12/07/2017

O passado (Conto), de Coelho Neto



O passado
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Depois de um ano bem longo de apartamento encontramo-nos peito a peito num abraço forte que, por muito apertado, como que nos espremeu o coração fazendo com que nos subisse aos olhos uma umidade que o nosso pudor de homens logo secou.

Não nos ficava bem chorar na gare de uma estação atulhada de gente, com tantos olhos curiosos voltados para o nosso lado, porque o povo começa a interessar-se pelos seus poetas e ali estava o maior da nossa geração: Bilac.

Olhei-o depois, vagarosamente e, a princípio, pareceu-me o mesmo rapaz robusto e sadio do bom tempo. Ah! o bom tempo! Pouco a pouco, porém, (meus olhos estavam deslumbrados pela emoção) comecei a notar nos cabelos negros do fino cantor das Virgens mortas uns sulcos de rara alvura, uns fios claros como uma teia que se tramasse naquele esplêndido negror.

Diabo! disse comigo numa explosão de egoísmo, somos da mesma idade e se ele tem esse “sinal dos tempos “ eu o devo ter também e, maquinalmente, passei a mão pelos cabelos como se quisesse sentir os mortos, os arrefecidos fios entre os que ainda conservam o tom louro da mocidade.

Não os senti, não podia senti-los, e, confesso, fiquei com um pequenino orgulho como se houvesse reconhecido a minha resistência maior. Mas o amigo, o irmão, como nos fôssemos lentamente dirigindo para o carro, lançou também um olhar perscrutador à minha cabeça e, como eu, ufanamente, alisou os seus cabelos negros e luzidios. E pusemo-nos a falar dos amigos distantes.

Enquanto o carro rodava, ia eu pedindo notícias de um e de outro, de certos lugares amados e o poeta referia-se aos homens com tristeza, quanto às belezas da terra sempre as mesmas, talvez maiores, realçadas por um ano de copiosos aguaceiros e de soalheiras abrasadoras. Só os homens mudam.

— Mas tu estás o mesmo.

— E tu?!...

Como mentíamos! Eu vira-lhe os cabelos brancos e ele também descobrira os meus.

Mentíamos ambos.

Quando nos concentramos, no meu gabinete, entre livros, discorremos largamente sobre os dias passados — dias de esperança, sem preocupações, sem tormento. Havia dificuldades, mas com que garbo as vencíamos e o riso era o clarim com que saíamos a pelejar, entretanto...

— Francamente, suspirou o poeta, se Deus me propusesse voltar à mocidade com a condição de repassar os sofrimentos que curti, eu lhe diria:

— Muito obrigado, Senhor!

— Hão querias?

— Não.

 — Pois eu daria alguma coisa para tornar a esse tempo.

Houve um silêncio entre nós, interrompido estrondosamente por um dos meus filhos que entrou cavalgando uma bengala. Enquanto a criança circulou pelo gabinete estivemos calados, logo, porém que, ao apelo tartareado do irmão mais moço, esfuziou pela porta, aos brados, galopando, voltamos ao nosso assunto.

— Queres saber? Trazes apenas da travessia que juntos fizemos as impressões amáveis. Há memórias que repelem as recordações amargas. Se houvesses lentamente descido pelas barrancas escalavradas de um abismo, rasgando as carnes nas arestas da pedra, deixando as roupas, que são as ilusões, (porque nós andamos vestidos de ilusões) nos espinhais, sangrando, arquejando, simplesmente porque na altura o ar era mais fresco e cheiroso e de lá os horizontes pareciam mais amplos e nas bordas dos rochedos viste flores de cor admirável e ninhos cheios de pássaros, quererias voltar ao sofrimento o aos receios da descida? não, por certo. Pois a nossa vida, no passado, foi isso, senão foi pior.

— Nem tanto.

— Teríamos de rever os amigos mortos e passaríamos pela dor de os perder de novo, seríamos pungidos pelas mesmas desilusões.

— E os gozos?

— Gozo! O gozo é o prazer tranquilo que nunca tivemos. O homem que janta, às pressas, num hotel de estação, não aprecia o que come. O nosso prazer era um delírio e queres a prova? somos dois entediados.

