7/04/2019

A Felicidade (Reflexão), de Alberto Bramão



A Felicidade

Há uma velha lenda árabe em que se exprime simbolicamente a afirmativa de que a felicidade jamais existe:

Um santo faquir, a quem os representantes de todas as classes vão consultar sobre a forma de remediar os seus males, ouve-os a todos e diz-lhes por fim: — Só poderá ser feliz aquele que tiver perdido o desejo da felicidade.

E logo todos se entreolharam tristes, reconhecendo ser esse desejo irrescindível na alma humana.

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A constante ambição dos homens é uma lei implacável, que algumas religiões melancólicas tentaram suavizar, pela pregação das humildades santas e pela promessa das recompensas eternas. Mas, embora suavizada, essa lei jamais será destruída: ela é a força inicial de todo o progresso humano, e a sua origem deve talvez encontrar-se na mais remota origem do Universo.

Segundo Laplace e Kant, o nosso sistema planetário deveria ter sido uma ígnea e vasta nebulosa, que um dia, por misteriosa efervescência cósmica, rebentou no espaço indefinido, como uma granada que estoura.

Pedaços rolaram pelo vácuo, levados no impulso circulatório que rege os mundos. E cada um desses fragmentos se transformou num planeta, isto é, num corpo independente, regendo-se por leis especiais e vivendo numa atmosfera própria, embora na grande confederação planetária todos esses corpos obedeçam à suprema lei da atração universal.

Cada planeta ficou com as suas exigências e as suas vantagens especiais, e assim Saturno, por exemplo, que é grande, teve oito satélites na partilha das regalias, e a Terra, que é pequena, ficou com um satélite apenas, a Lua, que vem com a sua luz reflexa substituir a luz do sol.

Parece, pois, que desde a origem dos mundos, desde o ponto em que ao curto espírito humano é licito formular uma hipótese sobre a gênese de tudo isto, parece que todas as coisas tendem a transformar-se, a multiplicar-se, numa perene e incansável ambição.

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Saída da grande nebulosa, como uma brasa chamejante, formou-se a Terra, e dela brotaram depois, por seu turno, os primeiros espécimes da vida vegetal. Apareceu a alga marinha, protoplasma de onde irradiou mais tarde, como de uma semente contendo milhões de germens, toda a vasta e variadíssima legião das plantas, até surgir de entre elas o exemplar de transição, o coral, o espongiário e outros em que começa a manifestar-se a vida animal.

De então para cá, desde o reptil às aves, desde o sagui ao antropoide, desde o selvagem ao homem civilizado, tudo tem sido uma série indefinida de transformações a caminho do aperfeiçoamento, no intuito de levar o mais alto ser da escala zoológica ao ponto de mergulhar a vista pelo interminável firmamento, com a esperança de encontrar no céu misterioso, uma vez esgotados todos os recursos da terra, alguma coisa consoladora para a dolorosa aridez da vida material.

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A meio deste caminho de ambições e insofridos desejos, apareceu outrora na Índia, seis séculos antes da era cristã, um príncipe, filho do rei Sidarta, chamado Chakia-mouni, que para apostolizar tomou o nome de Buda, palavra que significava – aquele que, desprendido de todos os desejos e de todas as influências da paixão e do mundo material, obteve a sabedoria e o conhecimento completo e absoluto.

O budismo era, como se vê, a seita da renuncia às tentações da carne e às ambições do espírito, mas firmava-se numa base falsa.

Contra essa pretensão da completa sabedoria, admitindo como irremediável o sofrimento da vida, e como termo exclusivo e único da humanidade o rio Nirvana, rio de eterno silencio e de eterno esquecimento, erguia-se a protestar a indomável força da aspiração humana, e por isso jamais a seita búdica conseguiu impor-se, como consoladora, ao espírito irrequieto e indomável dos homens.

Uma religião sem deuses, sem cosmogonia, sem culto, tendo como único sacramento a confirmação da dor iniludível e como único alvo a aniquilação absoluta da nossa alma, pode ser o protesto irônico e sombrio de um espírito desesperançado, mas jamais conseguirá enraizar no coração da humanidade.

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Desde que o homem compreendeu a possibilidade ou teve a intuição da melhoria na sua condição misérrima, a tendência para a felicidade surgiu implacável dentro do seu ser, como um impulso que raciocínio algum conseguirá travar. Podem conspirar contra esse impulso todas as filosofias de negação, todas as teorias tendentes a demonstrar a inutilidade de todos os esforços, ante a sombria voragem do eterno esquecimento, que nem por isso o homem deixará de erguer para o céu, para o firmamento misterioso, os olhos tristes, na hora das grandes amarguras; nem por isso deixará de constantemente procurar alívio aos irremediáveis males do seu destino; nem por isso deixará de esperar que o sol de cada dia lhe traga maiores consolações.

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Houve há três séculos, na Escócia, um teólogo chamado Thomas Brunet, que pretendeu ter encontrado a razão da nossa mortalidade e das nossas angustias: Derivam da hora em que o nosso primeiro pai mordeu o fruto proibido, fruto venenoso e implacável, que continha os princípios da corrupção do sangue, do vício e da miséria espiritual, do irritamento das paixões e da destruição da nossa vida.

Esta explicação teológica é mais uma das muitas lucubrações com que a humanidade tem pretendido justificar, para sossego da sua consciência inquieta, o gérmen do mal que a pouco e pouco se ramifica em todas as criaturas.

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Para purificar a alma, tornando-a digna do perdão celeste e apta a entrar na eterna bem-aventurança, a Igreja criou o batismo, destruindo pela lavagem com água lustral a nódoa do original pecado; mas não soube preservar a existência das torturas que este mundo gera, e até, reconhecendo a irrevogável fonte das dores humanas, quis dela extrair o elixir mais forte para sustentáculo da esperança na recompensa do céu. E desta forma o martírio foi considerado como um bem, e as maiores agonias foram lançadas à conta da benevolência de Deus.

Mas ainda assim, mesmo na alma dos ascetas mais fervorosos, que procuravam no cilício o castigo da carne e a demonstração do seu desprezo pela miséria da terra, ainda assim, como uma serpente diabólica, a dúvida surgia às vezes a empeçonhar o bálsamo da fé.

Já depois da conversão, São Paulo declarou que conhecia pouco e que só via obscuramente...

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A propósito de Flaubert e do seu niilismo literário, diz Paulo Bourget:

"Um filosofo raciocina dentro de nós, demonstrando a inanidade da esperança e do esforço, mas o nosso coração bate e projeta nas nossas artérias um sangue cheio de átomos enérgicos, transmitido pelos antepassados..."

O coração bate, impetuoso e febril, contra o maior quebrantamento do espírito, renovando o alento daqueles que, por terem provado o amargo fruto da verdade científica, se sintam a resvalar para o desânimo aniquilador.

Há sempre no fundo do nosso ser, através de todas as desconsoladoras experiências, e sobrevivendo a todas as calamidades da nossa alma, uma força instintiva de aspiração, insaciável e constante, para embargar a qual não bastam nem os grandes infortúnios nem as grandes regalias. É essa força a que se opõe implacavelmente à perfeita felicidade dos homens. Mendigo ou monarca, mártir ou algoz, ninguém jamais se contentou com a sua sorte.

A felicidade perfeita seria aquela que fizesse emudecer na nossa alma a voz de todos os desejos; seria aquela que refrigerasse em nós o ardor de todas as paixões.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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