6/12/2019

Última dádiva (Conto), de Trindade Coelho



Última dádiva

(A Júlio Monteiro Aillaud)

Distante do rio apenas um tiro de bala ficava o horto do José Cosme, belo horto ainda que pequeno, todo mimoso de frutas e hortaliças, fechado entre velhas paredes musgosas, atufadas em silvedo, comunicando com a estrada por um pequeno portelo mal seguro. E eis aí quanto ao pobre homem restava dos seus antigos haveres: – o horto, a um canto a nora, e perto da nora, sob a umbela tufada e virente da antiga magnólia gigantesca, a mísera casinhola de alpendre, apenas com uma porta e duas janelitas laterais, mas toda pitoresca das heras que a revestiam, que lhe pendiam dos beirais enlaçadas com as trepadeiras.

De modo que na Primavera, quando as parasitas abriam serenamente os seus melindrosos cálices sobre esse fundo de verdura reluzente, e a magnólia toda se toucava de flores fazendo dossel à vivenda, aquele pequeno canto de horto, com a sua nora e com a sua água espelhante e límpida, tomava a feição ingênua de uma delicadíssima tela de paisagista, aguarela deliciosa, alegre e idílica, cheia de encantos na poesia rústica da sua simplicidade.

No Verão, às horas de calor, quando o sol caía a pino sobre a larga paisagem adormecida e turva, e as árvores da estrada não davam sombra que aliviasse, aquela tranquilidade com que o José Cosme ressonava sob o alpendre, braços nus e peito nu, o chapeirão de palha grossa resguardando-lhe a cara, fazia inveja aos que por ali passavam, cansados e cheios de poeira, flagelados por aquela estiagem inclemente.

– Ó tio José! – gritavam-lhe do caminho. – Tio José! Ó regalado!

Mas os que entendiam de lavoura, proprietários e maiorais, esses deixavam dormir o José Cosme e ficavam-se a admirar o horto.

Ora na verdade!... Belo horto, sim senhores! Por aquelas redondezas não havia outro que se lhe comparasse, tão esmerada era a sua cultura – tão esmerada e tão completa, pois que demais a mais nem palmo de terra ficara inculto. Nas leiras, dispostas com simetria agradável, verdejavam cheios de viço, frescos e medrados, legumes de todas as castas – desde a alface muito tenra, de folhas verde-claras, toda acaçapada no chão úmido das regas, até às trepadeiras das vagens que enroscadas ascendiam pela basta “rodriga” de castanho aparada com todo o esmero, formando maciços de verdura sombria que os casulos esguios dos feijões crivavam de alto a baixo. Árvores, apenas as precisas para aformosearem o horto, sem prejudicarem com a sombra a vegetação franca das hortaliças. Mas todas as que havia eram mimosas de frutas nas estações competentes – cerejas, peras, maçãs, pêssegos mesmo.

Poucas flores: uma coisa que todos notavam com estranheza. Mas desde que lhe morrera a mulher mais a filha, o José Cosme deixara-se de as cultivar, e nos canteiros ainda devolutos tinha semeado repolhos, que por sinal vinham enfezados. Só teve o cuidado de não deixar morrer os goivos. Uma vez por ano, em fins de maio, colhia-os todos de uma vez, e ia levá-los em braçado à sepultura rasa das suas defuntas.

Exatamente nessa tarde tinha ele ido ao cemitério fazer a fúnebre visita. Quando se recolheu era já noite. Mal acabou de cear levantou-se bruscamente da mesa e foi-se para o horto, com uma grande vontade de chorar. Estava nas suas horas tristes, nessas horas em que as energias todas da sua alma e até as do seu corpo vergavam sob o flagelo de uma dor violenta, exacerbada agora pela saudade dos que lhe tinham morrido... E para maior desgraça fugira-lhe o bem das lágrimas. De modo que, sem esse lenitivo, aquelas medonhas tempestades custavam o dobro a suportar. Abstrato, numa espécie de entorpecimento idiota, percorria sem descanso todas as ruas do horto, cabisbaixo, acabrunhado, autômato. Se por vezes parava, recolhendo-se numa quietação atenta, logo um gesto brusco desmanchava a sua imobilidade de estátua, soltava um fundo gemido, e punha-se de novo a andar.

