6/04/2019

O derradeiro susto de Mimi (Conto), de Conde de Arnoso



O derradeiro susto de Mimi

O mês de junho corria quente. O calor abrasava. Ninguém queria mesmo pensar o que seria o mês de julho. A natureza cansada de ouvir que estavam mudadas as estações, que já ninguém se entendia, deliberara por tudo nos respectivos eixos. Era um verão a valer, um verão de estalar, um verão dos antigos tempos. Ninguém andava contente. Todo o mundo se queixava em tressuadas lamentações. Os que podiam faziam as malas e fugiam para o campo a procurar na sombra das árvores o fresco que Lisboa, apesar do Tejo, afincadamente lhes negava. Mimi, delicada como uma flor de orquídea, perdia com os repentinos calores as róseas tintas desmaiadas, que os primeiros dias de primavera lhe costumavam emprestar às bochechinhas desbotadas. Vestida de branco, a sua carita fazia pensar num jasmim emergindo do cálice duma açucena. Era forçoso sair de Lisboa. Os médicos tinham posto de parte a ideia de Sintra. Os contínuos nevoeiros da serra não convinham à delicada saúde da encantadora Mimi. Aqueles seis anos, para que frutificassem, necessitavam duma temperatura doce e igual sem umidades excessivas. Foi então que o avô lembrou a sua casa do Giestal. Em circunstâncias normais sabia que nem o filho nem a nora o atenderiam; mas como não podiam ir para Sintra, e, aqueles meses no Giestal não impediam a temporada de Cascais, apesar da frieza que encontrava em volta de si, não descansava de celebrar em cada dia, enquanto se não tomava uma resolução, as virtudes dos sadios ares da província. Nunca ali ninguém tinha adoecido pretendia, e, sorria sobretudo ao seu desculpável egoísmo de velho a ideia de três tranquilos meses passados na antiga casa dos seus maiores, na carinhosa intimidade dos seus filhos e da sua lindíssima neta. Depois do seu casamento nunca mais voltara a gozar um verão no seu velho solar. Que de recordações ali o esperavam?!... Com que saudade relembraria os decorridos tempos da sua despreocupada mocidade!...

Como cada dia se tornava mais necessário evitar à Mimi os calores doentios de Lisboa, e uma manhã a mãe tivesse descoberto olheiras mais fundas, nos olhos claros da filha, fizeram-se à pressa as malas e partiu-se para o Giestal. O avô fez a fez a viagem contente como um colegial, e, ao acordar de madrugada na carruagem do caminho de ferro, ainda lhe parecia que sonhava; mas deparando com a neta adormecida sobre uma almofada tendo nos lábios infantis o sorriso encantador dum sonho cor de rosa, beijou-a cauteloso e através dos olhos umedecidos viu ao longe na nevoa da manhã, que encobria o cimo das árvores, a miragem fugitiva do tempo feliz em que moço, alegre e namorado, se debruçava também sobre o berço duma criança que era o seu filho... E sentia-se remoçar não despegando os olhos da neta, que voltaria do Giestal forte e robusta como uma criança do campo criada ao sol, ao vento e à chuva, no contato constante da rija natureza. Era a saúde da Mimi a sua continua preocupação. Ela nascera pequenina e enfezada, alguns anos depois do casamento dos pais, tão pequenina que, nos primeiros tempos, mal se percebia ao colo da ama, coberta como andava com os compridos vestidos de renda. Depois foi crescendo, mas sempre tão franzina, que só tarde principiou a andar. A mãe, aflita com a fraqueza da filha, mais contribuía, com os seus excessivos cuidados, para o moroso desenvolvimento daquela débil organização. Em casa, mal a Mimi entrava numa sala, fechavam-se logo todas as vidraças e corriam-se os reposteiros das portas. Ao jardim só ia quando as folhas das árvores nem sequer mexessem. E no coupé, passeando com a mãe, apenas se descia um dos vidros, um instante, à porta do Baltresqui, para que a Mimi escolhesse o mais apetitoso bolo. O pai tentava em vão reagir contra semelhante higiene; a mãe porém, julgando ainda poucos todos os cuidados, iludia-o, asseverando-lhe que a Mimi passava horas inteiras no jardim a brincar com a bonne, uma francesa que tinham mandado vir para criada pequena; mas o certo era que a pobre Mimi continuava sempre vivendo na tépida atmosfera dos quartos fechados, sobre tapetes macios, na entorpecedora convivência de bonecas caras! crianças tinha-as visto uma vez, num entrudo, num baile infantil, no salão da Trindade, atafulhada ela própria num costume vistoso de lavradeira de Afife! À falta de sol, de luz, estiolava como uma flor do campo transplantada num vaso do Japão e repentinamente metida, por largo tempo, numa sala às escuras.

