6/12/2019

Tipos da terra (Conto), de Trindade Coelho



Tipos da terra

(A Rafael Bordalo Pinheiro)

Desembocaram num largo. Era o ponto mais central da terra, – a praça. – Aqui e ali, ao acaso, algumas árvores enfezadas, quase tudo olmos brancos, vegetavam a medo, com os troncos protegidos por velhas grades de madeira, desmanteladas. Era um terreiro vasto, muito chato, com casas em volta, – o que na vila havia de melhor em construções. Ficava ao meio o pelourinho, exótico, mutilado, de uma pedra grosseira e muito negra. Era uma alta coluna de oito faces, com o seu anel de ferro ao meio, e uma argola pendente do anel. A coluna, que se elevava sobre um pedestal de três degraus, em hexágono, terminava ao alto num grande X de pedra deitado horizontalmente. Um espigão de ferro, de três gumes como os floretes de esgrima, irrompia hostilmente do meio do X, perfurando o espaço. Em volta, a casaria era triste, sem estilo, sem gosto, sem cal. Algumas pedras de armas em velhas paredes decrépitas, desequilibradas, hidrópicas, atestavam aristocracias remotas, agora de todo extintas. Ao alto, dominando a negrura chamuscada dos telhados, o velho castelo, romano de origem, fazia tristeza com as suas ameias derrocadas, e as grossas paredes em ruínas. Ao lado do castelo erguia-se destacadamente a velha torre do relógio, de uma arquitetura primitiva. Tinham dado onze horas, mas eram apenas as sete: aquele – estafermo – é que não andava nunca direito. De dia ninguém o entendia, com o seu ponteiro de ferro girando num mostrador sem letras, de uma pedra azulada. De noite fartava-se de badalar, alvoroçando a povoação como se fosse a fogo, ora atrasado, ora adiantado, dando meia-noite quando eram quatro da tarde, e meio-dia mal despontava o sol. Eram as sete. Àquela hora é que os  figuros  da terra, quase tudo empregados públicos, vinham para o largo, fresca. Alguns passeavam, – seu fraque, sua bengala de cana com castão, chapelinho à banda, sapato branco um ou outro. Nas escadas do pelourinho, sentados, outros do mesmo feitio cavaqueavam, – coletes desabotoados, perna cruzada, chapéu para a nuca, às três pancadas. Um de pera comprida, no degrau superior, contava facécias. Os outros riam alarvemente, chamavam-lhe intrujão. Algumas – madamas – pelas janelas em volta, nostálgicas, anafadas, de claro. À porta do estanco, em cima, havia outra roda, – uns de pé, outros sentados em caixas, alguns montando cadeiras de pinho. Era a – roda mais forte, – quase tudo maiores burocratas: – o Melo da Administração, o Antunes da Câmara, o Escrivão de Fazenda, o Rodrigues do Real de Água. E outros. À porta, perfilado e muito cerimonioso, o dono do estanco, alto, esguio, flexível, com a sua cara rapada e o seu chinó castanho, eriçado e velho. Era de maneiras feminis, uma falinha melíflua, cantante, viva, muito desempenado quando andava, saracoteando-se todo, em biquinhos de pés como se fosse levantar voo. Chamavam-lhe Ernestinho. Não se podia falar diante dele num rato morto, numa carocha. Aquilo “fazia-lhe nervoso”, enojava-o, ficava-se a cuspinhar meia hora, dizendo constantemente:

– Ai Jesus! ai Jesus! Caticha! Nossa Senhora do Carmo! Nem sei como não lanço fora!

E se riam, ele exasperava-se: não compreendia como pudessem falar em tais coisas! De resto, bom sujeito, finório para o seu negócio, – um poucochinho beato... – diziam-lhe.

– Meu proveito. Não que eu não quero a minha alma nas penas do inferno, a arder! Leiam a Missão Abreviada, leiam esse rico livro!

E as palavras saíam-lhe a correr, espremidas nos seus lábios delgados, um poucochinho sibiladas nos ss.

– Cigarros, Ernestinho, um vintém deles. Querem-se dos de Lima, desses fortes.

Declarou que também havia dos “especiais”. Algum senhor queria? Tinham chegado três maços, para ver. Oito por um vintém.

– Pois guarde-os! – disseram alguns, horrorizados com a ideia de dar um vintém por oito cigarros. – Guarde-os!

“O senhor engenheiro, quando vinha à vila, perguntava-lhe sempre por eles. Dos de Lima nem o cheiro, não gostava.”

