6/30/2019

A Rainha de Sabá (Conto), de Henrique de Vasconcelos




(A Eugênio de Castro)


Balkis esperava. Entre as suntuosidades do seu palácio de Mareb, a Rainha vivia, solitária, escondida, só com a sua beleza.
Em vão os povos e os senhores, ouvindo falar da imaculada formosura acorriam dos remotos reinos onde a sua lei governava, Sabá, Marebe e Iêmen, e, defronte do palácio imenso e fechado, pediam para ver a deslumbrante adolescente. Em vão os sacerdotes quiseram ver os olhos puros. Ninguém o conseguiu.
Apenas uma velha ama a vira nua, quando menina. Era como um lírio o seu corpo.
Sete aposentos eram os da Rainha. E cada uma das sete portas uma chave de ouro fechava. E no último, a rainha vivia. Grandes espelhos de cobre mandavam-se uns aos outros, como ecos, a imagem quase divina. E Balkis, apenas vestida de joias, passava os dias na contemplação dos intactos esplendores da sua adolescência.
Entravam pela janela que abria sobre o jardim fechado e calado, os pavões brancos e os pavões policromos. Aqueles formavam, estendendo as caudas, pequenas luas macias; estes faziam fulgir constelações, doçuras de veludos, coruscantes gemas. E Balkis era mais branca do que os pavões brancos, mais brilhavam as suas cinturas e manilhas pesadas do que as caudas cintilantes.
Nas noites escuras saia ao jardim. Deixava cair entre as moitas de flores, a cintura, as manilhas, os anéis e o diadema. Soltavam-se-lhe os cabelos de ouro, que eram, no ar azul escuro, como um cometa pálido; e nua, como uma flor graciosa, dirigia-se para o tanque de mármore onde adormecera a água perfumada. Os seus pés, ao entrar no tanque, eram como um raio de lua...
Deitada no tanque, os braços abertos, as mãos à tona d'água, como dois lotos brancos, Balkis espreitava o céu onde se movia o dourado formigueiro de astros. As estrelas vinham reproduzir-se na água, como molhadas flores de ouro, em indecisos contornos; uma lhe brincava no seio, quase à flor d'água. Era como uma joia a correr, com o movimento do corpo. Às vezes, num gesto mais largo, a gema caía, para outra vez voltar, numa festa, a percorrer todo o corpo branco, que era, na água escura, polvilhado de brilhos, como um nenúfar enorme, em que se agitassem grandes abelhas fulgentes.
Depois, quieta, ouvindo somente, de quando em quando, o ruído ligeiro das flores que tombavam, murchas, na areia discreta do jardim, os braços a apoiar a cabeça, como um diadema feito de duas hastes de açucenas, a Rainha pensava.
E esperava...
Balkis esperava o noivo que havia de vir.
De todas as partes, chamados pela fama da sua beleza, dos seus tesouros ou dos seus exércitos, tinham acorrido os príncipes da Ásia. Poetas uns, avaros outros, na maior parte guerreiros, todos vinham em cavalgadas surpreendentes, cobertos de ouro e de joias. No seu trono altíssimo de ouro e prata, invisível, mas a todos vendo, a Rainha ouvia as imagens aladas que fulgem e perfumam, a descrição dos poços profundos, abarrotados de barras de ouro, de vasos de cobre, de moedas de todos os feitios, de pedrarias de todos os brilhos; diziam-lhe histórias compridas de cruentas façanhas, batalhas mortíferas em que as flechas e as espadas, a bater contra os escudos, produziam chispas de incêndio, contra os corpos, rios de sangue. Os guerreiros, com o desejo de aumentar os exércitos belicosos, aprendiam uma eloquência calorosa. Eram os que mais falavam, regozijando-se com a recordação das chacinas. Mas a um sinal da Rainha iam-se, despedidos, os poetas com as lágrimas nos olhos, as cabeças curvadas, como sobre o peso das mitras, os avaros e os guerreiros batendo com força, nos ladrilhos policromos, as sandálias ligeiras.
E Balkis voltava para o recuado aposento do seu palácio populoso. Ali, só, admirava nos espelhos a gracilidade do seu corpo esbelto e firme. Deixava cair sobre o corpo branco, como uma flor inundada de sol, o cabelo louro.
Depois de admirar toda a sua beleza, Balkis dizia-se:
— Aquele que eu amar possuir-me-á intacta, como uma flor que vive no meio de uma floresta guardada pelos Medos. Ninguém lhe aspirou o perfume, ninguém viu a cor deslumbrante, ninguém a maculou. Nesta terra cheia de sol, em que as cores não brilham, ardem, e as caçoletas não perfumam, estonteiam, eu sou branca, o sol nunca me viu. Entre os muros dourados dos meus sete aposentos, a vida é quieta e fácil!
Balkis esperava.
Os meses passavam ligeiros. No jardim fechado, as rosas desabrochavam, perfumavam e morriam. Outras vinham com igual brilho e igual frescura, enormes rosas escarlates, como bocas em que os beijos deixam feridas, do desejo intenso. Balkis conservava, no seu corpo núbil, intactos, os esplendores de uma adolescência eterna. Untava-se com óleos, alisava com pentes de ouro os seus cabelos de ouro. Vestia-se apenas com joias, joia ela mesma. E nos seus olhos azuis, largos e serenos, brilhava a mocidade.
Não a viam olhos humanos. Nenhum desejo maculou o seu corpo.
E quando Salomão, filho de Davi, que no seu palácio de Jerusalém tinha mais concubinas que de estrelas há no céu numa noite de lua, quando Salomão a veio buscar, ela entregou-se-lhe, pura, radiosa e imaculada, como uma flor crescida numa floresta insondável, cujo perfume ninguém aspirou.
Virgens, guardai para o desconhecido Amado, o vosso corpo e a vossa alma, como, se é verdade a lenda árabe, para Salomão, filho de Davi, guardou Balkis, Rainha de Sabá!


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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019

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