12/08/2017

O galo (Conto), de Coelho Neto



O galo

Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2017)

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Todo curvado e atento, a olhar as entranhas sangrentas dum galo, o meu amigo Galracho, harúspice e rosa-cruz, venerador de Peladan, sar nos cartões de visita e primeiro oficial do correio, na lúcida manhã de janeiro, enquanto o Menino seguia para o templo, a cumprir a Lei Judaica, santa pela intenção e higiênica pelos resultados, tirava augúrios no fundo recôndito de um quarto discreto, onde se empilham caixotes nos quais, à guisa de altar, as vítimas palpitam e mostram nas vísceras os arcanos do futuro.

Galracho, em robe de chambre sacerdotal, com um facalhão inglês, de lâmina luzente e larga, lembrava um sacrificador do antigo tempo.

Quando entrei, sentindo os meus passos no soalho que range, voltou a cabeça e fitou-me com os seus olhos de míope, desarmados das poderosas lentes. Não me reconheceu de pronto, mas ouvindo-me a voz, tranquilizou-se e acenou misteriosamente para que eu encostasse a porta a fim de que a senhora, que é alegre e incrédula, não interrompesse a cerimônia com o seu riso e com os seus comentários mordentes.

Galracho suava em bicas naquela estufa esotérica e depósito de velhas caixas. Um raio de sol, descendo pela claraboia, dourava a vítima gorda em torno da qual esvoaçavam gulosamente, desrespeitosamente moscas zumbidoras e o harúspice, com as mãos mais vermelhas do que as de um magarefe, tomava notas ligeiras numa larga folha de papel toda manchada de sangue.

— Que diabo fazes tu aqui, Galracho?

— Não vez? estou tirando augúrios, como os nossos pais romanos. Leio o futuro. Leio-o nas entranhas deste galo como se o lesse nos mesmos livros da sibila. Estava agora justamente interpretando o fígado. Ah! meu amigo, suspirou Galracho meneando a cabeça, em grande e abatido desalento — as coisas não nos sorriem. Vamos ter moléstias este ano, moléstias mortais e muitas.

— Epidemias?!

— Epidemias... não digo. Há muita gordura no fígado, vê — o galo está gordo demais.

— Divino é que ele está

—... e a enxundia confunde as linhas do mistério. Não te posso dizer se teremos epidemias; afirmo-te, porém, que teremos moléstias.

— Isso também eu afirmo, mesmo sem olhar as entranhas do bicho.

— Olha aqui a moela. Que vês nela?

— Eu... eu vejo que o galo morreu em jejum, ou, antes, tendo iludido a gana com uns granizos e areia.
— Sabes que quer dizer isto? Sabes?

E a voz de Galracho silvava e os seus olhos de míope faiscavam.

— Quer dizer que não atiraste milho ao poleiro.

— Não, quer dizer que vamos ter fome! fome!!! Não a fome que sofreram os lídios, mas...

— Uma fome modesta, assim como quem diz: meia ração.

— Isso: meia ração; meia ração ó bendito. Vamos passar à meia ração. E Galracho cocou a cabeça intrigado: O diabo é a gordura! Quase que não posso interpretar com tanta banha. Mas cá está a fome, cá está!

— Olha, Galracho, faze como José; previne-te — enche a despensa e o galinheiro, põe-te em guarda e não esqueças o meu talher. Mas o grande amigo saltou elétrico, arrepiado, numa inspiração.

— Olha o fel: a política: está túmido e negro. Vamos ter lutas, lutas tremendas. Ah! meu amigo, no ano passado, consultando as entranhas de uma pata...

— Tão gorda como este galo?

— Não, mais magra, (era uma pata própria para o mistério) eu anunciei todas as calamidades que nos haviam de flagelar. Disse que o presidente seria substituído...

— E foi, realmente.

— Disse que havíamos de perder um grande homem.

— Perdemos vários, a pata foi sóbria; é verdade que estava magra.

— Prognostiquei o nascimento do Augusto.