– Olha o figurão! – disseram a rir. – Por esse mundo fora sempre há muito idiota! Forte cavalgadura!

O Ernestinho veio com os cigarros, em feixe nas pontinhas dos dedos. À porta, antes de os entregar, contou-os de novo. Doze. Estavam certos.

– Ó senhor Ernesto, se faz favor, ponha isto lá no caderno, ao pé dos outros.

Ernestinho foi para dentro, contrafeito, fazer o apontamento. Houve um silêncio oprimido, o dos cigarros tossiu para o quebrar, ao mesmo tempo que num gesto acanhado, receoso, fazia menção de oferecer: – “alguém era servido?”

Dentro do balcão, ao pé das garrafas com licor, e das botijas de genebra, Ernestinho somava a conta. Era já taluda. – “E vão dois e dois quatro e dois seis: seiscentos e vinte! Sabe Deus quando os receberia!” – E suspirava, arrumando os maços encetados, sob o olhar tranquilo e indiferente do Santo Antoninho que lá estava em cima, ao alto das estantes quase vazias, no seu nicho feito de um caixote forrado a verde, com flores artificiais muito sujas e duas velinhas dos lados. Mas resignava-se, que não tinha outro remédio. Eram os ossos do ofício...

Cá fora tinham dado fé, acotovelavam-se chamando asno ao Ernestinho, – “um pulha a quem ajudavam a viver... Se hoje não há dinheiro, há-o amanhã, essa é boa! E pagava-se, com os diabos! E pagava-se! Mas não senhor! aquela besta mostrava sempre má cara, o alarve! A culpa tinham-na eles, afinal, que o procuravam, que o preferiam! Tomaram os outros ter aquela freguesia...”

O dos cigarros fiados anuía, assobiando baixo o Água leva o regadinho. Por fim levantou-se, lentamente, com um ar de enfado, um sorrisinho de despeito nos lábios, encolhendo os ombros.

– Estender as pernas – disse. – Quem vem daí?

Todos ficavam: “era uma estopada andar para trás e para diante, naquela sensaboria da praça”.

– Até logo. Você aparece no sítio, à noite?

– Apareço, vou à desforra.

E cumprimentou em roda:

– Meus caros! Muito boa-tarde, senhor Ernesto.

Foi-se, puxando para baixo as pernas da calça, alisando as joelheiras.

– Que tal está o asno, hem? Quer, ainda por cima, que o Ernestinho lhe diga bem haja...

“Era um parvo”. – “Era um tolo”. – “Tinha dívidas nos outros estancos”. – “Em toda a parte”. – “Lá em casa a família passava fomes”. – “Um batoteiro de marca”.

Houve agitação, alguns puseram-se de pé, outros mudaram de lugares. Ia a passar um grande carro de palha, chiando muito. Ernestinho chegava-se de novo, muito ronceiro, roendo as unhas.

– Com que então... ponha lá ao pé dos outros? – disseram-lhe, para o lisonjear nos seus despeitos. – Bem bom freguês!

Ele encolheu os ombros e cerrou os olhos, beatificamente, num gesto de mártir resignado. E não disse palavra: – “para falar daquele tinha de falar também deles...”

Mandaram vir limonadas: – “três limonadas!”

– Aí vão trinta réis!

“Diabo! era preciso animar aquilo! Assim não tinha jeito!” – E puseram-se a falar do tempo, das moscas, daqueles idiotas que andavam na praça a dar-se ares. Ensoberbecia-os a ideia de que iam tomar três limonadas, – e sentiam-se felizes, alegres, um tanto estroinas.

O Ernestinho deu dois passos fora da porta, e chamou para a varanda, onde grandes manjericões floriam:

– Ó Emília! Emilinha!

A mulher assomou, gorducha, muito mole.

– Três limonadas, ouves? Três limonadinhas depressa.

As conversas animavam-se. – “Pois senhores! havia de ser difícil encontrar uma coleção de asnos assim!” Falavam dos que passeavam na praça, aos grupos. – “Deus os faz. Deus os ajunta!” O palerma do Fernandinho dera-lhe agora para cantar! Lá andava ele. Volta, meia volta,

Vai alta a lua na mansão da morte com umas tremuras na voz, que eram mesmo de o esbofetear! Estava antipático, aborrecido, desde que andava de namoro com a Marques. Só tinha uma coisa boa – a caligrafia. – Um talhe de letra bonito, – confessavam. – E as calças, hem? reparem vocês naquelas calças: vai flamante! Casualmente, Fernandinho olhou de longe para os do estanco, disse-lhes adeus com a mão, afável. Corresponderam todos muito risonhos, mas a chamar-lhe nomes por entre os dentes:

– idiota, palerma, pechisbeque...