– Vens ou não vens?! – perguntava ele, evocando com dorido esforço a imagem da mulher ou da filha. Não vinha; e quando aparecia era como se fosse um relâmpago: apagava-se logo.

Nesta luta com a sua dor as horas iam passando longas. Era já tarde, talvez a uma da noite. Luz, apenas a das estrelas, pois que o luar nascia tarde. Pesava sobre toda a paisagem o largo silêncio da noite, apenas cortado, ao longe, pela melopeia sonolenta do rio.

Um rapaz que ia na estrada olhou por acaso para o horto do José Cosme e viu um vulto perpassar de repente e de repente sumir-se num recanto, onde a sombra era mais densa.

– Temos história... – resmungou consigo o rapaz.

E, rente a uma árvore, quedou-se alapardado, à espreita. Não desconfiou que fosse o José Cosme: aquilo era mariola de larápio que vinha por ali fazer das suas. Agachou-se então, e pôs-se a procurar uma pedra. Apanhou duas, para o caso de não acertar a primeira.

– Cão do diabo! – exclamou baixo o rapaz, pondo-se em posição de jogar a pedra. – Espera que eu te arranjo... – E já ia arremessá-la na direção do canto, quando o vulto saiu da sombra e tomou por um carreiro, direito ao lugar onde o rapaz estava.

– Melhor! Mais a jeito ficas... debruçando-se um pouco na parede, pôs-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os ombros, alvejavam-lhe as mangas da camisa. A meio do carreiro, mesmo defronte dele, parou. Foi então que o rapaz se lembrou do José Cosme. O vulto parecia, com efeito, ser o dele; lembrava-se agora de ter ouvido que o pobre homem, quando o ralavam saudades da mulher e da filha, levava noites em claro, a percorrer como doido aqueles carreiros por onde elas tinham andado.

Quando ouviu soluçar, acabou então de se convencer. Insensivelmente, deixou cair as pedras e perguntou:

– Tio José! Ó tio José! Sou eu, o Luís... Vossemecê que tem?

O lavrador não respondeu, parece que nem tinha ouvido. O rapaz insistiu:

– Dói-lhe alguma coisa, ó tio José?!

– Não dói, não! Sabes que mais? peço-te pelas alminhas que me deixes. Bem me bondam as minhas aflições. Vai com Deus, vai!

O rapaz ficou surpreendido, triste do tom de súplica dorida que o José Cosme dera àquelas palavras, e retirou-se silencioso, quase aterrado agora com a ideia de que poderia ter matado o pobre homem, caso jogasse a pedrada.

No entanto a noite ia avançando, grave, soturna, sem outro ruído que não fosse o das águas do rio. E o José Cosme, sem despegar do seu fadário, ia e vinha pelas ruas do horto, lembrando um autômato ou um sonâmbulo. Às vezes abeirava-se da porta de casa e punha-se a escutar. Como não sentia nada, voltava de novo ao seu passeio. Nisto, de uma vez que passava em frente do cancelo, pareceu-lhe ouvir passos.

– Ó Tomás!...

– Senhor José! – respondeu o que entrava, numa voz que era mesmo voz de barqueiro.

O Cosme sentiu então uma grande vontade de chorar, mas remordendo os beiços dominou-a. Como o barqueiro estranhasse encontrá-lo a pé, ele então redarguiu-lhe que nem se tinha deitado.

– Como tinha de madrugar...

– Pois são horas de largar, senhor José; isto vai para as duas. Não tarda que comece a amanhecer. – E como estavam à porta de casa: – Será bom acordar já o pequeno: veste, não veste, é tempo que se vai. – Iam à vela se o tempo não mudasse. Era bom aviar, por isso.

Mas à ideia de ter de acordar o pequeno, o José Cosme deixou-se cair sobre o banco que estava debaixo do alpendre, e desatou a chorar violentamente.

O barqueiro tentou animá-lo, constrangido:

– Então, senhor José?... O chorar é lá para as mulheres! Olhem agora que homem! – E tentava levantá-lo, pô-lo de pé. – Limpe lá essas lágrimas, que vai afligir o pequeno! Ou quer que ele vá a chorar todo o caminho?

