12/08/2017

Ciúme (Conto), de Coelho Neto


Ciúme
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Um missionário que por ali passou, demorando-se dois dias sob as palhas podres dum velho curral, porque nenhum dos moradores, para que o santo homem não desse pelos torpes vícios que enegreciam as suas vidas, tão livres como as dos animais, quis hospedá-lo ou apenas visitá-lo, saiu aterrado daquela aldeia, mais encharcada em pecados do que a impura Sodoma e, nos campos, sacudiu, com horror, a poeira das sandálias.

A igreja cabia em ruínas e pastores, nas horas mais abrasadas, recolhiam os seus rebanhos à sombra fria das lajes da velha nave e ficavam profanando o sagrado muradal com cantares de amor, senão com o mesmo amor. O cemitério jazia desamparado, sem muro ou sebe que o protegesse contra os animais e não havia uma cruz em todo o vasto terreno tomado pelas ervas bravas.

Os sacramentos eram ali desconhecidos. As crianças ficavam com os nomes que lhes davam os pais sem que o batismo os confirmasse e purificasse ao mesmo tempo a almazinha maculada; não havia notícias de casamentos e, na hora extrema, ninguém se lembrava de reclamar uma vela e a presença de um padre para que a alma, prestes a partir, não saísse em trevas e carregada de pecados.

O missionário resumiu a sua impressão numa Frase: “E uma grande pocilga”. E era. Todavia, se o santo homem tivesse seguido um trilho sinuoso que, por entre velhas árvores, levava ao alto de um outeirinho alegre, teria encontrado os lírios daquele tremedal: dois velhinhos e tão puros que, até se dizia, à boca pequena, que recebiam no seu casebre visita de anjos e de santos.

Efetivamente, uma tarde, um velho zagal, que recolhia com o fato de cabras trêfegas, viu, no caminho do outeiro, um lindo moço louro, com azas mais brancas do que as das garças, subindo vagarosamente em direção ao casebre. Era um anjo do Senhor e, como os velhinhos nem sequer desciam ao mercado, logo se murmurou na aldeia que o mesmo Deus os sustentava milagrosamente mandando-lhes, por anjos, água pura e manjares.

Em verdade não se pode desejar vida mais santa do que a que levavam as duas criaturas perdidas em tão escuro marnel de crimes. Sempre juntos, ele e ela, não desciam ao povoado para que os seus trêmulos pés não tocassem a terra daqueles caminhos malditos nem os seus olhos esmorecidos vissem o rosto dum daqueles heréticos. Viviam na moradia solitária e tão arredados da impureza da aldeia como se estivessem a mil léguas de distância.

Contente com eles, já por serem virtuosos e, principalmente, porque conservavam a virtude em tão depravado meio, quis o Senhor recompensá-los generosamente com uma ação de grande misericórdia. Assim, uma tarde, estavam os dois velhinhos, como de costume, sob uma velha mangueira, plantada e tratada por eles, onde as cigarras e os gaturamos cantavam ao cerrar do dia, quando um velhinho, mais velho que eles, abordoado a um bastão florido, com uma sacola ao flanco, apareceu-lhes, como por encanto, pedindo agasalho, exatamente como fez Júpiter, outrora, procurando, como peregrino, a Filemon e Baucis.

A velha reconheceu prontamente o bom Deus sob o miserável disfarce e, numa emoção que a agitou suavemente, sorrindo com lágrimas e tão trêmula que nem podia juntar as mãos engelhadinhas, pôs-se a louvar o Criador, clamando que era indigna de receber na sua miséria Aquele que governava os mundos e premiava a justiça.

Mas o Senhor, tranquilizando-a, disse-lhe:

“Que se ela se comovia por vê-lo ali, à sombra da velha mangueira, mais se comovia a sua Bondade por ter, naquela terra tão envilecida, duas criaturas sãs que lhe abrandavam a cólera suspendendo-lhe o movimento de vingança que mereciam gente e terra tão vis”. E, aceitando a oferta dos velhinhos, sentou-se com eles à mesa frugal da ceia e participou, com apetite, da broa e dum pedaço de anho que era tudo que havia no armário...

 Ao fim do repasto — já noite negra, posto que o outeirinho resplandecesse porque nele estava a própria Luz — o Senhor disse aos seus hóspedes que lhe pedissem uma graça. Os dois hesitaram, encolhidos de vexame, e foi o mesmo Deus quem, de novo, falou:

— Quereis tornar à mocidade? Dar-vos-ei a mesma força e a mesma beleza que tínheis quando, na antiga ermida, em presença do cura, vos recebestes como esposos.

O velhinho sorriu esfregando as mãos a pensar naquela mocidade ardente e tão bem vivida! Ah! como era bom ser moço, poder andar, correr, bailar, subir ao monte, ter força no braço e ligeireza nas pernas. Ah! como era bom ser moço!