Sozinho, numa lentidão moribunda, olhos nas botas, olhos no céu, o Teles escrivão passava ao largo, ruminando alguma poesia. Às vezes quedava-se extático, suspenso, o polegar esquerdo entre os dentes, um olho cerrado fortemente, a meditar. Vinha um gesto e punha-se de novo em marcha, contrafeito.

– Ó senhores! mas não me dirão em que anda a parafusar o Teles, aquele telhudo? É isto: – e pôs-se a imitar o escrivão.

Riram. O Melo imitava-o bem, o alma do diabo, no andar especialmente! Mas aquilo era um logogrifo. Há uma semana às turras a um logogrifo em acróstico.

– Isso é o Teles! – fez um que vinha da praça. – Aquilo é um intrujão! Na rua não é que se adivinham logogrifos. Ó Ernestinho, você ainda tem daquilo que ferve?

O Ernestinho deixou descair o lábio, não percebia...

– Homem! daquilo que vinha numas garrafórias escuras, compridotas...

– Quer dizer gasosas. Uma rolha segura com guitas...

– Ora é isso mesmo, nem mais.

– Bem sei.

“Mas não tinha já. Nem mesmo queria mais, para quê? Achavam caro um tostão...”

– Eram aos três para beber uma garrafa...

– Pudera! Por um pataco, trinta réis levando o açúcar, fazia o Ervas uma soda, – objetaram alguns. – Ponha lá que em gosto é a mesma coisa!

– E aquela porcaria, ó Ernestinho, e aquela porcaria amarela que sujava tudo de escuma?

Alguns cuspiram, disseram ao Alves que se calasse, que vomitavam, com seiscentos diabos!

– Cerveja! – disse o Ernestinho – cerveja! uma coisa que lá para baixo toda a gente bebe por gosto, as senhoras mesmo!

E com um sorriso de desdém, exclamou:

– O que é ser do calcanhar do mundo! Em nome do Padre, e do Filho...

Mas na praça um grupo altercava. Ouviu-se distintamente a palavra – pulha – pronunciada com força. Saíram em tropel, ficaram só três. – O que pagava as limonadas exultou:

– Homem! nem de propósito! Ficava exatamente quem ele queria, estava mesmo a ver que aquela súcia lhe chupava o refresco:

– Tó Ruça! Já lá vai esse tempo!

Precisamente, a Sra. Emília chegava, com os copos numa bandeja: – “Que provassem: diriam se precisava mais açúcar. Mas parecia-lhe que devia estar bom...”

Beberam de um trago, estava ótima! – “A senhora Emília tinha dedo para aquelas coisas”.

– Obrigado, ó Melo!

– Obrigado, ó menino!

E os dois saíram de rompante, chamando pato ao Melo, rindo-se dele e limpando os beiços.

Quando o Melo ia a sair, – a ver o que ia na praça, – o Ernestinho, muito cortês, objetou-lhe que faltavam trinta réis: – Se ali não tinha, depois. Isso era o mesmo...

– Mas trinta réis?!... De que são os trinta réis? – perguntou desconfiado o Melo.

– Do açúcar, foi do refinado, – explicou o Ernestinho. – O mascavado acabou-se. Amanhã ou depois já devo ter mais. O senhor Melo desculpe.

“Não tinha que desculpar; somente notava que aquelas coisas diziam-se no princípio”. – E saiu sem dar mais palavra, furioso: – “Uma ladroeira! Três vinténs não valiam os dois que lhe tinham chupado o refresco...”.

Na praça tinha cessado a altercação; os grupos, reunidos, formavam uma grande roda, comentava-se. O Melo quis informar-se: – que lhe contassem – o escândalo.

“Ora! não fora nada: o Veiga que se tinha lembrado que as correspondências na Voz do Distrito eram escritas pelo Albano. Disse-lho na cara. O Albano negou, deu a palavra de honra. O Veiga, que é casmurro, teimou: – “que não acreditava, ainda assim!” – Vai o outro chama-lhe pulha, iam-se pegando. Ora ai está!”.

– Mas afinal, quem diabo escreve aquilo? – quis saber o Melo. – Aquilo há de ser escrito por alguém, está claro!

“Dez réis pela novidade! Que havia de ser escrito por alguém sabiam eles...”

