5/24/2019

Monteiro Lobato: As cinco pucelas (Ensaio)



As cinco pucelas 

Quando Machado de Assis, nas Memórias de Brás Cubas, põe o herói a rabiscar, alheiadamente, sem consciência do que fazia, um verso da Eneidaarma virumque cano, traçou com a mestria incomparável do seu gênio um breve estudo da ideia fixa que se trai por tabela, como diz o povo.

Brás Cubas pensava em Virgília; Virgília trouxe Virgílio; Virgílio lembrou a Eneida — e a mão vadia foi repetindo no papel ocasional o único verso que esse personagem podia saber da Eneida, o primeiro, como todos nós conhecemos de Camões o — As armas e barões assinalados.

Não há quem por experiência não conheça isso do lápis escrever a esmo cem vezes, à margem dum jornal ou nas mesas dos cafés, o arma virumque que nos trai o pensamento enquanto conversamos sobre mil coisas diversas. Ou então é mentalmente que repetimos uma mesma palavra, ou trauteamos uma mesma ária, as quais insistem, voltam, teimam como moscas de verão por mais que mudemos o rumo ao pensamento.

A quem escreve em jornais sucede o mesmo. Temas há que insistem, e botam as orelhas de fora mesmo quando o articulista aborda assuntos que nem de longe a eles se relacionam. O remédio é desabafar, como o remédio para o apetite é comer.

O meu amigo Silva anda doente de uma ideia fixa, e em tudo que escreve ou fala — escreva sobre finanças ou fale do pivetismo do Brasil na Liga das Nações — trai-se escandalosamente. Amigo das mulheres, o problema que o corrói é o seguinte: qual a primeira mulher que veio ao Brasil?

Já consultou os compêndios de história e já foi à fonte das histórias, os historiadores. Consultou Rocha Pombo, o mestre que alia o saber à gentileza. Já consultou Capistrano e João Ribeiro.

Mas tanto histórias como historiadores o deixaram na mesma. E Silva definha. É um pálido Édipo que na Avenida em cada mulher que passa vê uma esfinge a la garçonne, murmurando, como a tebana:

— Decifra-me ou devoro-te: qual foi a primeira?

Do que há escrito, apurou na obra de Jean de Lery — Histoire d’une voyage à la Terre du Brésil, que na expedição de Bois le Comte vieram, a bordo do “Rosée”, cinco frescas rosas de França, acaudilhadas por uma venerável folha de tinhorão.

Diz Lery que embarcaram cinc jeunes filles avec une femme pour les gouverner, qui furent les premières femmes françaises menées en la terre du Brésil.

Chegadas que foram, e alojadas no forte de Coligny, logo se casaram duas delas com dois mancebos, criados de Vilegaignon — isso a 3 de abril de 1557, vinte e seis dias após à chegada — e estou que esperaram muito!

Realizaram-se os enlaces por ocasião da prédica religiosa que todas as noites se fazia no fórum, e Lery menciona o fato “não só porque foram os primeiros casamentos à moda cristã celebrados no Brasil”, como ainda para frisar o assombro dos convidados selvagens diante de mulheres... vestidas.

Nunca se tinha visto semelhante coisa na paradisíaca América, e a impressão foi positivamente de escândalo.

As desnudas índias, que acompanhavam seus desnudos maridos, retiraram-se da festa vexadíssimas, corridas de vergonha, à visão de colegas louras que assim tão despejadamente se revelavam só com o rosto, pescoço e braços nus! E ao regressarem para suas aldeias, com grande alvoroço contaram às outras o caso inaudito, provocando os mais desencontrados comentários.

— Vestidas! Imaginem...



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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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