— Tua senhora, em outubro, já se sentia mal e, em março, avisado amigo, levamos o lindo Augusto à pia.

— É verdade! Vi tudo na pata.

— É extraordinário. E agora no galo?

— Vejo todo o ano em que entramos. Chamo a tua atenção para aquela gordura que se vai fundindo ao calor do sol.

— E que diabo ó aquilo na tua sombria ciência?

— Aquilo? pois não vês? a gordura é dourada, não é? pois é um projeto de conversão do papel moeda.

— Em ouro, compreendo.

E Galracho meditou e disse:

— E pôde ser também uma tentativa revisionista.

— E sobre o Código Civil, que diz o galo?

— Tem muita gordura, meu amigo, e a gordura é o embaraço. Vou agora consultar uns velhos livros sibilinos para ordenar o oráculo. Espera-me um instante no meu gabinete, tens lá a rede, livros e uma caixa de música com doze peças.

Dirigi-me ao gabinete, tomei um livro ao acaso — era um romance venusino com gravuras que fariam humilhação aos camafeus antigos, dei corda à caixa de música e afundei molemente na rede, ouvindo o repinicar do Trovador e deliciando-me com uma história de alcova, ardentemente ilustrada. Despertei em sobressalto, sacudido pelo amigo Galracho que me chamava para o almoço.

— Doce sono! exclamei esticando-me nas pontas dos pés. Dorme-se bem neste gabinete.

A caixa emudecera e o livro jazia escancarado sob a rede expondo uma cena lúbrica aos olhos pudibundos do ledor de entranhas.

Lá fomos ao almoço e, enquanto roíamos azeitonas e barrávamos, com manteiga fresca, o pão branco e mole, levantou-se uma questão. Galracho afirmava que as entranhas do galo gordo haviam-lhe augurado um sucesso estranho e tão novo que ele, apesar de haver consultado todos os mestres da ciência, não conseguira decifrar. E Galracho estava, em verdade, sombrio e preocupado e, tão distraindo estava que, com vagar, soprava para o prato toda a polpa das azeitonas e engolia, com gosto, os caroços. Uma terrina, fumegante e cheirosa, apareceu e ocupou, com grandeza e brilho, o centro florido da mesa. Galracho meditava, enquanto a senhora ia enchendo os pratos com uma canja, toda lentejoulada de olhos de ouro e com paio às rodelas. Cheirava e espalhava por toda a casa o seu apetitoso cheiro.

— Galracho, disse eu, baixa à realidade: deixa lá o transcendente, toma a tua colher e atira-te à canja. Deixa lá o sucesso: que venha e, para que não nos encontre fracos, comamos e bebamos.

— Não, meu amigo, não; o que eu achei no galo não me sai da cabeça. Ali há sucesso e grande!

— Então que foi? dize lá!

— Que foi! que havia de ser? um ovo, homem, achei um ovo.

— Superfetação...

— Qual superfetação!

— Velhice... e eu ia comendo.

— Qual velhice! Um ovo autêntico... num galo. Este país está perdido, meu amigo; irremissivelmente perdido. Nem Deus o salva!

— Por causa do ovo?

— Então? Queres ver?

E, arrebatadamente, Galracho deixou a mesa, correu ao santuário e eu ouvi um urro, um verdadeiro urro e logo o harúspice reapareceu tremendo de terror sagrado, com os cabelos em pé, lívido, bradando:

— Que é do galo?

E a senhora, serenamente, sorrindo, mostrou a terrina que rescendia dizendo ao esposo alarmado:

— Está aqui, homem, não te apoquentes — aproveitei-o para a canja; estava tão gordo...

— O galo profético! Estamos perdidos!

E Galracho deixou-se cair pesadamente no sofá e pôs-se a dizer com uma voz tão soturna, rolando uns olhos tão apavorados: “Estamos perdidos! Estamos perdidos!” que eu, francamente, não descansei enquanto não me vi livre do diabo do galo gordo e carregado de vaticínios.

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