– Quem, então?

Divergiam as opiniões. Podia ser Fulano, podia ser Beltrano. Um ou outro dava a sua palavra de honra que também não era ele, jurava-o! Houve um que se lembrou se aquilo seria do padre Mendonça...

– Qual?! Do padre Mendonça não é. Fazia coisa melhor, se se metesse nisso. Olha o padre Mendonça, o da gibreira de Braga...

Mas o da ideia insistiu, renitente: – “havia ali duas coisas que o faziam lembrar, certas facécias, como a de chamar Frei Asneira ao Reitor e Cabeça de Comarca ao Felisberto”.

– Pois se é ele, que se regale; pode limpar as mãos à parede! Mente como um alarve, mente da primeira linha até à última! – disse firmemente o verdadeiro autor das correspondências. Olhem o que ele diz do juiz de direito, só calúnias! O juiz! um homem teso! Tem lá o seu fraco pelas saias, mas isso, que diabo! isso não é defeito.

De resto, eram todos acordes em que as correspondências eram uma infâmia. O que se chama uma infâmia pegada! Mexericos e mais nada, uma coisa de soalheiro! E depois, o dizer-se lá que entre os rapazes não havia duas amizades leais, que era tudo uma impostura?!...

Houve um silêncio significativo, talvez de aprovação.

– Só de pulha! – rematou por fim o Nunes da Fazenda, o tal que escrevia as correspondências com o pseudônimo de Aramis. – Vejam vocês aquelas galegadas ao comendador! Aquilo chama-se lá fazer política?! Discuta-se o homem como presidente da Câmara, sim senhor; discuta-se o homem público, o funcionário; mas deixe-se-lhe em paz a marreca, os fundilhos das calças; ninguém quer saber se os criados lhe param em casa, ou se não! E depois, aquelas alusões à família, aquelas piadas à D. Engrácia, pobre velha...

– A quem? – interrogaram uns poucos. – A Dona quê?

– À D. Engrácia, está bem de ver. Aquela beata que fazia peúgas de lã aos missionários ela. Presumo eu que é ela, – fazia o Nunes das correspondências com um grande ar de suposição. – Eu cá foi para onde deitei.

Os outros não. E como o das correspondências tinha prometido explorar a “crônica beata”, aguardariam mais informações. Supunham, no entanto, ser com a D. Joana, a do – chá da erva cidreira. – Outra canalhice! A D. Joana, para festejar os anos da filha, convidara tudo, lazarões e penicheiros, não fizera política. Depois foi aquela tareia que se viu: – que o chá era erva cidreira, que tinham bolor os doces de ovos, que ela parecia a quaresma e a filha o entrudo...

Ora isto não se diz; a pobre mulher doeu-se! Citavam-se de cor frases inteiras da correspondência. Por exemplo: – “A deusa da festa dizem que recebeu telegramas de... amor.” – Uma facécia de mau gosto aludindo ao Proença telegrafista. Depois do que por aí se diz, é forte... Que afinal, quem sabe lá?! Entre os dois que diabo pode haver?! Namoro?!

No grupo alguns tossiram forte, rindo. O Nunes interveio:

– Não senhores! Isto agora alto lá! A Amélia é uma rapariga séria...

Riram às gargalhadas: foi um barulho com a tosse!

– Quando digo uma rapariga séria... Mau! Acomodem-se lá com o banzé, vocês deixem falar! – tornou o Nunes, formalizado. – Quando digo uma rapariga séria, quero dizer… sim… quero dizer... – e procurava a frase, entalado, – por exemplo, que ela não é capaz de receber ninguém, alta noite, lá pelos quintais, como o tal das correspondências quer fazer suspeitar.

Iam replicar-lhe, mas ele atalhou:

– Chama-se àquilo ser canalha às direitas, arre! Isto agora é falar franco. Saltaram-lhe:

– E você jura, ó Nunes? Você jura? – perguntou, com gesto perfurante, o Alves dos Pesos e Medidas.

“Não... isso agora... Jurar, não jurava; mas, com os diabos! pelo que se via, pelo que se podia julgar...”

– Lérias! – disseram todos.

“O Nunes parece que estava com os beiços com que mamara! Com que então, para ele era tudo uma récua de santas?! Desenganasse-se, que era tudo uma canalha, uma corja de sonsas! Que diabo de ingenuidade!”

O Nunes observou modesto, quase agradecido:

– Ingenuidade, eu te digo... Não é bem isso... O que sou, é prudente. Desconto sempre noventa por cento àquilo que vocês dizem, aí é que está...

