6/16/2019

Braço Forte (Conto), de Ribeiro de Sá



Braço Forte

Não se deve perder, por que seja antiga, a usança de contar histórias.

Em um serão deste outono, achei mais uma prova de que se passa mui bem uma noite parodiando os serões das nossas aldeias; apesar de que a imitação não fica muito semelhante, porque o elegante fogão inglês substitui a lareira; o bastidor, a roca e o fuso e o Conde de Monte Cristo e os Sete Pecados Mortais estão no lugar privativo do Carlos Magno e do Lunário Perpétuo.

Quando me chegou a vez de contar a minha história, lembrei-me de um caso, em que havia pensado na véspera pelas horas mortas da noite. Há ocasiões em que a alma foge do tumultuar da vida para o ermo da meditação. Quando isto me acontece, ao tornar a mim desse devaneio do entendimento, acho me sempre entre o mar e o céu, porque o mar é o verdadeiro templo da solidão, em que se vão sepultar as ilusões da vida.

A minha história não era alegre, e eu estava indeciso acerca do que faria, quando começaram a discutir a Flor do Mar, história de um barqueiro, escrita pelo meu amigo Mendes Leal, publicada na Revista pela primeira vez, e há pouco tornada a publicar, pelo seu autor, no Estandarte.

A discussão era em todo o sentido honrosa para o meu amigo: — constava só de louvores, e fez-me decidir a contar o meu conto, pois que as almas, que se estavam compadecendo tanto da triste sina da Flor do Mar, não gostariam de passar, por meio de uma transição rápida, da compaixão para o riso. Se bem me lembra contei a história como aqui a vou escrever.

"Há pouco tempo que fora da barra do Tejo costumava andar, em um dos melhores barcos que ali se encontram, um pescador, a quem chamavam João do Braço Forte, ou as mais das vezes Braço Forte, como eu lhe chamarei.

O nome dava ideia de uma parte do homem, pois que só ele, a puxar por uma rede cheia de peixe, valia mais do que três ou quatro dos da Companhia: e quando lançava as mãos aos remos, logo, no andar do barco, se conhecia; e o navegar livre do batel, com a vela inchada que parecia rebentar, era bastante para se conhecer que ao leme ia o braço em que todos confiavam. Apesar de apropriada, a denominação de braço forte não resumia a vida do pescador.

Correm por esse mundo histórias de homens que nasceram e morreram em palácios, nas quais se descreve com tão primorosas cores o cativeiro do seu coração, que me fazem bem apetecer uma palheta mais rica e variada do que a pobre de que disponho, para esboçar o caráter apaixonado de um homem, embalado pelas vagas, habituado aos temporais, e que no mar, em que passava a vida, tantas vezes enxergava a morte, com a resignação de quem sabe que a sua sepultura não é na terra.

Fadara-lhe Deus sempre bem a pesca, e dentro em pouco foi senhor de barcos e redes. Pobre ou remediado, foi sempre o mesmo no trato; e só lhe sabiam dos teres, os que, em dia de forçado ócio, recebiam da sua mão os socorros de que careciam: para todos era irmão, e trabalhava tanto como no tempo em que não tinha nada de seu.

Corria entre os da Companhia, que o pescador tinha o coração tão brando como forte o braço, e que se deixara enfeitiçar por certa fada, a ponto de não ser senhor de si. Os que o conheciam e eram amigos de João, diziam lá consigo:
"Se uma mulher nos perdeu a todos desde o nosso pai Adão, por que não há de outra perder um de nós?"

A feiticeira não curava de colher o fruto dos seus feitiços, e quanto menos correspondia ao amor de Braço Forte, mais o misero lhe queria. Para ela, a paixão desse homem era um brinco, um passatempo, porque à beira do mar, a mirarem-se no espelho infinito do mar, ou nas salas a refletirem em espelhos feitos pela arte, o coração da mulher é muitas vezes caprichoso. Era por isso que a estrela do seu rumo, como Braço Forte lhe chamava, não se sumia de todo no horizonte da vida; mas luzia de espaço a espaço, e, ao desaparecer, o triste não sabia se para sempre lhe fugia. O pescador duvidava, e a dúvida é um dos espinhos de tantos que se escondem nas brilhantes flores da existência.

Eu, que estou contando esta história, afirmo de mim para mim que sou desta mesma opinião.

Braço Forte, desde que tal amor lhe tomou a alma, nunca mais foi o homem que dantes era. Sei que houve quem o viu, um dia ao cair da tarde, com o rosto melancólico, escutando a sina que na mão lhe estava lendo certa bruxa, conhecida em toda a costa pela certeza dos seus vaticínios. Estava como que sem acordo de si, com uma das mãos desfalecida, e com a outra sobre a cadavérica mão da velha; e quando viu que esta lhe apontava para a linha do amor, descerrou os lábios, e ficou esperando com ansiedade a resposta ao seu gesto impaciente.

