5/24/2019

Monteiro Lobato: A moda futura (Ensaio)



A moda futura

É sumamente difícil aos contemporâneos de uma transição social apreender as linhas mestras do fenômeno e sobretudo prever até que ponto ela irá. Só depois da transformação operada é que os sociólogos veem claro. Sem o recuo do tempo, impossível visão de conjunto, como sem recuo no espaço impossível fazer a menor ideia da altura, forma, estilo de um palácio.

É inegável que sobretudo depois da guerra se acentuou o começo do fim do governo representativo com três poderes autônomos, harmônicos e independentes, em moda ainda hoje.

Os fatos cansaram-se de provar que isto de representantes são como os procuradores que procuram para si; não representam coisa nenhuma, a não ser o interesse pessoal ou de um grupo. O nosso Senado timbrou há pouco em mostrar mais uma vez que é assim, na votação da lei da receita.

Os fatos ainda provam que a tricefalia autônoma dos poderes não passa de pura pilhéria, nem sequer engraçada.

É antinatural um monstro dessa ordem num mundo onde só as minhocas conseguem ter duas cabeças — e por isso vivem condenadas a não aparecer à luz do sol.

Uma das cabeças há de preponderar e engolir as outras, sob pena do organismo rebentar por excesso de órgãos. Quod abundat nocet, e se uma só cabeça nos leva a tantas asneiras, três, agindo simultâneas e livres, no mínimo seria ao suicídio que nos conduziriam.

De modo que o tricefalismo vigente não passa de pura mentira fisiológica na qual só os que vivem dela fingem acreditar.

Ora, à medida que uma mentira social vai perdendo os cabelos que lhe escondem a nudez do crânio, surge a inquietação, o mal-estar, e o homem procura romper essa falsa forma de equilíbrio para adotar uma outra mais consentânea com a “verdade”.

É o que se dá no momento. A ânsia de sair da mentira representativa tricéfala entremostra-se em todos os povos, sendo que em alguns passou de ânsia a realização.

Na Itália, Mussolini, com rude franqueza, operou a mudança e vai aos poucos procurando a forma de cristalização que permita durabilidade ao sistema sucessor.

Na Espanha, Primo de Rivera fez o mesmo, embora sem a espetaculosidade do “duce” italiano; Rivera não tem a queixada napoleônica de Mussolini e parece agir mais como satélite do que como criador.

Na Rússia a transformação foi violenta demais para que possamos fazer qualquer ideia justa; as informações que temos são duvidosas, como oriundas da propaganda e da contrapropaganda bolchevista, fontes por igual suspeitas.

Na França sentem-se todos às portas de mais uma das suas numerosas rupturas de equilíbrio, sendo imprevisível o rumo que tomará a pobre Mariana, cujos sintomas de velhice não há maquillage que consiga esconder.

Outros países existem ainda onde, ou confessadamente, ou às hipócritas, só in nomine vigora a tricefalia representativa — e para atinar com um dele não é necessário que tomemos passagem no Cap Polônio.

A corrente avoluma-se, pois, e com ela a curiosidade de saber que moda virá substituir a atual moda de governo.

Teremos regresso à crinolina de Napoleão III, com o nome mudado? Iremos buscar na Grécia a elegante tirania dos Péricles? Virá o despotismo científico preconizado por Augusto Comte?

O despotismo não virá pela razão clara de não se ter ido nunca. Sob qualquer que seja o disfarce é sempre ele que de fato governa. Forma natural, tornou-se odiosa desde que o liberalismo acendeu nas chamas da Revolução Francesa o facho da indignação declamatória com que o vem fulminando ingenuamente. Mas apesar da condenação de 89 o despotismo tem sabido tão bem adaptar-se que às mais das vezes é ele quem mais furiosamente condena... o “despotismo”.

Se payer de mots é destino humano. As palavras despotismo, ditador, tirano, etc., horripilam. Mas a coisa com o nome trocado se torna suportável e muitas vezes reclamada.

O que a inquietação dos povos neste momento pede não passa de uma nova mudança de nome. Cansados da farsa representativa e das designações engenhosas com que o liberalismo disfarçou o irônico e eterno Mefisto, querem “algo nuevo”, esquecidos de que neste mundo inovar é mudar de roupa — mudar de nome.

Infelizmente para a humanidade tal operação não é simples como para o indivíduo. Não se faz sem o sangue, sem a dor que toda a ruptura de um estado de equilíbrio traz e sem os sofrimentos de toda a ordem consequentes à procura de um novo equilíbrio.

Crises, chamam-se essas passagens — ou revoluções, no caso de serem hemorrágicas.

O que custou à França mudar o nome de “rei” para “gabinete”! O que vai custando à Rússia mudar o nome de “czar” para o nome ainda em elaboração que o vai substituir!

A luta ideológica mantida contra o despotismo equivaleria no corpo humano à grita de todos os órgãos contra a cabeça, se fosse perfeito o símile entre os dois organismos.

Tem como fundamento a velha fermentação utópica, filha do erro de ter-se o homem como super-animal, ser fora das leis gerais que regem na terra a vida dos cavalos, das moscas, das sardinhas e dos elefantes.

Quando essa toxina utópica for de todo eliminada, então a humanidade aceitará sem disfarces, sem refolhos, sem folha de vinha a nudez do despotismo. Um pastor à frente e o rebanho atrás, pastando com deleitosa despreocupação já que o “duce” vela. A dificuldade para atingirmos essa idade de ouro reside apenas numa coisa, na aparência bem simples, na realidade dificílima: no nome a dar ao déspota. Quem achar um que satisfaça plenamente e nem de maneira remota lembre as denominações anteriores caídas em ódio, fará à pobre humanidade um presente, talvez de grego, porém maior que o que lhe fez Gutenberg com a imprensa, Papin com o vapor ou Edison com o gramofone.



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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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