– “Vocês” é um modo de falar! – emendaram alguns.

– Vocês, digo eu, vocês… quando escrevem correspondências, – explicou sofisticamente o Nunes.

Calaram-se, disfarçaram. Próximo deles, a Amélia toda de verde, com guarnições de fita preta, caminhava ao lado da mãe, solenemente. Tiraram todos o chapéu, cortejando risonhos, respeitosos. O Nunes foi cumprimentá-las, submisso.

– Dar o seu passeio, não é verdade? – E apertando-lhes a mão: – Vocelência como passou? A senhora D. Amélia? Obrigadíssimo. Assim... assim...

“Então? que diziam àquele calor?”

– Abafava-se, ali pelas duas. Que forno!

– O Brasil tal qual – reforçou o Nunes.

“Mas que fora feito, que as não tornara a ver desde os anos? Uma noite de truz, aquilo sim!”

– Olhe, senhora D. Amélia, a flauta... a flauta é que nem por isso: foi pena! O Abelzito andava constipado. 

A D. Amélia explicou: – “A mãe ficara doente, já não era para aquelas noitadas”. – E em voz mais baixa, quase dolente:

– Depois, veio a Voz do Distrito: aquilo chocou-a muito.

– Não há tal! – fez a mãe. – Meteu-se-te isso na cabeça. Deixe-a falar, senhor Nunes. E por pouco não chorava ao dizer isto.

O Nunes afetou um sentimento profundo: – “Era melhor não falar nisso, não pensar em tal; todos as conheciam, todos lhes faziam justiça. Tinham acabado de falar na tal correspondência, agora mesmo.” – Uma garotada! – resumiu o Nunes. – E em tom confidencial:

– Anda-se na pista do garoto. Ele há de aparecer. E depois... e depois... Muito boa tarde, minhas senhoras! O que for soará. É preciso dar um exemplo, – concluiu terminantemente.

– Uma severa lição!

Despediram-se; elas agradeceram ao Nunes – “a parte que tomava no seu desgosto”. – E seguiram cumprimentando para as janelas, perguntando se vinham daí um bocadinho até à capela, espairecer.

As Silvas pediram que subissem. “Um bocadinho só. Ficava bem aquele vestido à Amélia.”

“Não podiam subir, talvez à volta.”

– Pois sim, hás de ver o meu bordado a miçanga. O papagaio está quase pronto, que trabalhão!

“Estava na dúvida se lhe poria o bico assim, de gancho. Não gostava. O risco era do

Fernandinho. Já lhe fizera outro, talvez mais bonito.” Coisas de anjinhos:

– Verás.

Os grupos tinham-se reunido em volta do Pelourinho. Passava gente que vinha do trabalho, da labuta áspera da eira, – homens com malhos, e mulheres de cestas à cabeça. A tarde descaía numa serenidade calma. No degrau de cima, o Paula, oficial da administração, com fama de tipo de chalaça, cantava em surdina umas cantigas de caserna, obscenas, zaranzando na barriga como se fosse numa guitarra. De volta, os outros formavam roda. Todos riam, pediam bis.

– Tu hás de conhecer isto, ó Chico! – dizia o Paula para o Francisco Maria, um cabo que estava de licença. – Tu hás de conhecer isto.

O administrador do concelho, um pobre-diabo desmazeladão e filósofo, afirmava “que lhe lembrava Coimbra, a pândega das vielas. Ao Paula valia-lhe a prenda, palavra de honra que lhe valia a prenda, senão já o tinha demitido, às vezes que lhe entrava borracho pela repartição.” – E pedia a rir, boçalmente:

– Ó Paula! Aquela do bate-bate, canta lá.

E trauteava as primeiras notas, castanholando com os dedos. – Se era preciso, o Fernandinho ia pelo violão.

– É verdade, você que fez hoje que me não apareceu na repartição, ó Fernando?

– Dormi, está claro! Ao senhor doutor acontece-lhe o mesmo às vezes. Olhem que pergunta!

Mas o Paula tinha-se calado, bocejava.

– Então, ó Paula... – suplicava o administrador.

– Está fechado o realejo! Depois.

Quem lhe dera que fossem as nove para irem até ao “sítio”. Ou perder ou ganhar; tinha ali seis tostões que eram para um mico.

– Mas eu não lhe dizia, senhor doutor? eu não lhe dizia ontem que a dama se negava? Eu estava mesmo a ver aquilo... Bem feito! “gramou” um entalão que se consolou.

