11/01/2018

Dona Expedita (Conto), de Monteiro Lobato



Dona Expedita

— …

— Minha idade? Trinta e seis...

— Então, venha.

Sempre que dona Expedita se anunciava no jornal, dando um número de telefone, aquele diálogo se repetia. Seduzidas pelos termos do anúncio, as donas de casa telefonavam-lhe para “tratar” — e vinha inevitavelmente a pergunta sobre a idade, com a também inevitável resposta dos trinta e seis anos. Isso desde antes da Grande Guerra. Veio o 1914 — ela continuou nos trinta e seis. Veio a batalha do Marne; veio o armistício — ela firme nos trinta e seis. Tratado de Versalhes — trinta e seis. Começos de Hitler e Mussolini — trinta e seis. Convenção de Munique — trinta e seis...

A futura guerra a reencontrará nos trinta e seis. O mais teimoso dos empaques! Dona Expedita já está “pendurada”, escorada de todos os lados, mas não tem ânimo de abandonar a casa dos trinta e seis anos — tão simpática!

E, como só tem trinta e seis anos, veste-se à moda dessa idade, um pouco mais vistosamente do que a justa medida aconselha. Erro grande! Se à força de cores claras, ruges e batons, não mantivesse aos olhos do mundo os seus famosos trinta e seis, era provável que desse a ideia duma bem aceitável matrona de sessenta...

Dona Expedita é “tia”. Amor só teve um lá pela juventude, do qual às vezes, nos “momentos de primavera”, ainda fala. Ah, que lindo moço! Um príncipe. Passou um dia a cavalo pela sua janela. Passou na tarde seguinte e ousou um cumprimento. Passou e repassou durante duas semanas — e foram duas semanas de cumprimentos e olhares de fogo. E só. Não passou mais — desapareceu da cidade para sempre.

O coração da gentil Expedita pulsou intensamente naqueles maravilhosos quinze dias — e nunca mais. Nunca mais namorou ou amou ninguém — por causa da casmurrice do pai.

Seu pai era um caturra de barbas à Von Tirpitz, português irredutível, desses que fogem de certos romances de Camilo e reentram na vida. Feroz contra o sentimentalismo. Não admitia namoros em casa, e nem que se pronunciasse a palavra casamento. Como vivesse setenta anos, forçou as duas únicas filhas a se estiolarem ao pé da sua catarreira crônica. “Filhas são para cuidar da casa e da gente.”

Morreu, afinal, e arruinado. As duas “tias” venderam a casa para pagamento das contas e tiveram de empregar-se. Sem educação técnica, os únicos empregos antolhados foram os de criada-grave, dama de companhia ou “tomadeira de conta” — graus levemente superiores à crua profissão normal de criada comum. O fato de serem de “boa família” autorizava-as ao estacionamento nesse degrau um pouco acima do último.

Um dia a mais velha morreu. Dona Expedita ficou só no mundo. Que fazer, senão viver? Foi vivendo e especializando-se em lidar com patroas. Por fim distraía-se com isso. Mudar de emprego era mudar de ambiente — ver caras novas, coisas novas, tipos novos. Um cinema — o seu cinema! O ordenado, sempre mesquinho. O maior de que se lembrava fora de cento e cinquenta mil-réis. Caiu depois para cento e vinte; depois para cem; depois oitenta. Inexplicavelmente as patroas iam-lhe diminuindo a paga a despeito da sua permanência na linda idade dos trinta e seis anos...

Dona Expedita colecionava patroas. Teve-as de todos os tipos e naipes — das que obrigam as criadas a comprar o açúcar com que adoçam o café às que voltam para casa de manhã e nunca lançam os olhos sobre o caderno de compras. Se fosse escritora teria deixado o mais pitoresco dos livros. Bastava que fixasse metade do que viu e “padeceu”. O capítulo das pequeninas decepções seria dos melhores — como aquele caso dos quatrocentos mil-réis...

