Há uma velha lenda árabe em que
se exprime simbolicamente a afirmativa de que a felicidade jamais existe:
Um santo faquir, a quem os
representantes de todas as classes vão consultar sobre a forma de remediar os
seus males, ouve-os a todos e diz-lhes por fim: — Só poderá ser feliz aquele
que tiver perdido o desejo da felicidade.
E logo todos se entreolharam tristes,
reconhecendo ser esse desejo irrescindível na alma humana.
***
A constante ambição dos homens é
uma lei implacável, que algumas religiões melancólicas tentaram suavizar, pela pregação
das humildades santas e pela promessa das recompensas eternas. Mas, embora suavizada,
essa lei jamais será destruída: ela é a força inicial de todo o progresso
humano, e a sua origem deve talvez encontrar-se na mais remota origem do
Universo.
Segundo Laplace e Kant, o nosso
sistema planetário deveria ter sido uma ígnea e vasta nebulosa, que um dia, por
misteriosa efervescência cósmica, rebentou no espaço indefinido, como uma
granada que estoura.
Pedaços rolaram pelo vácuo,
levados no impulso circulatório que rege os mundos. E cada um desses fragmentos
se transformou num planeta, isto é, num corpo independente, regendo-se por leis
especiais e vivendo numa atmosfera própria, embora na grande confederação planetária
todos esses corpos obedeçam à suprema lei da atração universal.
Cada planeta ficou com as suas exigências
e as suas vantagens especiais, e assim Saturno, por exemplo, que é grande, teve
oito satélites na partilha das regalias, e a Terra, que é pequena, ficou com um
satélite apenas, a Lua, que vem com a sua luz reflexa substituir a luz do sol.
Parece, pois, que desde a origem
dos mundos, desde o ponto em que ao curto espírito humano é licito formular uma
hipótese sobre a gênese de tudo isto, parece que todas as coisas tendem a
transformar-se, a multiplicar-se, numa perene e incansável ambição.
***
Saída da grande nebulosa, como
uma brasa chamejante, formou-se a Terra, e dela brotaram depois, por seu turno,
os primeiros espécimes da vida vegetal. Apareceu a alga marinha, protoplasma de
onde irradiou mais tarde, como de uma semente contendo milhões de germens, toda
a vasta e variadíssima legião das plantas, até surgir de entre elas o exemplar
de transição, o coral, o espongiário e outros em que começa a manifestar-se a
vida animal.
De então para cá, desde o reptil
às aves, desde o sagui ao antropoide, desde o selvagem ao homem civilizado,
tudo tem sido uma série indefinida de transformações a caminho do
aperfeiçoamento, no intuito de levar o mais alto ser da escala zoológica ao
ponto de mergulhar a vista pelo interminável firmamento, com a esperança de
encontrar no céu misterioso, uma vez esgotados todos os recursos da terra,
alguma coisa consoladora para a dolorosa aridez da vida material.
***
A meio deste caminho de ambições
e insofridos desejos, apareceu outrora na Índia, seis séculos antes da era cristã,
um príncipe, filho do rei Sidarta, chamado Chakia-mouni, que para apostolizar
tomou o nome de Buda, palavra que significava – aquele que, desprendido de
todos os desejos e de todas as influências da paixão e do mundo material,
obteve a sabedoria e o conhecimento completo e absoluto.
O budismo era, como se vê, a
seita da renuncia às tentações da carne e às ambições do espírito, mas
firmava-se numa base falsa.
Contra essa pretensão da completa
sabedoria, admitindo como irremediável o sofrimento da vida, e como termo
exclusivo e único da humanidade o rio Nirvana, rio de eterno silencio e de
eterno esquecimento, erguia-se a protestar a indomável força da aspiração
humana, e por isso jamais a seita búdica conseguiu impor-se, como consoladora,
ao espírito irrequieto e indomável dos homens.
Uma religião sem deuses, sem
cosmogonia, sem culto, tendo como único sacramento a confirmação da dor iniludível
e como único alvo a aniquilação absoluta da nossa alma, pode ser o protesto irônico
e sombrio de um espírito desesperançado, mas jamais conseguirá enraizar no
coração da humanidade.
***
Desde que o homem compreendeu a
possibilidade ou teve a intuição da melhoria na sua condição misérrima, a tendência
para a felicidade surgiu implacável dentro do seu ser, como um impulso que raciocínio
algum conseguirá travar. Podem conspirar contra esse impulso todas as
filosofias de negação, todas as teorias tendentes a demonstrar a inutilidade de
todos os esforços, ante a sombria voragem do eterno esquecimento, que nem por
isso o homem deixará de erguer para o céu, para o firmamento misterioso, os
olhos tristes, na hora das grandes amarguras; nem por isso deixará de
constantemente procurar alívio aos irremediáveis males do seu destino; nem por
isso deixará de esperar que o sol de cada dia lhe traga maiores consolações.
***
Houve há três séculos, na Escócia,
um teólogo chamado Thomas Brunet, que pretendeu ter encontrado a razão da nossa
mortalidade e das nossas angustias: Derivam da hora em que o nosso primeiro pai
mordeu o fruto proibido, fruto venenoso e implacável, que continha os
princípios da corrupção do sangue, do vício e da miséria espiritual, do
irritamento das paixões e da destruição da nossa vida.
Esta explicação teológica é mais
uma das muitas lucubrações com que a humanidade tem pretendido justificar, para
sossego da sua consciência inquieta, o gérmen do mal que a pouco e pouco se
ramifica em todas as criaturas.
***
Para purificar a alma, tornando-a
digna do perdão celeste e apta a entrar na eterna bem-aventurança, a Igreja criou
o batismo, destruindo pela lavagem com água lustral a nódoa do original pecado;
mas não soube preservar a existência das torturas que este mundo gera, e até,
reconhecendo a irrevogável fonte das dores humanas, quis dela extrair o elixir
mais forte para sustentáculo da esperança na recompensa do céu. E desta forma o
martírio foi considerado como um bem, e as maiores agonias foram lançadas à
conta da benevolência de Deus.
Mas ainda assim, mesmo na alma
dos ascetas mais fervorosos, que procuravam no cilício o castigo da carne e a
demonstração do seu desprezo pela miséria da terra, ainda assim, como uma
serpente diabólica, a dúvida surgia às vezes a empeçonhar o bálsamo da fé.
Já depois da conversão, São Paulo
declarou que conhecia pouco e que só via obscuramente...
***
A propósito de Flaubert e do seu niilismo literário, diz Paulo Bourget:
"Um filosofo raciocina
dentro de nós, demonstrando a inanidade da esperança e do esforço, mas o nosso
coração bate e projeta nas nossas artérias um sangue cheio de átomos enérgicos,
transmitido pelos antepassados..."
O coração bate, impetuoso e
febril, contra o maior quebrantamento do espírito, renovando o alento daqueles
que, por terem provado o amargo fruto da verdade científica, se sintam a
resvalar para o desânimo aniquilador.
Há sempre no fundo do nosso ser, através
de todas as desconsoladoras experiências, e sobrevivendo a todas as calamidades
da nossa alma, uma força instintiva de aspiração, insaciável e constante, para
embargar a qual não bastam nem os grandes infortúnios nem as grandes regalias. É
essa força a que se opõe implacavelmente à perfeita felicidade dos homens.
Mendigo ou monarca, mártir ou algoz, ninguém jamais se contentou com a sua
sorte.
A felicidade perfeita seria
aquela que fizesse emudecer na nossa alma a voz de todos os desejos; seria
aquela que refrigerasse em nós o ardor de todas as paixões.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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