O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente, e pôs-se a enxugar os olhos com a manga da camisa.

– Pois então levante-se lá. – E segurou-o com força por baixo dos braços. – Assim! Lá porque o pequeno vai para o Brasil não fique vossemecê a pensar que o não torna a ver!

Mas era isso mesmo o que ele pensava...

– Porque não sei que me adivinha que não torno a ver o pequeno! – concluiu a chorar o José Cosme.

– Cismas! lembranças que vêm à gente quando está aflita. Mas há de vê-lo que o não há de conhecer, digo-lho eu! Mais ano menos ano, aparece-lhe aí rico...

“Rico! bem lhe importava a ele que o pequeno viesse rico! O que desejava era que voltasse, e que ele ainda fosse vivo só para o abraçar.”

“Pois sim, mas era preciso aviar, que tivesse paciência: o José Cosme que se animasse para animar o pequeno” – recomendava o barqueiro.

– Sim... sim... – tartamudeava o Cosme. – Vamos lá com Deus! Com’assim...

E num profundo ai dolorosíssimo, foi-se direito à porta para chamar o pequeno. “Não havia remédio, tinha nascido em má hora, havia de ser desgraçado até que o levassem para a cova...” Sobre a estreita e humilde cama o filho dormia profundamente. Que dor, ter de o acordar! Vieram-lhe tentações de mandar embora o Tomás e deixar dormir a criança. Quem sabe se a sua sorte futura, se toda a sua vida, valeria a boa tranquilidade daquele sono! Não tinha coragem para o acordar, fazê-lo vestir: era quase um pecado quebrar aquele último sono dormido sob o teto paterno... “O último sono! o último sono!”

– Ainda se o deixássemos acordar... – aventurou-se a dizer o triste.

Mas o Tomás, que estava com pressa, lembrou secamente que eram horas de por o barco a andar.

O José Cosme acendeu então a candeia, receoso de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho pôs-se a escutar-lhe a respiração. Dormia... Mas brandamente pousou-lhe a mão sobre a cabeça e chamou baixinho, quase ao ouvido, beijando-o, sobressaltado como se fosse praticar um grande crime:

– Filho, olha que são horas, meu filho...

Quando o pequeno se sentou na cama, estremunhado, ainda sob o estonteamento do sono, cerrando os olhos àquela hostilidade viva da luz, o pai agarrou-se a ele num abraço, e ambos romperam a chorar.

– Adeus, pai!

– Adeus, filho!

Confrangido, o Tomás, que se deixara ficar à porta, avançou para desatar aquele abraço.

– Olhe que é tarde, senhor José! Perdoe, mas olhe que é tarde!

O pai vestiu o pequeno, beijou-o ainda muito, e saíram. Debaixo do alpendre, o Joaquinzito ficou-se um instante a olhar o teto.

– A andorinha, filho?! – perguntou o José Cosme. – Deixa que eu hei de olhar por ela, mais pelos filhos quando os tiver! Vai sossegado!

Mas o pequeno quis vê-la, pediu ao pai que o erguesse, era só um instante. Lá estava ela, coitadinha! sentiu-a estremecer quando lhe tocou com as pontas dos dedos...

– Adeus! – disse-lhe o pequeno afagando-a.

A esta palavra, o pai retraiu os braços e tomando o filho ao colo seguiu. Atrás, o barqueiro levava ao ombro a mísera arca de pinho: toda a bagagem do Joaquim.

Ao transpor o cancelo o José Cosme deteve-se um pouco e perguntou soluçando:

– Quando voltarás ao horto, meu filho?!

O pequeno não respondeu. Chorava constantemente de ver que o separavam de tudo o que adorava – a andorinha, depois da andorinha o horto, as árvores, a velha nora, o cancelo, tudo enfim!

Atravessaram então a estrada e tomaram para a banda do rio. Quando o sentiram murmurar, apertaram mais o braço, deram-se um longo beijo, úmido das lágrimas que ambos derramavam. Ah, como o triste pai desejava que o rio ficasse mais longe, muito longe, que fugisse diante deles, de modo que nunca o alcançassem! Mas eis que a areia principiava, divisava-se já perto o vulto escuro do barco onde os da tripulação falavam alto.

– Pronto? – perguntou ainda de longe o Tomás.

