A moda futura
É sumamente difícil aos
contemporâneos de uma transição social apreender as linhas mestras do fenômeno
e sobretudo prever até que ponto ela irá. Só depois da transformação operada é
que os sociólogos veem claro. Sem o recuo do tempo, impossível visão de
conjunto, como sem recuo no espaço impossível fazer a menor ideia da altura,
forma, estilo de um palácio.
É inegável que sobretudo
depois da guerra se acentuou o começo do fim do governo representativo com três
poderes autônomos, harmônicos e independentes, em moda ainda hoje.
Os fatos cansaram-se de
provar que isto de representantes são como os procuradores que procuram para
si; não representam coisa nenhuma, a não ser o interesse pessoal ou de um
grupo. O nosso Senado timbrou há pouco em mostrar mais uma vez que é assim, na
votação da lei da receita.
Os fatos ainda provam
que a tricefalia autônoma dos poderes não passa de pura pilhéria, nem sequer
engraçada.
É antinatural um monstro
dessa ordem num mundo onde só as minhocas conseguem ter duas cabeças — e por
isso vivem condenadas a não aparecer à luz do sol.
Uma das cabeças há de
preponderar e engolir as outras, sob pena do organismo rebentar por excesso de
órgãos. Quod abundat nocet, e se uma só cabeça nos
leva a tantas asneiras, três, agindo simultâneas e livres, no mínimo seria ao
suicídio que nos conduziriam.
De modo que o
tricefalismo vigente não passa de pura mentira fisiológica na qual só os que
vivem dela fingem acreditar.
Ora, à medida que uma
mentira social vai perdendo os cabelos que lhe escondem a nudez do crânio,
surge a inquietação, o mal-estar, e o homem procura romper essa falsa forma de
equilíbrio para adotar uma outra mais consentânea com a “verdade”.
É o que se dá no
momento. A ânsia de sair da mentira representativa tricéfala entremostra-se em
todos os povos, sendo que em alguns passou de ânsia a realização.
Na Itália, Mussolini,
com rude franqueza, operou a mudança e vai aos poucos procurando a forma de
cristalização que permita durabilidade ao sistema sucessor.
Na Espanha, Primo de
Rivera fez o mesmo, embora sem a espetaculosidade do “duce” italiano; Rivera
não tem a queixada napoleônica de Mussolini e parece agir mais como satélite do
que como criador.
Na Rússia a
transformação foi violenta demais para que possamos fazer qualquer ideia justa;
as informações que temos são duvidosas, como oriundas da propaganda e da contrapropaganda
bolchevista, fontes por igual suspeitas.
Na França sentem-se
todos às portas de mais uma das suas numerosas rupturas de equilíbrio, sendo
imprevisível o rumo que tomará a pobre Mariana, cujos sintomas de velhice não
há maquillage que consiga esconder.
Outros países existem
ainda onde, ou confessadamente, ou às hipócritas, só in nomine vigora a tricefalia representativa — e
para atinar com um dele não é necessário que tomemos passagem no Cap Polônio.
A corrente avoluma-se,
pois, e com ela a curiosidade de saber que moda virá substituir a atual moda de
governo.
Teremos regresso à
crinolina de Napoleão III, com o nome mudado? Iremos buscar na Grécia a
elegante tirania dos Péricles? Virá o despotismo científico preconizado por
Augusto Comte?
O despotismo não virá
pela razão clara de não se ter ido nunca. Sob qualquer que seja o disfarce é
sempre ele que de fato governa. Forma natural, tornou-se odiosa desde que o
liberalismo acendeu nas chamas da Revolução Francesa o facho da indignação
declamatória com que o vem fulminando ingenuamente. Mas apesar da condenação de
89 o despotismo tem sabido tão bem adaptar-se que às mais das vezes é ele quem
mais furiosamente condena... o “despotismo”.
Se payer de mots é destino humano. As
palavras despotismo, ditador, tirano, etc., horripilam. Mas a coisa com o nome
trocado se torna suportável e muitas vezes reclamada.
O que a inquietação dos
povos neste momento pede não passa de uma nova mudança de nome. Cansados da
farsa representativa e das designações engenhosas com que o liberalismo
disfarçou o irônico e eterno Mefisto, querem “algo nuevo”, esquecidos de que
neste mundo inovar é mudar de roupa — mudar de nome.
Infelizmente para a
humanidade tal operação não é simples como para o indivíduo. Não se faz sem o
sangue, sem a dor que toda a ruptura de um estado de equilíbrio traz e sem os
sofrimentos de toda a ordem consequentes à procura de um novo equilíbrio.
Crises, chamam-se essas
passagens — ou revoluções, no caso de serem hemorrágicas.
O que custou à França
mudar o nome de “rei” para “gabinete”! O que vai custando à Rússia mudar o nome
de “czar” para o nome ainda em elaboração que o vai substituir!
A luta ideológica
mantida contra o despotismo equivaleria no corpo humano à grita de todos os
órgãos contra a cabeça, se fosse perfeito o símile entre os dois organismos.
Tem como fundamento a
velha fermentação utópica, filha do erro de ter-se o homem como super-animal,
ser fora das leis gerais que regem na terra a vida dos cavalos, das moscas, das
sardinhas e dos elefantes.
Quando essa toxina
utópica for de todo eliminada, então a humanidade aceitará sem disfarces, sem
refolhos, sem folha de vinha a nudez do despotismo. Um pastor à frente e o
rebanho atrás, pastando com deleitosa despreocupação já que o “duce” vela. A
dificuldade para atingirmos essa idade de ouro reside apenas numa coisa, na
aparência bem simples, na realidade dificílima: no nome a dar ao déspota. Quem
achar um que satisfaça plenamente e nem de maneira remota lembre as
denominações anteriores caídas em ódio, fará à pobre humanidade um presente,
talvez de grego, porém maior que o que lhe fez Gutenberg com a imprensa, Papin
com o vapor ou Edison com o gramofone.
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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