— Eu, não.

— Tu, não? E deixaste o Rio e vieste procurar o silêncio duma cidade do interior. Que é isso senão indiferença? O teu prazer hoje é tranquilo, como convém. Tens a esposa, os filhos, o aconchego seguro, pensas no amanhã — és homem, enfim. E que eras tu? um visionário que vivias acumulando utopias e colhendo desenganos. Queres saber? Eu não olho para o passado com saudade, senão com tristeza e pena do que lá deixei, que foi muito, foi tudo, devo dizer.

Demais, para recordar esses dias extintos, não careço da memória — tenho os achaques. Pensas que venho por essas serras acima por gosto? Não sou alpinista. Venho empurrado por esse mesmo passado que me deixou assim, como vês. Se me dissessem — volta ao passado e virás suavemente pela vida sem moléstias, caminhando sobre libras esterlinas, livre das perfídias, da inveja, do ódio mesquinho e das discussões políticas, eu ainda pediria alguma coisa ao bom Deus?...

— ?

— Que me fizesse bronco, mais bronco que um penhasco, para não ser perturbado na minha felicidade pela inteligência. Não há coisa pior, meu amigo. O “Por quê?” é pior que o abutre de Prometeu; querer saber é o diabo. Não há nada como a indiferença dos lorpas e das coisas. Viver como a água que corre cantando por entre ribas verdes sem se preocupar com o destino — se vai direita ao mar ou se tem de rebalsar-se num açude para depois descer a uma azenha e virar a mó. Isso é que é. Mas viver a vida vivida com todas as suas vicissitudes, nunca! E queres saber para mim deve ser esse o suplício infernal. Morre um desgraçado e, na outra existência, é condenado a repassar todos os sofrimentos que o atormentaram na primeira provação — dores, falta de agasalho, dias de solidão, noites de insônia, intrigas, o diabo...

— E tu que não falas dum só momento feliz, porque os tivemos.

— Gotas de água no absinto.

— Que pessimismo, homem. Isso é influência do dia, que está taciturno, com essas nuvens pardas. Vamos dar uma volta pela cidade. Conheces Campinas? Já aqui estiveste?

— Sim, em 1892, horas apenas.

— Pois vamos dar uma volta.

Saímos. O dia era triste, nublado; nos telhados das casas corvos negros, pousados numa imobilidade de figuras de bronze, concorriam para a melancolia que nos ia encharcando a alma. Em uma das praças cantava a água dum chafariz. Começou a polvilhar uma neblina fria, que ia abrumando o horizonte. Amiudamos os passos, corremos curvados, com as golas dos casacos levantadas. Quando nos refugiamos na Minerva — justamente o caixeiro chegava para o muito conhecido: “Que há de ser?”— a chuva caiu forte, aos jorros, ruflando na vidraçaria e o poeta, sacudindo-se, muito cauteloso, arrepiado e arrependido de haver saído sem o guarda-chuva, resmungou contra o tempo pérfido:

— Diabo! esta molhadela agora...

— Quê? estás impressionado!

— Então? Que pensas? Julgas, talvez, que somos ainda aqueles doidos que afrontávamos aguaceiros como o famoso que apanhamos desde o largo do Rocio até à rua do Riachuelo uma noite de carnaval? Pois sim!... Hoje os médicos nem querem que eu apanhe sereno. E tu? O caixeiro serviu-nos dois grogues. Lembras-te da tua volta do rio de ouro, quando lá foste com Moisés Frontin para a maravilha da água em seis dias? parecias um daqueles bárbaros de Armínio descritos por Tácito.

— Se me lembro! molhado até os ossos.

— E nada, hein?

— Fome apenas.

— Bom tempo!

E o poeta, talvez para não cair em contradição, pôs-se a mexer lentamente o seu grogue, mas bem que lhe notei certa ondulação do peito como se ele houvesse engolido um suspiro. Por fim, não se contendo, disse:

— Estamos velhos, meu amigo.

Eu afirmei num aceno, descorçoado. E, calados, ficamos a ouvir a chuva que jorrava grossa.

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