Do barco responderam que era só marchar, de mais a mais ia romper a lua.

Chegaram enfim. Num leve silêncio de acaso ouviam-se os soluços dos dois, parece que prolongados infinitamente, na sua expressão de angústia, pelo deslizar monótono das águas... Aquilo confrangia o barqueiro, ele também era pai... Por isso, mal chegaram à beira do rio, apressou-se a dizer para o pequeno:

– Ora bem, Joaquinzinho, beija a mão a teu pai e diz-lhe adeus.

Ouviu-se um chorar lancinante, a voz do pobre José Cosme a querer animar o filho:

– Então, meu filho?... Deus te abençoe, meu amor... Nossa Senhora te veja ir. – E fez-lhe prometer que havia de rezar sempre a Nossa Senhora: ele também lhe rezaria, pois era ela quem dava saúde, quem fazia a gente feliz...

– Não te esqueças dela, mais da alminha de tua mãe e de tua irmã!

Mas o pequeno chorava cada vez mais, agarrado ao pescoço do pai, beijando-o sofregamente, acarinhando-o, sem forças para dizer palavra. Então o José Cosme, perdida a esperança de animar o filho, só exclamava desvairado:

– Valha-me Deus! O Senhor me valha pela sua infinita misericórdia!

E o Joaquim, sempre agarrado a ele, beijava-o na cara, na cabeça, nas mãos. Até que o Tomás teve de intervir: era preciso despegar dali por uma vez.

– Com’assim, senhor José, isto tem de ser... – E segurando o pequeno com força puxou-o para ele. Quando já o tinha nos braços, ouviu-se o José Cosme, que suplicava de mãos postas:

– Só um instante, só um quase nadinha, Tomás! – E o pobre pai caía de joelhos na areia, numa atitude de súplica.

Mas nesse momento o barqueiro saltou de um pulo para o barco, levando ao colo a criança.

– Rema! – intimou em voz rápida.

O barco recuou então subitamente, ao mesmo tempo que os remos fizeram – plhau! – sobre a água.

Então o choro do José Cosme tornou-se de uma violência desesperada, ao ouvir a voz lacrimosa do pequeno dizendo-lhe adeus – lá do barco.

– Adeus, Joaquim, adeus!

– Adeus, pai!

– Adeus!

Mas, repentinamente, com voz resoluta e firme, o José Cosme gritou na direção do barco:

– Tomás! ó Tomás! Por alma de teu pai faz lá alto um instante.

Acabou-se! custara-lhe tomar aquela resolução, mas já agora era melhor ficar sozinho de todo. E segurando nos dentes um pequeno objeto, arremessou a jaqueta ao areal e de um lance deitou-se a nado. O Tomás, que ouvira o mergulho do corpo, fez recuar o barco; mas o José Cosme, velho nadador destemido, com meia dúzia de braçadas ganhou-lhe de pronto a quilha. O filho tinha-se debruçado, na ânsia de esperar o pai, de o ver ainda outra vez. Num movimento rápido, o José Cosme entregou ao pequeno o que levava entre os dentes, dizendo-lhe a chorar:

– É a medalha, Joaquim; é a medalhinha de tua mãe, meu filho! Reza-lhe, sim?!

E chorando cada vez mais, o pobre José Cosme pediu ao barqueiro que lhe chegasse o pequeno para o último beijo...

Dado o último beijo, o barco pôs-se de novo em marcha. Vinha a romper a lua, enorme, torva, afogueada, como se viesse de algum banho de sangue em região misteriosa de lágrimas... E no silêncio agoureiro da noite, apenas cortado pelo bater monótono dos remos e pelo bracejar desalentado do triste nadador, à voz do filho que chamava respondia cada vez de mais longe – longe como se fora do Infinito! – a voz lacrimosa do pai – com o seu fúnebre adeus! que ele bem sabia ser eterno...

***

...Só quando o eco do último adeus do Joaquim, perdido na distância, diluído no luar que surgia, desfeito no lugente murmúrio das águas, fundido no derradeiro suspiro da brisa matinal, deixou de chegar à praia, é que o pobre abandonou o areal e se foi, sempre a chorar, tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento agudíssimo do polo, na direção do horto silencioso...


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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