– Quatro coroas. – Na véspera tinha ganho um quartinho.

Nesse momento passava o juiz, sozinho como sempre. Todos tiraram o chapéu; ele passou gravemente, cortejando.

– Quem eu te quero à perna é o Aramis... – rosnou o Teles escrivão, que embirrava com o juiz desde que o suspendera uma vez. – E ainda ele não sabe tudo... – insinuava perfidamente.

– Pois o resto diga-lho você, diga-lho no Almanaque de Lembranças, em verso – fez de um lado o Rodrigues do Real de Água.

O Teles, com famas de literato, redarguiu que “não dava confiança a analfabetos”.

– E eu a brutos, sabe você?

Mau! que eles lá começavam! Oficiais do mesmo ofício... Ó senhores, lá porque ambos faziam versos não se seguia que devessem embirrar um com o outro. Pelo contrário.

O Teles, furioso, disse que não embirrava com o outro: que nem lhe dava essa importância, essa honra!

O Rodrigues ia saltar-lhe, tiveram mão nele. Mas jurou que de outra vez seria, que fizesse de conta que já lá tinha na cara quatro bofetadas tesas.

– Tesas, hem?! Olá! quatro bofetadas tesas!

Havia de dar-lhas, tão certo como dois e dois serem quatro, só para ter o gosto de dizer depois, num comunicado, que desafrontara as letras portuguesas – ele, o Rodrigues, ele, um simples fiscal do Real de Água!

Aquilo fez surpresa, convidaram-no a explicar-se.

– Não senhores! – dizia colérico o Rodrigues, com grandes gestos. – Bem sei que não valho nada! Escrevi, é verdade que escrevi; faço ainda o meu verso quando me dá na cabeça. Uma rapaziada! Estão maus? Concordo. Mas não há de ser aquele négalhé que o há de dizer! Não o julgo habilitado. Lá porque tem soletrado dois romances, não se segue. Mas o que mando para o público, sim, o que entrego aos prelos – é meu! – E batia no peito com a larga mão espalmada, furioso, numas raivas de orgulho triunfante. – Não roubo! nunca roubei! – afirmou mais alto o Rodrigues, para que o Teles, que se ia retirando, no meio de dois amigos, conciliadores, o ouvisse. – Repito: não roubo, não faço como ele! – E as palavras saíam-lhe salivadas, violentas por entre os lábios espumantes, atiradas ao Teles como pedradas.

Os outros escutavam agora com interesse. Estavam a dar razão ao Rodrigues, instintivamente, sem compreender bem o que ele queria dizer.

– As provas... – e meteu a mão no bolso do seu casaco de lona, com ímpeto: – as provas, elas aqui estão!

Mostrou no ar a brochura verde do Almanaque de Lembranças. – Era do ano que vem, tinha-lhe chegado hoje. Ali estava o Peres do Correio que lho tinha entregado ele mesmo.

– Sou testemunha – confirmou do lado não sei quem.

O Rodrigues, então, afirmou que era preciso “historiar”: contaria a coisa em duas palavras. O Sr. Teles, o borra-botas do Sr. Teles, lembrara-se um dia de ser escritor, de ser poeta! O alarve! Todos os anos – zás! versalhada para o Lembranças...

– Era colaborador! – disse o Antunes da Câmara que admirava o talento do Teles. – Era colaborador!

– Era quê?! – interrogou logo o Rodrigues, de mão atrás da orelha. – Maçador, maçador que ele era! Nunca lhe admitiram as asneiras, se me faz favor, nunca! Na correspondência troçavam-no, chegaram a dizer-lhe que podia fazer fortuna pelas tombas, que o não chamava Deus para as letras. Aquele – Serei ousado? – é ele, sei eu que é ele. Nunca o admitiram!

– Lembro-lhe a Flor do Campo, senhor Rodrigues, lembro-lhe esses versos! – insistiu o Antunes.

O Rodrigues teve um risinho feroz, fitando o escrivão da Câmara. Não lhe respondeu. Subiu os três degraus do Pelourinho, pausadamente, com pompa, e chamou a atenção dos amigos. Ia ler. Abriu o Almanaque de Lembranças, onde trazia um papel, e rompeu: – “Indignidade.”

– Em letras bem graúdas, queiram inspecionar.

E colou ao peito o Almanaque, voltando para fora na página onde o seu dedo reboludo apontava a terrível palavra, – escrita ao alto em epígrafe.

