7/14/2019

Cristo (Conto), de Sylvio Floreal


Cristo
Luís era filho de pais anônimos, filho da multidão, filho de ninguém!
Marieta, sua mãe, concebera-o por descuido, numa noite de aventura e galanteria, quando tinha aproximadamente uns 20 anos.
Na idade em que todas as mocinhas flertam e namoram inocentemente, ela, sozinha na vida, já tinha uma noção acabada da ferocidade dos homens, com todo o complemento das suas animalidades, manifestadas sob todos os vícios: e conhecia também o cinismo dos proxinetas e das inculcadeiras das casas de tolerância.
Luís entrou na vida a golpes de fórceps, graças à perícia de um ginecologista.
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Impossibilitada por diversos motivos, de seguir essa mesma vida que seguiu Maria Madalena, antes de conhecer o Rabi, concentrou toda a sua atenção sobre o seu filho e procurou trabalho. Desnorteada na rotunda da vida e assediada por todas as dificuldades, ia à busca de ocupações, mas o seu aspecto de ex-rameira pouco a recomendava, embora ela apelasse por todos os disfarces possíveis. Através da sua modéstia, analisando-a bem, gritava sempre a mulher que desdenhara a boa conduta: faltava-lhe o hábito da honestidade.

Mas, à custa de bater em todas as portas, que se lhe fechavam, como a querer condená-la à fome, abriu-se-lhe um dia a duma fábrica de tecidos, onde havia trabalhado quando menina.

Alugou um pequeno quarto no Belenzinho e durante o dia, o seu filho ficava em casa, entregue aos cuidados de uma velha napolitana, doente e hemiplégica, que fora penteadeira, quando forte e menos usada pelo tempo e manuseada pelos homens, de Marieta e outras rascoas, desabaladas que escondiam o nome de família sob o manto de Zazás, Fifis e Frufus!
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Luís crescia à solta, por entre uma aluvião de outros guris peraltas e safadinhos. Era ágil, arguto, vivo, como são todas essas crianças que vivem em liberdade, entregues aos seus próprios instintos, nos meios populosos em que a ladinice e a malícia se respiram no ar...
Ausente do carinho materno, desabrochava robusto como um broto germinado no flanco de uma árvore pletórica de seiva. Confirmava-se nele a sentença popular: filho de ninguém traz os germens de todas as qualidades!
Bem perto de onde morava, havia uma bela casa, de aspecto feliz, residência de uma família abastada, possuidora de muitos filhos.
Todos os dias, ali pelas seis horas da tarde, o pai entrava, e ao chegar ao portão do jardim, era recebido pelos filhos que lhe saltavam ao redor, alegres e satisfeitos, chamando-o ternamente de papai: e Luís assistia a este espetáculo de ternura e não sabia explicar porque é que todos os meninos tinham pai e ele não tinha! Começava a surgir no fundo de sua infantilidade, o primeiro vislumbre da razão. E ficava triste, com vontade de chorar...
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A mãe, sempre mourejando na fábrica, parecia ter tomado a vida a sério, e trabalhava sem tréguas, como se quisesse refazer e limpar, com um presente de sacrifícios e extenuações, todo um passado de ignomínias e ociosidades. Assim que pilhava um tempinho fora da fábrica, costurava vestidinhos do seu filho e dos filhos de outras mulheres suas vizinhas e companheiras de serviço.
Aproximavam-se as festas do Natal, e ela toda entregue à confecção de umas calcinhas para o seu pequeno, feitas dum vestido seu, que conservava no fundo da mala, de ótima casimira, vestígios ainda da sua loucura.
Costurava e quando a roupa que cosia lhe evocava o passado, se levantava lentamente e ia beijar a cabeça de seu filho adormecido. Uma noite, faltando poucos dias para o Natal, o pequeno acorda sobressaltado e chorando, chama pela mãe e depois pelo pai instintivamente. A mãe aflita não sabia como consolar o filho. E acaricia-o ternamente: — papai? sim, ele vem... Dorme, meu filho, ele está viajando. Na, noite de Natal virá com sapatinho branco cheio de doces. Dorme, meu coração! Dorme!...
Luís adormece novamente. Ela, para espairecer um pouco, abre a janela que dava para um quintalório cheio de latas e roupas estendidas no coradouro. Olhava para todos os lados; tudo em silêncio.
Levantou a cabeça para o céu e com os olhos umedecidos contemplava a lua solitária que espalhava um brilho monótono e suave, como se fosse o olho de "alguém" que estivesse espiando lá do alto esta dolorosa cena...
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No dia seguinte, o menino, quando brincava com os outros, ouvia de espaço a espaço, contar que na noite de Natal nascia o Menino-Deus, e que por isso iam com papai e mamãe à missa do galo ver o presepe.
Luís, filho espúrio, era a personificação desse fenômeno inexplicável que põe os fisiologistas que nutrem veleidades de nobreza e desmentem que há no fundo genésico da plebe qualidades geniais, em constante alarme.
Produto dessa força que plasma, no seio do anonimato, os tipos excepcionais e de eleição, o pequeno tinha todos os sentidos, para compreender a vida, mais abertos e evoluídos que os outros de sua idade.
Além de não ter pai, arrastava a fatalidade da precocidade! E a ideia de ver o seu pai crescia em seu cérebro tenro com toda a força de sua inocência, agradada tenazmente, pela potência maldita de ser um menino precoce!
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25 de dezembro. Céu loucamente estrelado. Meia-noite... Natal! Os sinos batem nas torres de todas as igrejas. Belenzinho em peso se movimenta para ir assistir à missa do galo. Há ruídos de malas que se abrem para tirar frescas camisas e vestidos engomados de mulher. Balbúrdia em todas as esquinas, onde magotes de espadaúdos rapagões, filhos de italianos quase todos, estacionam para ver passar as Rosinhas, as Conchetas e as Pimpinellas que vão à igreja. Flerte não há! A plebe não perde tempo com coisas inocentes e inúteis.
Grupos dispersos namoram muito agarradinhos, nessa distância fatal em que os lábios dizem palavras que são projéteis atirados ao coração.
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O babaréu cresce na proporção direta em que as ruas vão enchendo de povo. Luís, que a essa hora dormia, acorda, e como a sua mãe lhe havia prometido que o seu pai viria na noite de Natal, interroga-a: — Mamãe, não estamos na noite de Natal?
— Sim, meu filho, daqui a pouco nasce o Menino Jesus!
— E papai, por que é que não veio?
— Papai ainda não chegou da viagem. Sossega, qualquer dia ele aparece.
— É muito longe lá onde foi papai?
Enquanto Luís passava por um curto silêncio a mãe procurou um pequeno retrato que tinha guardado, encaixilhado numa moldura ordinária, estrelada e pintalgada de manchas cinzentas. E levando-o aos lábios da criança, diz fervorosamente: — beija-o, meu filho, é o retrato de seu pai!
Luís afaga-o ternamente contra o peito e apoia a cabeça contra o travesseiro, balbuciando: — papai... papai... papai... e adormece religiosamente com o retrato de Cristo sobre o peito.
A mãe soluça de joelhos aos pés da cama, murmurando:
— Cristo! pai de todas as crianças que não têm pai... sê na noite de Natal o pai de meu filho...

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Sylvio Floreal (1918-1928)
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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