que levantavam, andando e gargalhando, parecia o de uma tropa de potros que estivesse a correr e relinchar por uma invernada – sem comparar uma coisa com a outra! O Chiquinho Gázeo, que dava mostras de ser o mais friento de todos, até batia a fila de dentes de cima com a de baixo, semelhando um sujeito amaleitado; o Rufino, magricela por amor de uma asma que nunca o largava, ia dizendo suas frases com a voz meio encoberta pela pieira; os demais nada diziam.

Apareceu o valo que marcava o princípio das terras de nhô João. Beirando-o desde a cerca de varas, chegava-se a uma aguada que as taiovas escondiam pela metade; era aí que devia de começar a forte lida. Chegados, pois, nhô João pôs à vista de todos uma bojuda garrafa de caninha, daquelas que fazem a gente vidrar os olhos, de tão gostosa; e, um por um, deram sua boquinha no gargalo. Afiaram as foices, só por luxo, porque elas vinham finas de véspera, experimentaram os machados, e o capitão do bando berrou:

— Um! Dois! Três!

À terceira palavra, a foiçaria desceu direito. Aquilo é que era zé-povinho cumba pro serviço! Tudo batia num só compasso, e firme até ali. Podia-se ouvir facilmente, numas cem braças em redor, o pausado resfolegar de todos os peitos; e o matinho baixo, então, mais se baixava, como por encanto, acumulando-se em pequenos feixes que erguiam ao ar a brancura igual das hásteas cortadas. Daí a nada, também, já estava tudo raso. Chegou-se ao matão feio. O garrafão de caninha andou outra vez de déu em déu. Sumiram-se as foices e os machados apareceram. E a forte lida continuou na mesma toada que dantes; com a diferença que agora, numas quinhentas braças em redondo, se poderiam ouvir as crebras machadadas. Alguns passarinhos protestavam, gritando, contra aquela invasão; mas ninguém dava fé, sequer, de tamanha e tão tola arrelia.

A espaços, vibravam dentre o barulho pedidos como este:

— Mané Guarirova, canta uma moda!

— Uma moda bem terna, Mané Guarirova! 

— Bem chorosa!

— Bem tremida!

O Mané Guarirova, fazendo-se surdo, prosseguia no trabalho, com afã. Quem o visse tão absorvido na lavra, mostrando-se mourejador como poucos, não seria capaz de adivinhar que ali se achava o cabra mais entusiasmado dos cateretês. Por isso mesmo lhe rogavam que cantasse. Os que rogavam não perderam seu tempo; a voz bonita daquele danado alteou-se regaladamente, com intervalos curtos regulados ao lascar das madeiras. A primeira moda foi assim:

“Tico-tico lari no quilão,
‘tá batendo c’o bico no chão,
andorinha fazendo verão,

por isso é que eu sempre digo:
querer bem não é bom, não,
ai!
querer bem não é bom, não!”

— Essa não serve, Guarirova! − lhe disseram, logo que terminou a trova.

— Por quê? – inquiriu ele.

— Porque é moda do norte, e aqui não há ninguém de lá.

— Então boto outra.

E de fato cantou por esta forma:

“Vai serrar pau de pinho
e também de canela,
pra fazer cinco portas,
vinte e cinco janelas;

pra matar a saudade,
que eu não posso mais co’ela:
puxa a serra, Mariana!
puxa a serra, Mariana!”

— Essa também é do norte, não serve! Foi o que lhe observaram.

— Pois do norte sou eu – rotorquiu ele; e sirvo muito!

— Olhem só a prosa!

— Pois se vocês bem sabem!

— Está bom. Cante uma modinha.

— Como coisa que sou agora algum sabiá. É cantar e mais cantar! Quem tem boca...

— Vai a Roma.

−... Não manda soprar, que ainda é melhor e mais importante.

Entrementes o sol fora subindo, subindo; já seus raios caíam direitinho sobre os troncos das perovas, de alto a baixo, o que vale dizer que podia ser meio-dia. A caboclada suava à grande: o próprio guarirova, destemido como raros, já tinha a testa orvalhada e a camisa de meia pingando. Nhô João da Grota convidou tudo para o almoço, o que foi uma ideia esplêndida, pois ninguém mais bateu machado nos arvoredos. Agruparam-se os parceiros à roda dos caldeirões enormes, que

fumegavam cheirosamente, e era de ver o jeito aforçurado de cada qual. Levantavam-se afirmações deste teor, a todo instante:

— Arre! Que já não posso mais!

— A fome é negra e maligna, nhô João da Grota!

— Estou com o rato no paiol, nhô João!

— Nhô João, quase morro de fraqueza!

Houve tempo e lugar para todas as coisas. Queixas não apareceram; muito pelo contrário, quando nhô João trouxe nova carregação de pinga, da tal que fazia vidrar os olhos vários corações agradecidos não se puderam conter:

— Mas você é um anjo, nhô João!

— Nhô João, você é um demônio tentador!

E outros e outros ditos, ao fim dos quais veio o café com mistura. Biscoitos, brevidades, bolos de arroz, o que de melhor se imagina para sobremesa de almoço, nada faltou naquele. Ao erguerem-se todos, cheios e fartos, não foram poucos os que sentiram bambas as pernas. O que logo passou, afinal, porque, por amor do serviço, ninguém quis quebrar as munhecas às direitas. E todos andaram, cantando:

“Quando eu for para a cadeia
levarei meu garrafão,
fão, fão;
não quero que ninguém me prenda,
oléré!
debaixo de seu pilão.”

A faina continuou como dantes. Guarucaias, vamirins, tapiás, caneleiras, corações, canjaranas, iam caindo uma a uma todas as árvores do espigão. Apenas uma tira, nada mais, restava para derrubar; e quando foi três horas, se tanto! – o alto do morro surgiu, embranquecido dos troncos que patenteavam lascas recentíssimas. Nada mais! Nada mais! – e a parceirada, juntando a ferramenta, reuniu-se a repousar, entre dois canchins grossos. O sol tremia no céu, quente e bravo; mas ali no meio das ramarias ainda verdes, havia uma frescura de encantar.

O Maneco Furquim, pegando do garrafão, cantou:

“Viva o cravo, viva a rosa,
viva a flor de maravilha,
viva o nosso João da Grota
e toda a sua família!”

A parceirada acompanhou, firme na toada. Depois, como estava tudo feito, cada qual tratou de abalar para seus pagos: o grupo desceu do morro, alegre que nem um bando de araguarís em fruteira, e nhô João da Grota vinha mais alegre do que todos.

Ao chegar à casa, sozinho, que os companheiros se tinham espalhado para diferentes rumos, falou à dendem, que labutava risonha e corada como uma aurora:

— Agora, sim, podemos esperar nossos filhos sem susto; o nosso futuro lá está, naquele espigão.

E aproximando-se dela, ainda mais, falou-lhe ao ouvido:

— Não precisamos agora de estar fugindo das luas!

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