Por baixo da mesa o seu joelho magro e trêmulo tocou o joelho trêmulo da velhinha e o Senhor esperava pacientemente com um doce sorriso na face venerável. Então a velhinha falou:

— Senhor, o que a Vossa Divina Graça nos oferece ó, em verdade, um presente divino, só o mesmo Deus, como sois, poderia fazê-lo; mas se a criaturas vis, como somos, quisésseis permitir a sinceridade, eu vos agradeceria o que nos ofereceis com um não respeitoso. Ser moço é, em verdade, um grande bem, mas não depois de haver sido velho. O que torna a vida agradável é a esperança e que esperança podemos nós ter quando, com a experiência de cem anos pesados, sabemos que tudo é ilusão? Não, Senhor — não queremos voltar à mocidade. A vida é um livro que se não relê. Já que nos permitis a escolha, ouso pedir-vos que nos concedais a Graça de morrermos sem ânsia, no mesmo minuto, para que um não tenha de chorar o outro e não sofra a agonia, mesmo rápida, da solidão e da saudade. Esta é a graça que vos pedimos, Senhor.

E, Deus, comovido, prometeu aos velhos que assim como desejavam se havia de cumprir. Disse e logo um clarão iluminou o casebre deslumbrando os velhinhos que entraram a tremer e, quando os olhos tornaram a ver, o recinto estava como dantes — em silêncio e sobre a mesa ardia escassamente a candeia das vigílias.

— Queres ver que foi sonho? exclamou a velha.

— Sim, foi sonho, afirmou o velho; mas lá estava um prato, conservando ainda um pouco de pão e um pouco de anho, prova de que um terceiro ali havia estado e esse terceiro fora o mesmo Deus que os visitara.

— Tu devias ter pedido a mocidade, disse baixinho o velho; e a velha, firme na sua ideia:

— Foi melhor o que pedi.

Uma semana depois achavam-se os dois velhos sentados sob a mangueira, gozando o fresco da tarde e ouvindo as cigarras e os gaturamos, quando uma nuvem lhes passou pelos olhos. Ouviram uma doce música, sentiram um aroma gratíssimo e inclinaram-se, um sobre o outro, conservando-se sentados e imóveis, sob a velha mangueira cheia de cigarras e de gaturamos. Logo dois anjos desceram e tomaram as almas dos velhinhos subindo com elas ao céu, todo estrelado e com um luar que luzia como se se houvesse preparado no Paraíso uma grande festa para os receber.

Os corpos lá ficaram vazios, no banco, sob a velha mangueira, junto ao casebre do outeirinho e ali o tempo os há de consumir sem que os da aldeia deem pela morte daqueles justos.

Subiam os anjos com as almas e, de repente, o que levava a da velha, ouviu-lhe a voz doce a perguntar:

— E ele!

— Vem perto, nos braços de um querubim, descansa.

— Não é uma virgem que o vem trazendo?

— Não, é um querubim.

— Ah!

E subiam. Apesar do voo ligeiro dos anjos levaram toda a noite a subir até que avistaram a porta esplêndida do céu, onde uma turba de serafins desfolhava flores e esparzia aromas.

A alma da velha, sempre preocupada, não se aquietava entre os braços de seu condutor, indiferente aos esplendores celestiais, só perguntando pela outra. “Vem aí”, respondia o anjo sorrindo e assim chegaram à presença dos Tronos que guardam a entrada do Paraíso. Um deles adiantou-se e, tomando a alma da velha, levou-a a um grande santo que se movia entre retortas e alambiques em um imenso laboratório.

O santo trancou-se com a alma da velhinha e, ao cabo de uns minutos, abrindo de par em par as portas rutilantes, declarou que havia encontrado entre as virtudes, que eram magníficas, 55 % de ciúme.

Levantou-se uma discussão entre os anjos: um bradando que o ciúme era um feio pecado, porque a base do amor deve ser a confiança recíproca, outros afirmando que o ciúme era a mesma essência do amor. Deus decidiu a favor da velha recebendo-a, a sorrir, à sua direita e foi a vez de ser examinada a alma do velho.

Não foi longa a operação e o santo, encarregado do laboratório etéreo, abrindo as portas, declarou, carrancudo, que havia encontrado vestígios de um amor impuro.

A alma da velha estremeceu à direita de Deus. E o santo continuou com precisão a expor o crime divulgado pela análise:

“Certa noite, na primavera, no caminho do outeiro, descia uma moçoila para a fonte, com a bilha ao ombro, quando esta alma toda se agitou num desejo ardente e...” As virgens coraram e, batendo azas, fugiram espavoridas e a alma da velha tremia à direita de Deus e soluçava:

— Ah! antes eu não viesse ao céu! Antes eu não viesse porque conservava a ilusão única da minha vida. A Eachel! A Eachel! Estou a vê-la, a desavergonhada, com a bilha ao ombro, a caminho da fonte. Antes ou não viesse ao céu.

E a alma do velho, entre os dedos do santo, tremia, num grande medo. E os juízes declararam — “Que aquele pecado merecia as penas infernais”.

Ia o santo soltar a alma pecadora quando a outra, a da velha, pôs-se a gemer aflita, rojando-se aos pés de Deus:

— Para o inferno não, Deus de misericórdia! Para o inferno não, meu Senhor!

— Louvo a tua caridade, disse o Senhor comovido, porque tens pena daquele que te traiu. Não queres que pague nas chamas o seu crime?

— Ah! Senhor, não é pelas chamas, não. Pouco se me dá o fogo que lá arde...

— Então por que é? perguntou o Senhor e os anjos, cheios de curiosidade, cercaram a alma chorosa da velhinha:

— Ah! Senhor, a falar verdade: é porque sempre ouvi dizer que o inferno está cheio de mulheres bonitas.

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