***

A estada no Giestal foi para a Mimi uma salvação. Como o pai ali não tivesse nem o Turf-club, nem São Carlos, nem o Grêmio, nem o Chiado, nem o mundo, tudo enfim que em Lisboa constitui uma ocupação para a ociosidade elegante, ele pôde em cada dia consagrar-se inteiramente à sua encantadora filhinha. E foi assim que se consolou das saudades que nos primeiros dias sentia de tudo isso e do Pátio do Victor, dos Pisões, de Seteais, dos passeios pelas serras, das caminhadas até Monserrate pela estrada de Colares, na sua Sintra tão querida para onde, em cada ano, costumava ir passar os três compridos meses de verão. Se não fosse o seu bom senso aqueles meses de campo teriam sido para ele um verdadeiro suplicio. A mãe não consentia que a Mimi descesse ao jardim sem a agasalhar como se se estivesse nos dias mais frios de inverno, e, além do enorme chapéu de palha que a cobria como um tortulho, eram sem numero as recomendações à bonne para que levasse o guarda sol sempre aberto de maneira a abrigar a pequena dos raios do sol. Isto nos curtos passeios, ao fim da tarde, à sombra das cerejeiras copadas e abraçadas pelas vides, que ladeavam o estreito caminho, por entre os campos, que ia dar à bouça. Como depressa o pai tivesse compreendido que não seria fácil convencer a extremosa mãe do que mais convinha fazer para a saúde da Mimi, deixou-se de discutir, e, com o pretexto de acompanhar a filha, a primeira coisa que fazia, ao sair o largo portão do pátio, era tirar-lhe todos os casacos e xales com que a mãe a atabafara, atirando-os para dentro do muro do laranjal, onde a bonne para os ir buscar, tinha de dar uma comprida volta para não ser vista de casa. A Mimi, nos primeiros tempos, cansava mesmo antes de chegar à bouça. O pai então fazia-a sentar sobre as pedras musgosas, e, para a distrair, apanhava flores do campo que lhe atirava para o regaço; ela, habituada aos estofos, sentava-se desconfiada vingando-se com frenesi nas pétalas vivas das flores que desfolhava com crueldade. Se um melro, assustado, fugia, assobiando jovial de entre o silvado, a Mimi, atemorizada, dava um grito e chorava! O pai, com uma grande paciência, contava-lhe enternecedoras histórias dos passarinhos, histórias que ele inventava, que eram os grandes amigos dos lavradores a quem limpavam as searas, e das crianças que, quando eram bonitas e boas, lhes vinham pousar nas mãos muito contentes e alegres a cantar! A Mimi abria os olhos espantada e já queria um melro, um pintassilgo, um verdilhão, que era bonita e boa!

Com os pássaros habituara-se cedo; mas com os mansos bois pacíficos que ao cair da tarde desciam vagarosos o caminho da devesa, onde pastavam, para beber na poça em antes de recolher, foi bem mais difícil. Por mais que o pai lhe pegasse ao colo e a levasse junto dos bois, ela não era capaz de se habituar à vista daqueles monstros, eram sempre os mesmos gritos, o mesmo choro. Um dia, porém, o pai fez notar à Mimi que a pequena que acompanhava o gado teria quando muito dois dedos de altura mais do que ela; que era uma vergonha para uma menina da cidade ser menos do que aquela rapariguita do campo; e chamou a Maria para se por ao lado da Mimi para que visse bem que eram quase da mesma altura. A pequena aproximou-se macambúzia e agarrando da mão da Mimi disse-lhe resoluta:

– Venha comigo, menina. Os boizinhos não fazem mal.

A Mimi deixou-se arrastar até junto da poça, onde a Maria, metendo-se por entre os bois, os principiou a afastar batendo-lhes com a sua pequena mão espalmada e exclamando esganiçada:

– Arreda malhado! Safa daí marelo! Desde aquele dia, nunca mais a Mimi teve medo dos bois que encontrava pelos atalhos. Pouco a pouco foi perdendo todos os sustos que a torturavam. E agora, com grande espanto da mãe, já descia sozinha as escadas de pedra sem medo dos cães de guarda que ao vê-la acudiam do pátio aos saltos, ganindo de contentes, agitando os rabos para a festejar! Ao fim dum mês operara-se uma transformação completa naquela criança. Era outra. A Mimi, que até vir para o Giestal, apenas debicava às horas de comida, sentindo só apetite para os bolos que a mãe lhe dava às escondidas, engolia agora gulotonamente a sua açorda do primeiro almoço, o que a não impedia de devorar, algumas horas mais tarde, um substancioso bife e de comer de tudo ao jantar sem nada lhe fazer mal. Crescia, robustecendo-se a olhos vistos e nas bochechas, antes desmaiadas, acendiam-se as sanguíneas cores da saúde, tão vermelhas como os cachos redondos da madressilva dos campos que principiam a amadurecer quando as suas brancas flores de inebriante perfume caem emurchecidas no chão dos caminhos!