Houve um sussurro, alguns pediram silêncio. O Rodrigues que lesse.


“Os versos intitulados Flor do Campo, que viram a luz no Almanaque de Lembranças do ano extinto, foram-nos remetidos pelo Sr. José Maria Teles, escrivão.”

– Copiados por mim, uma letra floreada – esclareceu o Fernandinho. – Ele depois assinou – e fez no ar, com o dedo, o traço complicado da firma complicada do Teles.

Pediram silêncio outra vez. O Rodrigues continuou:

“Publicamo-los na convicção de que eram da lavra daquele senhor, pois que ele os assinava.”

– E então? – perguntaram uns poucos, sem compreender ainda.

– “Pura ilusão!” – continuou solenemente o Rodrigues. – “Escreve-nos o mimoso e assaz conhecido poeta Sr. Alfredo Mendonça, dizendo que os versos lhe pertencem, e que o Sr. Teles os roubara (sic) do seu volume Lira Matutina.”

Foi uma estupefacção! O Rodrigues prosseguiu mais alto, fugindo aos comentários:

“Averiguamos, e disso alfim nos convencemos. Os leitores avaliarão a probidade do Sr. Teles, a quem mais de uma vez tínhamos fechado a nossa porta por incapaz. Hoje damos-lhe com ela na cara – por indigno.”

E o Rodrigues fechou o livro com estrondo, como os outros fechariam a porta na cara do Teles escrivão; tomou praça fora, o livro debaixo do braço, e foi-se para o estanco do Ernestinho, altivo, solene, – vingado!

Os da roda seguiram-no silenciosos, corridos de vergonha, desnorteados, porque além de sempre terem julgado o Teles muito superior ao Rodrigues – e o Rodrigues bem o sabia, olha ele!... – tinham dado uma sorte de mil demônios, agora é que eles viam! distribuindo no teatro, por ocasião da festa de Santa Bárbara, a Flor do Campo que eles tinham mandado imprimir avulso – para lisonjear o Teles, que tivera o trabalho de os ensaiar no Santo Antônio. Hem? quem diabo havia de dizer que aqueles papelinhos de cor, uns verdes, outros amarelos, chovendo sobre a plateia entre o segundo e o terceiro ato, e quase disputados a murro, num alvoroço de seiscentos diabos, encerravam uma insídia, – um logro à boa-fé, à incredulidade ingênua de “toda a comarca”!

E relembravam episódios, particularidades quase extintas: o Fernandinho vestido de menino de coro, batina vermelha e roquete de rendas, cobrindo-se de teias de aranha lá pelo forro do teatro, de gatinhas e com um “toco” de vela na mão, aos tropeções, só para ter o gosto de ser ele a despejar do óculo aquela papelada; o Melo da Administração, vestido de Frei Antônio, sandálias e grande chinó de calva redonda, feita de uma bexiga de porco, com o Teles em triunfo por entre os bastidores, seguido pela turbamulta dos companheiros, em hábitos de frade e fradetas de galuchos, dando vivas ao – Poeta! – ao grande Teles, “ensaiador da rapaziada!”

Que desastre! Afinal tinha-lhes saído um intrujão! E quase se regalavam da sorte que tinham dado, pelo prazer que sentiam de o ver agora humilhado, corrido, esbofeteado pelo ridículo. Bem feito!

O Antunes da Câmara, sobretudo, estava furioso. Fora ele o da lembrança de se mandar imprimir a versalhada. Escrevera para Coimbra ao Manuel Caetano, ao Manuel Caetano da Silva, Praça Velha nº 2, que mandava os impressos para a Câmara, e pedira-lhe aquilo como especial favor. O homem – pronto. Duzentos exemplares, quinze tostões. Quinze tostões que se tinha combinado dividir por todos, contas do Porto, mas que desembolsara ele só, afinal. Bem feito! ninguém o mandava ser burro. – Arre! cavalgadura!

E dava patadas no chão, cada vez mais furioso, apopléctico.

– Mas a bem dizer, tudo isso é nada! – continuou comovido o Antunes. – Ó senhores! e a figura que eu fiz... sim, a figura que eu fiz naquele intervalo do drama para a farsa?!...