Foi certa vez em que, saída de um emprego, andava em procura de outro. Nessas ocasiões costumava encostar-se à casa de uma família que se dera com a sua, e lá ficava um mês ou dois até conseguir nova colocação. Pagava a hospedagem fazendo doces, no que era perita, sobretudo num certo bolo inglês que mudou de nome, passando a chamar-se o “bolo de dona Expedita”. Nesses interregnos comprava todos os dias um jornal especializado em anúncios domésticos, no qual lia atentamente a seção do “procura-se”. Com a velha experiência adquirida, adivinhava pela redação as condições reais do emprego.

— Porque “elas” publicam aqui uma coisa e querem outra — comentava filosoficamente, batendo no jornal. — Para esconder o leite, não há como as patroas!

E ia lendo, de óculos na ponta do nariz: “Precisa-se duma senhora de meia-idade para servicinhos leves”.

— Hum! Quem lê isto pensa que é assim mesmo — mas não é. O tal servicinho leve não passa de isca — é a minhoca do anzol. A mim é que não me enganam, as biscas...

Lia todos os “procura-se”, com um comentário para cada um, até que se detinha no que lhe cheirava melhor. “Precisa-se duma senhora de meia-idade para serviços leves em casa de fino tratamento.”

— Este, quem sabe? Se é casa de fino tratamento, pelo menos fartura há de haver. Vou telefonar.

E vinha a telefonada do costume com a eterna declaração dos trinta e seis anos.

O hábito de lidar com patroas manhosas levou-a a lançar mão de vários recursos estratégicos; um deles: só “tratar” pelo telefone e não dar-se como ela mesma. “Estou falando em nome duma amiga que procura emprego.” Desse modo tinha mais liberdade e jeito de sondar a “bisca”.

— Essa amiga é uma excelente criatura — e vinham bem dosados elogios.

— Só que não gosta de serviços pesados.

— Que idade?

— Trinta e seis anos. Senhora de muito boa família — mas por menos de cento e cinquenta mil-réis nunca se empregou.

— É muito. Aqui o mais que pagamos é cento e dez — sendo boa.

— Não sei se ela aceitará. Hei de ver. Mas qual é o serviço?

— Leve. Cuidar da casa, fiscalizar a cozinha, espanar — arrumar...

— Arrumar? Então é arrumadeira que a senhora quer?

E dona Expedita pendurava o fone, arrufada, murmurando: “Outro ofício!”. O caso dos quatrocentos mil-réis foi o seguinte. Ela andava sem emprego e

é procurá-lo na seção do “procura-se”. Súbito, esbarrou com esta maravilha: “Precisa-se duma senhora de meia-idade para fazer companhia a uma enferma; ordenado, quatrocentos mil-réis”.

Dona Expedita esfregou os olhos. Leu outra vez. Não acreditou. Foi em busca duns óculos novos adquiridos na véspera. Sim. Lá estava escrito quatrocentos mil-réis!...

A possibilidade de apanhar um emprego único no mundo fê-la pular. Correu é vestir-se, a pôr o chapeuzinho, a avivar as cores do rosto e voou pelas ruas afora.

Foi dar com os costados numa rua humilde; nem rua era — numa “avenida”. Defronte à casa indicada — casinha de porta e duas janelas — havia uma dúzia de pretendentes.

— Será possível? O jornal saiu agorinha e já tanta gente por aqui?

Notou que entre as postulantes predominavam senhoras bem-vestidas, com o aspecto de “damas envergonhadas”. Natural que assim fosse porque um emprego de quatrocentos mil-réis era positivamente um fenômeno. Nos seus... trinta e seis anos de vida terrena jamais tivera notícia de nenhum. Quatrocentos por mês! Que mina! Mas como um emprego assim em casa tão modesta? “Já sei. O emprego não é aqui. Aqui é onde se trata — casa do jardineiro, com certeza...”

Dona Expedita observou que as postulantes entravam de cara risonha e saíam de cabeça baixa. Evidentemente a decepção da recusa. E o seu coração batia de gosto ao ver que todas iam sendo recusadas. Quem sabe? Quem sabe se o destino marcara justamente a ela como a eleita?

Chegou por fim a sua vez. Entrou. Foi recebida por uma velha na cama.

