Ideias Russas
Na reportagem de Adolfo
Agorio sobre a Rússia existe um trecho sobremodo interessante sobre a questão
sexual.
Lenin, esse ogre na
opinião dos franceses, inda há de dar o seu nome ao século como o maior
reformador social de todos os tempos. Nenhuma criatura operou em maior escala,
nem foi mais radical em suas ideias. Semeou como um deus, e até ao derradeiro
momento de vida presidiu ao novo estado de equilíbrio social que implantou na
Rússia. O tempo irá aos poucos corrigindo sua obra; a adaptação far-se-á; mas
ninguém lhe tirará a glória de ter arquitetado o dia de amanhã.
A caudal de diatribes e
infâmias que os lesados esguicham sobre o seu nome e difundem pelo mundo
inteiro, passará, como passam enxurros. Onde está hoje a massa formidável de
libelos impressos na Grã-Bretanha contra o ogre da Córsega? Napoleão, no
entanto, purificado, brilha na história com o Perseu de uma Górgona: o direito
divino.
É assim que a humanidade
caminha — napoleonicamente, leninescamente, aos sacões. A prudência, tão
preconizada pelo artritismo dos marqueses de Maricá, é virtude que apenas
conserva, como o vinagre conserva o pepino, mas não cria coisa nenhuma.
No que diz respeito à
mulher, Lenin aparece como o seu messias. Libertou-a da escravidão doméstica,
aboliu o preconceito da sua inferioridade, pô-la em situação de ocupar todos os
cargos da república, desde o comissariado do povo até o juizado. O regime de
igualdade dos sexos é perfeito, pois. Lenin destruiu o formidável acervo de injustiças
acumulado em vinte séculos de helenismo e outros tantos de civilização cristã —
isto é, de despotismo do galo.
Houve um formidável
sacolejo de forças psicológicas adormidas, vento que varreu e ventilou o
ambiente, desde o lar às mais complexas formas de atividade coletiva.
A mulher liberta-se da
servidão conjugal. Os direitos de ambos os cônjuges equiparam-se sob um severo
regime de responsabilidades e deveres mútuos. A união livre, controlada pelo
Estado, não significa a anarquia sexual que pintam os escribas antirrussos a
serviço do cômodo status-quo capitalístico.
Essa anarquia sexual existe, sim, no regime burguês da mentira monogâmica sem
divórcio, monstruoso Moloque que só funciona à custa do mais cruel
lubrificante: a prostituição.
O casamento na Rússia
repousa unicamente no amor e é mais duradouro que o alicerçado no dinheiro.
Recorda Agorio o assombro de um seu companheiro de viagem ao verificar o número
ínfimo de divórcios russos. No entanto, se é fácil casar, mais fácil ainda é
divorciar; para o primeiro ato basta o comparecimento dos dois interessados
perante o oficial civil; para o segundo basta apenas o comparecimento de um.
A humanidade se divide
em duas classes: os que possuem imaginação e os que não a possuem. Os
imaginativos idealizam e, como idealizam, raro alcançam a felicidade — tanto o
real é inimigo do ideal. Vem daí que os imaginativos são em regra infelizes no
nosso regime sexual.
Na Rússia não. Madame de
Bovary não se suicida. Solta o primeiro marido, inservível por insuficiência de
glândula tiroide (devia ser isto), e vai sucessivamente casando até encontrar o
eleito da sua fantasia. E acha, pois as almas andam aos pares, a afinidade
eletiva é um fato e o tudo é que a sociedade não as impeça de se engancharem.
— Por que motivo, disse
uma dama russa a Agorio, havemos de trazer sapatos apertados, que nos magoem o
pé, se, trocando-os, podemos tê-los cômodos? Ora, o nosso coração não merece
menos que o nosso pé, além de que as feridas nele abertas são de muito maior
duração que as causadas pelo sapato defeituoso.
Quem sofre com o regime
russo é o homem. Perde a liberdade absoluta de que se goza no regime burguês — liberdade
de borboletear de mulher em mulher, clandestinamente, qual um besouro avariado,
sem nenhuma consequência funesta para o seu egoísmo. Não mais se regala com o
sadismo de fazer mãe a uma virgem e largá-la à sua triste sorte, sob os olhares
complacentes do status-quo. Sua responsabilidade
torna-se absoluta. O código bolchevista, no fundo simples e mui lógica reação
do pobre espezinhado contra o rico prepotente, garante todos os direitos da
maternidade. As obrigações do homem neste caso não são para com a mulher, e sim
para com a mãe. Ao fundar as bases da família nova, quis Lenin poupar ao seu
país o espetáculo degradante da mulher desamparada no seu transe mais nobre,
convertida em máquina de abortos e infanticídios, escrava do regime social que
faz dela um objeto de compra e venda, um semovente reduzido a campo de
experiências dos monstruosos apetites e das abomináveis paixões, não digo
humanas, mas homescas.
A mulher trabalha
livremente e possui igual ao homem a iniciativa do amor. Pode escolher à
vontade. Nenhuma barreira se opõe aos impulsos do seu coração. Contribui para a
manutenção da sociedade conjugai e assim afirma sua independência e justifica
seus direitos.
Não há na Rússia essa
classe de mulheres que vivem em absoluto às costas do marido, qual ostras no
espeque. Mais difícil ainda é ver-se o contrário disso, como, por exemplo,
o chupim da nossa
organização atual.
O problema do celibato,
consequentemente, desaparece. A solteirona o é por anomalia de temperamento, já
que nada lhe impede de afrontar a experiência matrimonial. No nosso regime, a
cuja monstruosidade não atentamos porque o cão não atenta à coleira quando a
recebe desde o nascer, milhões e milhões de pobres criaturas mirram no tormento
da castidade à força, ao lado de outros milhões que rebolcam nos prostíbulos,
devoradas, umas, de histerismos, e outras, da sífilis, para que Mr. Homais, de
braço dado ao conselheiro Acácio, possa sentenciar gravemente:
— O casamento é uma
instituição divina. Não lhe toquem!
Os homens e as mulheres
na Rússia não se olham como inimigos, oscilantes entre o amor e o ódio, polos
da mesma exaltação sentimental; não enchem as folhas com o escândalo diário do
seu engalfinhamento, seus tiros de revólver, suas facadas. Olham-se como
companheiros, iguais nos direitos, iguais nos deveres. E como apesar desta
soberania de si mesmas e desse culto reflexivo da própria responsabilidade diz
Agorio que nada perderam do encanto feminino, é justo que fechemos os portos
aos navios russos que trazem em barris tais ideias.
Viriam perturbar a
deliciosa lambança sexual, leda e cega, em que vivemos, com um olho nos
bismutos e outro nos macacos de Voronoff...
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In: Na Antevéspera
Atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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