— "Vai ter à morte!" — disse a bruxa, dando às suas palavras, filhas do acaso, o tom da inspiração.

— "Basta, hoje mesmo hei de acabar com isto" — redarguiu o pescador, correndo para a praia, e num salto que deu, ficou firme sobre uma das pranchas do barco.

Quando esta cena se passava, davam trindades, e dentro em pouco foi noite fechada. O barco largou, e breves instantes depois a vela, inchando, o arrastava por sobre as ondas como se voasse. O mar estava turvo, parecia negro, e começavam a engrossar as ondas com o vento que ia soprando cada vez... mais rijo: as nuvens, que encobriam as estrelas, eram grossas e mui escuras. No entanto o barco de pesca se dirigia rápido para o mar largo. Braço Forte ia ao leme, em pé e tão firme, que, ao vê-lo, o tomaríeis por uma estátua que à ré, com a mão no leme, houvessem posto entre aqueles homens, labutando ao som de trovas alegres.

No primeiro banco dos remeiros, logo ao pé do leme, estava sentado um velho com a cara voltada para ré. Antes de se começar a pesca, o velho chegou para si a única lanterna que havia no barco, e a sua luz baça não se refletiu só no peito nu e crestado do ancião; pois que depois de lhe alumiar a fronte calva, foi tocar com os últimos e débeis raios nos bastos cabelos que se levantavam em grossos e negros anéis da bem talhada fronte de Braço Forte.

O velho, ao acabar de compor a rede que tinha sobre os joelhos, e vendo a imóvel e pensativa fisionomia de João, encetou a prática que se segue:

— "Que tens que assim vais pasmado? Está a noite de breu, é verdade; mas os cachopos ficam longe, e não podemos recear que o barco lá vá ter."

—"Não tenho nada!" respondeu Braço Forte sem quebrar o mago condão da sua tristeza.

O velho, como que arrependido da primeira pergunta, redarguiu:

— "Ah! já sei... ora que tolo eu sou: como havias de tu recear as ondas, se és o mais valente de quantos ensinei a governar o leme... já sei... aposto que estás cismando nesses amoricos malditos que hão de dar cabo de ti?"

— "Mestre Manuel, cada homem tem os seus segredos, e os meus ardem-me no coração como se fossem alcatrão incendiado."

— "Ora são bons segredos esses de que falas, sabem-nos todos da costa."

— "Ainda mal que o sabem; mas ainda bem que não sabem tudo. Mestre Manuel, se ela me pudesse amar, era o que me bastava, ainda que fosse daqui a muito: o que eu quero é uma certeza que me não minta."

— "Não te há de faltar: olha, a verdade é como o azeite, que anda sempre ao cimo da água; amor, não há mulher que o esconda por mais arteira que seja."

— "Dos meios que tinha para o saber, não me resta um só. Ela, que era o mais seguro de todos, não me tira das penas em que vivo."

— "De peste má eu morra se te entendo. E em Lisboa que passaste com aquela mulher de virtude que te inculquei?... sempre sabe muito... é da gente ficar ali um dia, inteiro: nunca vi botar assim as cartas."

— "Botou-as como lhe pedi, e logo à primeira saiu do baralho depois de mim o dez de ouros; e nem às três vezes se me mudou a Sorte. "

— " Malditas cartas! Constantemente me deram a pobreza, e não mentiram as danadas."

— "Nem só elas, tudo mais foi contra mim. Domingo passado, quando Maria saía da missa do dia, apanhei uma porção da terra que pisara o seu pé esquerdo, levei-a para Lisboa, e depois de benzida com aquelas santas orações da benzedeira, atirei com ela a Maria, e um sorriso, daqueles que não entendo e que me desesperam, foi sua única resposta."

— "Safa com os maus agouros. O barco vai por esses ares que nem uma gaivota. E as Horas?"

— "Também não foram a meu favor; a chave que entreteci na fita com que as liguei, voltou-se para o lado onde eu tinha posto o pensamento da minha desgraça."

— "Não há de ser esta noite que às redes se lancem: vem da proa cada onda que faz medo."

— "Só aqui anda um malfadado, e sou eu. A pescaria será boa."

— "Porque te não apegas com algum santo, para ver se vives mais sossegado. — Deixa-te dar um conselho. —Tenho fé nesta oração de Nossa Senhora, que trago ao pescoço há muito tempo; é a que reza do milagre que fez Nosso Senhor à santa mulher que vivia nas montanhas, e que foi achada àquele homem que lançaram ao mar com uma pedra ao pescoço, e que por três dias andou sobre as ondas sem se afogar até que o salvaram. Quando fores a Lisboa, procura no cais um cego que por ali anda guiado por um cão fusco; dá-lhe esmola, que ele te dará uma dessas orações ensinando-te a virtude."