Dona Expedita nem precisou falar. A velha foi logo dizendo:

— Houve erro no jornal. Mandei por quarenta mil-réis e puseram quatrocentos... Tinha graça eu pagar quatrocentos a uma criada, eu que vivo à custa do meu filho, sargento da polícia, que nem isso ganha por mês...

Dona Expedita retirou-se com cara exatamente igual à das outras.

O pior da luta entre criados e patroas é que estas são compelidas a exigir o máximo, e as criadas, por natural defesa, querem o mínimo. Nunca jamais haverá acordo, porque é choque de totalitarismo com democracia.

Um dia, entretanto, dona Expedita teve a maior das surpresas: encontrou uma patroa absolutamente identificada com suas ideias quanto ao “mínimo ideal” — e, mais que isso, entusiasmada com esse minimalismo — a ajudá-la a minimizar o minimalismo!

Foi assim. Dona Expedita estava pela vigésima vez na tal família amiga, à espera de nova colocação. Lembrou-se de recorrer a uma agência, para a qual telefonou. “Quero uma colocação assim, assim, de duzentos mil-réis, em casa de gente arranjada, fina e, se for possível, em fazenda. Serviços leves, bom quarto, banho. Aparecendo qualquer coisa deste gênero, peço que me telefonem” — e deu o número do aparelho e da casa.

Horas depois retinia a campainha do portão.

— É aqui que mora madame Expedita? — perguntou em língua atrapalhada uma senhora alemã, cheia de corpo, de bom aspecto.

A criadinha que atendeu disse que sim, fê-la entrar para o hall de espera e foi correndo avisar dona Expedita. “Uma estrangeira gorda, querendo falar com madame!”

— Que pressa, meu Deus! — murmurou a solicitada, correndo ao espelho para os retoques. — Nem três horas faz que telefonei. Agência boa, sim...

Dona Expedita apareceu no hall com um excessozinho de ruge nos beiços de múmia. Apareceu e conversou — e maravilhou-se, porque pela primeira vez na vida encontrava a patroa ideal. A mais sui generis das patroas, de tão integrada no ponto de vista das “senhoras de meia-idade que procuram serviços leves”.

O diálogo travou-se num crescendo de animação.

— Muito boa tarde! — disse a alemã com a maior cortesia. — Então foi madame quem telefonou para a agência?

O “madame” causou espécie a dona Expedita.

— É verdade. Telefonei e dei as condições. A senhora gostou?

— Muito, mas muito mesmo! Era exatamente o que eu queria. Perfeito. Mas vim ver pessoalmente, porque o costume é anunciarem uma coisa e a realidade ser outra.

A observação encantou dona Expedita, cujos olhos brilharam.

— A senhora parece que está pensando com a minha cabeça. É justamente isso o que se dá, vivo eu dizendo. As patroas escondem o leite. Anunciam uma coisa e querem outra. Anunciam serviços leves e botam em cima das pobres criadas a maior trabalheira que podem. Eu falei, eu insisti com a agência: servicinhos leves...

— Isso mesmo! — concordou a alemã, cada vez mais encantada. — Serviços leves, bem leves, porque afinal de contas uma criada é gente — não é burro de carroça.

— Claro! Mulheres de certa idade não podem fazer serviços de mocinhas, como arrumar, lavar, cozinhar quando a cozinheira não vem. Ótimo! Quanto à acomodação, falei à agência em “bom quarto”...

— Exatamente! — concordou a alemã. — Bom quarto — com janelas. Nunca pude conformar-me com isso de as patroas meterem as criadas em desvãos escuros, sem ar, como se fossem malas. E sem banheiro em que tomem banho.

Dona Expedita era toda risos e sorrisos. A coisa lhe estava saindo maravilhosa.

— E banho quente! — acrescentou com entusiasmo.

— Quentíssimo! — berrou a alemã batendo palmas. — Isso para mim é ponto capital. Como pode haver asseio numa casa onde nem banheiro há para as criadas?

— Ah, minha senhora, se todas as patroas pensassem assim! — exclamou dona Expedita erguendo os olhos para o céu. — Que felicidade não seria o mundo! Mas no geral as patroas são más — e iludem as pobres criadas, para agarrá-las e explorá-las.