Todos desataram a rir, tinha sido fresca... Ele sempre acontece cada uma! E relembravam – levantara-se o pano quando os ouvintes menos o esperavam. Os que tinham saído lá fora, às doceiras, voltavam apressadamente com os cartuchos na mão, ensacando os rebuçados. Ia um rebuliço pela plateia. Na “galeria dos camarotes” para onde só iam senhoras, gente fina, começavam a aparecer caras barbadas de sujeitos que iam saber – “que tal” – perguntar se ia uma pinguinha de licor, um docinho. Em cima, na galeria alta, criadas e raparigas do povo, debruçadas no parapeito, apontavam para o palco, de olhar atônito:

– Ele que dianho é? – perguntavam.

De baixo, da plateia, todos faziam – chut! – voltados lá para cima:

– Caluda, sua gentalha!

No palco estavam todos perfilados, trajando como na peça. O Freitas da Recebedoria com o seu fato de Marco Aurélio; o Paula de cardeal, báculo em punho e a cara metida numa estriga; o Fernandinho de menino de coro, todo lépido; a Ana Pisca muito acanhada no seu fatinho de Olívia; a Margarida que tinha feito de anjo no quadro final da Glória, em que ela subira num cesto vindimo à “região sidérea dos astros”; o pai de Santo Antônio, em ceroulas e de saia branca pelo pescoço, lívido como saíra do túmulo; aquela canalha da tropa, – todos enfim!

Nisto, entra pelo fundo o Teles todo de preto, no meio do Melo vestido de Santo Antônio e do Proença telegrafista que fazia de Frei Inácio. Avançaram. Embaixo, o Felisberto mandou tocar o Hino da Carta à meia dúzia de músicos que não entravam na peça. O hino rompeu com grande estampido de pratos, numa cadência fúnebre. No palco, tudo imóvel.

Ninguém sabia o que era aquilo, não estava no cartaz. Esquecimento do Fernandinho, talvez... pensavam.

Mas ao acabar o hino, o Antunes da Câmara, com farda de centurião, durindana e botas de água, irrompe furioso do buraco do ponto e prega um discurso na bochecha extática do Teles:

“Não era ele o mais competente, decerto, o mais... etc. Mas tinham-no encarregado, obedecia... e tal. Só sentia não ter frases, oratória, porque enfim estava falando a um poeta... – colaborador do Almanaque de Lembranças para Portugal e Brasil – acrescentou voltado para o público, esclarecendo. Enfim, finalmente... vinha para aquilo: dar-lhe um abraço em nome de todos...” – e abraçou-o comovido, enquanto os espectadores berravam apoiados, dando palmas

– “...e para isto” – acrescentou fazendo com a mão que se calassem, que se calassem depressa.

Houve um sussurro de aplauso, dos camarotes crianças gritavam – “ó Emilinha!” – Era com efeito a Emilinha, a filha do Alves dos Pesos e Medidas, que saía também do buraco do ponto, vestida de anjo, tules verdes e muita lentejoula a brilhar.

Ficou-se a olhar a plateia, imóvel, muito fria, ensaiada, enquanto o Felisberto preludiava na flauta. Em certa altura, num requebro doce da “melodia”, ele fez-lhe com a cabeça “que entrasse”, e a Emilinha rompeu nuns guinchos, cantando a Flor do Campo, com música de Muchagateira, original do Peres do Correio.

O Teles sorria, entre glorioso e modesto, falando a Santo Antônio e a Frei Inácio: – “Era de mais, era de mais, ele não merecia...” – “Ora essa!” pareciam dizer-lhe os outros – “seríamos ingratos se...”

A “cantoria” acabou, o teatro parecia desabar com palmas, tudo berrava, um ou outro cão latia. Senão quando, os do palco desataram a rir, cosendo-se uns aos outros, fingindo um grande medo de que as bambolinas do teto desabassem.

Todos olhavam, curiosos. E naquela expectação viram de repente descer do alto, sobre o palco, agarrado a uma corda, o Freixedas da Mercearia vestido de Lusbel, rubro e com chavelhos. Cuidaram de estoirar a rir. Da boca muito inchada saíam-lhe faúlhas, do algodão a arder que lá trazia dentro. Fazia caretas horrendas, arremedando Satanás nos ímpetos de cólera. O pano começou a descer, oblíquo, esfarrapado de uma banda. O Freixedas, suspenso, atirou fora o algodão e gritou, furibundo:

– Alto! suas bestas! Inda não!

Voltou-se de costas para o público, e um letreiro que trazia de ombro a ombro dizia em caracteres amarelos – C’est fini! – O pano desceu então, estabalhoadamente. Os espectadores olharam uns para os outros, não tinham percebido... – Foi nesse momento que o Sr. Antoninho, que tinha estado em Braga, traduziu de um camarote, em voz alta:

– É findo!

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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