— "Por tão milagrosa como essa, tenho eu a oração do Justo Juiz, que trago sempre comigo junto às relíquias que herdei de minha mãe, e com o anel de pinha que, em hora má, dei a Maria... mas este padecer é vontade de Deus, que se há de cumprir. Mestre Manuel, já o vento mudou, não tarda que o mar acalme: e, levantando a voz, bradou: — Eia rapazes, redes ao mar."

O velho, olhando para o poente, disse como quem fala consigo: — "As nuvens vão se desfazendo em chuveiros — se não falamos nas orações tínhamos temporal desfeito."

— "Ainda bem que as estrelas apare cem, dizia, no mesmo tom de voz, Braço Forte. Manuel, a minha última esperança morre aqui hoje, ou reverdece para não mais

— "Tem ânimo, homem, que é de que precisas."

— "Verá se o tenho, Mestre. A estrela do norte é que vai decidir estas dúvidas; se enquanto rezo um credo, a encobrirem as nuvens... tudo se acabou."

E começou a rezar em voz baixa; governando o leme com a mão esquerda, benzia com a direita o coração. Ao saírem-lhe dos lábios as palavras — Deus, todo poderoso — saía-lhe também do fundo do peito um destes suspiros, que são, como o selo da morte, posto sobre as páginas mais brilhantes do livro da vida. Uma nuvem grossa e negra tinha escondido a estrela.

O velho, que estava de braços cruzados e dando mostras de impaciente, quando voltou o rosto, e viu a cerração que principiava a correr para o lado do norte, falou com a autoridade que os anos lhe concediam:

— "Então que te estou eu a dizer há mais de dez credos? Tem ânimo, de que bem precisas. Se assim te deixas pescar pela dor, que será de ti, quando Domingo os ouvires apregoar?"

— "A quem?" perguntou João, largando o leme, e levando ambas às mãos à fronte.

— "A Maria e ao Neto do Piloto."

— "Mestre Manuel, aí tem o leme, e deixe-me, que não quero esta noite ouvir mais nada. Leva de rumor, ó da Companhia!"

Manuel foi para o leme, e João sentou-se na prancha em que estava o velho pescador, e aí ficou com a cabeça encostada às mãos, até que o barco abicou à praia.

Não esperou pela divisão da pescaria, da qual, como dono do batel, lhe pertencia um terço. Ao saltar em terra, deu logo com os olhos na bruxa, e fez o sinal da cruz, pois que, em tal encontro, lhe parecia ver obra do demo.

A velha trazia-lhe o anel de pinha, que ele tinha dado a Maria.

João, ao recebê-lo, só disse: — "Já sei tudo... bem entendo o que isto quer dizer" — e, continuando no caminho, levou o anel aos lábios e duas lágrimas lhe saltaram dos olhos. Mas vendo o Neto do Piloto, cobrou ânimo, e cruzou o gabão sobre o peito como se não quisesse que vissem a força com que ia arfando.

Neto do Piloto estava ajustando um grande barco para pagar com o dote de Maria, e queria dar em troco o barco pequeno em que andava, e que ao pé dele se via encalhado na praia.
Este barco tinha, como todos, o nome escrito na popa. João, ao dar com os olhos no nome, sorriu: mas há lágrimas, que não são tão tristes como foi este sorriso. Chegou-se ao pé do Neto do Piloto, deu-lhe o que ele pedia pelo barco, e gritou com voz cava aos da sua Companhia:

— "Desencalhem esse barco e amarrem-no, que vou esta noite descobrir pesca nova."

E desapareceu, sem que ninguém mais o visse em todo o dia.

À noite saltou para o batel, que tinha compra do, agarrou em dois remos, puxou-os com alma, e a proa, rasgando as ondas, dava provas de que era impelida por Braço Forte.

Mestre Manuel, que estava na praia fazendo a ceia, correu para a beira do mar, e ainda chamou por ele; mas nem lhe respondeu o bater dos remos, tanto ao largo se havia feito o barco.

Os companheiros, que por ali estavam, perguntaram ao velho a razão por que se inquietava tanto.

Manuel não lhe respondeu, e ficou a olhar para a superfície revolta do oceano, como se o mar lhe pudesse dizer o que ele queria saber.

Braço Forte, nem o barco, nunca mais apareceram. Todos os julgaram afundados. Se assim foi, como creio, a ingratidão de uma mulher não perdeu só uma alma, mas três; porque o Padre, que apregoou o seu casamento com o Neto do Piloto, assegurou-me que nunca foram felizes.

Perguntei ao pescador, que me contou esta história, como se chamava o barco em que fora Braço Forte, quando pela última vez se apartou dos seus companheiros, e disse-me que se chamava — DESTINO.


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Pesquisa e adequação ortográfica:  Iba Mendes (2019)

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