— Isso mesmo! — apoiou a alemã. — A senhora está falando como um livro de sabedoria. Para cada cem patroas haverá cinco ou seis que tenham coração — que compreendam as coisas...

— Se houver! — duvidou dona Expedita.

O entendimento das duas era perfeito: uma parecia o “dublê” da outra. Debateram o ponto dos “serviços leves” com tal mútua compreensão que os serviços ficaram levíssimos, quase nulos — e dona Expedita viu erguer-se diante de si o grande sonho de sua vida: um emprego em que não fizesse nada, absolutamente nada...

— Quanto ao ordenado — disse ela (que sempre pedia duzentos para deixar por oitenta) —, fixei-o em duzentos...

Avançou isso medrosamente e ficou à espera da inevitável repulsa. Mas a repulsa do costume pela primeira vez não veio. Bem ao contrário disso, a alemã concordou com entusiasmo.

— Perfeitamente! Duzentos por mês — e pagos no último dia de cada mês.

— Isso! — berrou dona Expedita levantando-se da cadeira. — Ou no comecinho. Essa história de pagamento em dia incerto nunca foi comigo. Dinheiro de ordenado é sagrado.

— Sacratíssimo! — urrou a alemã levantando-se também.

— Ótimo — exclamou dona Expedita. — Está tudo como eu queria.

— Sim, ótimo — repetiu a alemã. — Mas a senhora também falou em fazenda...

— Ah, sim, fazenda. Uma fazenda boa, com bastante frutas, bastante leite, bastante ovos porque há fazendas muito feias.

O quadro da fazenda bonita, toda frutas, leite e ovos, extasiou a alemã. Que maravilha...

Dona Expedita continuou:

— Gosto muito de lidar com pintinhos.

— Pintos? Ah, é o maior dos encantos! Adoro os pintos — as ninhadas... O nosso entendimento vai ser absoluto, madame...

O êxtase de ambas sobre a vida de fazenda foi subindo numa vertigem. Tudo quanto havia de sonhos incubados naquelas almas refloriu viçoso. Infelizmente a alemã teve a ideia de perguntar:

— E onde fica a sua fazenda, madame?

— A minha fazenda — repetiu dona Expedita refranzindo a testa.

— Sim, a sua fazenda — a fazenda para onde madame quer que eu vá...

— Fazenda pra onde eu quero que a senhora vá? — tornou a repetir dona Expedita, sem entender coisa nenhuma. — Fazenda, eu? Pois se eu tivesse fazenda lá andava a procurar emprego?

Foi a vez de a alemã arregalar os olhos, atrapalhadíssima. Também não estava entendendo coisa nenhuma. Ficou uns instantes no ar. Por fim:

— Pois madame não telefonou para a agência dizendo que tinha um emprego assim, assim, na sua fazenda?

Minha fazenda uma ova! Nunca tive fazenda. Telefonei procurando emprego, se possível numa fazenda, isso sim...

— Então, então, então... — e a alemã enrubesceu como uma papoula.

— Pois é — disse dona Expedita percebendo afinal o quiproquó. — Estamos aqui feito duas idiotas, cada qual querendo emprego e pensando que a outra é a patroa...

O cômico da situação fê-las rirem-se — e gostosamente, já retomadas à posição de “senhoras de meia-idade que procuram serviços leves”.

— Esta foi muito boa! — murmurou a alemã levantando-se para sair. — Nunca me aconteceu coisa assim. Que agência, hein?

Dona Expedita filosofou.

— Eu bem que estava desconfiada. A esmola era demais. A senhora ia concordando com tudo que eu dizia — até com os banhos quentes! Ora, isso nunca foi linguagem de patroa — dessas biscas. A agência errou, talvez por causa do telefone, que estava danado hoje — além do que sou meio dura dos ouvidos...

Nada mais havia a dizer. Despediram-se. Depois que a alemã bateu o portão, dona Expedita fechou a porta, com um suspiro arrancado do fundo das tripas.

— Que pena, meu Deus! Que pena não existirem no mundo patroas que pensem como as criadas...


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018)

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