A mãe, ao vê-la em cada manhã mais forte ainda do que na véspera, sem confessar a sua culpa, depunha enternecida um beijo na testa do marido e prometia ao avô, que exultava de contente, voltar para o ano muito mais cedo, logo depois dos primeiros dias de primavera. A Mimi era enfim feliz, sujando durante o dia bibes sem conta, brincando com a terra, lambuzando-se com as amoras dos silvados, chafurdando na beira da poça com os filhos do caseiro, um rancho de crianças quase todas do mesmo tamanho, sempre muito sujas e de quem a Mimi, no começo, se afastava com visíveis náuseas de enjoo no seu narizito arrebitado.

***

A Mimi jantava todos os dias sozinha, às quatro horas da tarde, na vasta sala de jantar. A mãe, o pai e o avô, vinham fazer-lhe companhia gozando de a ver tasquinhar, com os seus dentes miúdos, a carne que ela em Lisboa não consentia nem sequer em cheirar. Depois saía com a bonne a dar um largo passeio pela devesa fora. As mais das vezes iam até à pequena igreja da freguesia que ficava no cimo do monte.

Uma tarde, num destes passeios, tomaram outro caminho e passaram rente do cemitério, um cemitério de aldeia construído havia pouco, cercado por um muro baixo sobre o qual corria uma grade de ferro. As ruas areadas, os talhões cobertos de relva e os ciprestes esguios ainda muito pequenos, fizeram crer à Mimi que estava defronte dum jardim, tomando o único jazigo de mármore branco que se erguia altivo no meio daquela simplicidade – e que era a última morada dum comendador ricaço da freguesia que fizera a sua fortuna no Brasil – por um gracioso quiosque de recreio! A bonne teve de lhe explicar o que era um cemitério, fazendo-lhe notar as pequenas cruzes de pau dispersas pelo chão, e, acrescentou que era ali que enterravam os que morriam!

A Mimi, abrindo desmesuradamente os olhos, insistia com perguntas:

– Quem fazia as covas?

– Quem deitava depois a terra em cima?

E a bonne referia que era o coveiro; mas que era bom homem porque era ele quem assim trazia tratado o cemitério ao ponto da Mimi o ter confundido com um jardim!

A Mimi, embezerrada, agarrando-se às pregas da saia da bonne veio-a afastando do cemitério e nos seus olhos muito abertos liam-se-lhe os sustos e os terrores dos primeiros tempos do Giestal em que ela tremia de tudo! A bonne sem reparar, como ela não papagueasse, cantava-lhe as canções suas prediletas – Le petit navire, le pont d’Avignon. E assim foram indo tomando pelo portelo da encosta. O sol escondendo-se como uma roda em fogo por detrás dos montes distantes dourava através da nevoa opalina que subia lenta do vale, a crista dos pinheiros da devesa. Como o passeio tinha sido mais longo que o costume assentaram-se, para descansar, sobre um penedo raso que uma velha carvalheira abrigava. A Mimi, já distraída, apanhava as landes ainda verdes que p. vento fizera cair quando a bonne, mostrando-lhe um homem que se encaminhava para elas pelo carreiro fora, lhe disse que era o coveiro. A Mimi olhou cheia de espanto; mas assegurando-se bem que era um homem como qualquer outro, deixou cair a abada de landes que tinha no bibe e a correr foi direita a ele, e, tomando-lhe o passo, ergueu as mãos em súplica gaguejando chorosa:

– Olhe, senhor, quando eu morrer não me deite terra em cima da cara. Não?...

O bom do homem, passando-lhe as rudes mãos pela carita mimosa sossegou-a; que ela não morreria; que não havia de ser ele quem a enterrasse; que muito primeiro o haviam de enterrar a si; e, quando daí a muito tempo, muitos anos, ela porventura morresse, que lhe não deitariam terra na cara; que havia de ser com uma cal branca e fina, que lhe haviam de cobrir todo o corpo num caixão muito rico coberto de veludo e ouro!

Então a Mimi radiante, aos pulos, veio ter com a bonne, que já de pé a chamava sem poder atinar com a explicação daquela cena, e depois de lhe referir o que o coveiro lhe dissera, terminou acrescentando:

Si tu me promets qui ce ne sera pas avec de la chaux, mais avec la poudre de riz de maman qu’on me couvrira je naurai plus peur de rien!

E foi realmente com esta tão simples promessa que se desvaneceu o derradeiro susto de Mimi.

---
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...