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7/04/2019

O Cigano (Crítica), de Alberto Bramão


O Cigano

O cigano realiza o tipo do boêmio intrujão e porco.

No maquinismo social, é ele uma peça solta, sem função determinada e exclusiva, posta ao serviço da primeira conveniência que o acaso lhe depare. Sem amor de família, sem trabalho fixo, sem crenças e sem sentimentos políticos, a sua instabilidade joga-o daqui para acolá, de um país para outro, desnacionalizando-lhe os costumes, as tradições, a linguagem. Como é cosmopolita, tem um tanto de poliglota. Faz-se entender ou desentender em todas as línguas. Tem, além disto, o recurso da mímica. Habituado a todas as inclemências da miséria, está apto para todos os gêneros da vida pobre; se não morre, a sua resistência atesta uma saúde de ferro. No entanto prefere a existência nômade, errante, à aplicação a um ofício, a uma profissão. O trabalho pautado e regular em disputa do pão de cada dia é repudiado em homenagem à tendência aventureira.

Quando no caminho se lhe não depara ensejo de colher algum alimento com que iludir a fome, detém-se contemplativo, na intuspecção de algum projeto. Nos seus cálculos não entram nunca como fatores nem a moralidade nem o respeito à lei. Há simplesmente o medo ao código penal, cuja existência ele conhece, por saber que alguns amigos e parentes seus foram parar à cadeia. Esta palavra, que significa a sequestração daquilo que ele mais ama — a liberdade, produz-lhe calafrios. Apesar disto, porém, está pronto sempre a incorrer nas disposições do código, quando possa fazê-lo recatadamente. Põe-se ao serviço de qualquer em preza, contanto que daí colha o alimento de um dia ou de uma hora. Não conhece os interesses sociais e desacata os seus próprios interesses.

Quando dá balanço à vida, não conta nunca com o dia seguinte.

Não o prendem ao mundo raízes sólidas. Não tem amor de família, porque desconhece de quem filho e não sabe de quem é pai. A mãe, quando o deu à luz, alugou-o para efeitos de comiseração em armadilha à esmola pública.


Passou de regaço em regaço, de pontapé em pontapé, sempre com fome e esfarrapado, até à responsabilidade de viver só por si. Começou então a granjear pelos seus esforços o alimento dos seus dias. E por um incompreensível prodígio de conservação, conseguiu ser homem. A mocidade, alcançada assim aos baldões, não lhe surgiu sob o aspecto risonho e florescente com que se revela às pessoas mais ou menos felizes. Simplesmente lhe trouxe um acréscimo de força e de energia para lutar. Como não teve a unção dos sentimentos, não chega a compreendê-los. O amor não é para ele mais do que uma exigência da sensualidade. Nesta maneira de ser, tem enormes compensações. Os desgostos morais, como não conhece os prazeres, passam-lhe desapercebidos. É uma exemplificação da filosofia que prescreve, para conhecimento do mal, a experimentação do bem. A dor manifesta-se pela maior ou menor destruição do prazer estável e primitivo. Por isso, o cigano jamais sente a dor intima. Ela não acha por onde lavrar naquele interior, a que uma psicologia figurada e concessionária pode chamar alma. O simoun dos desertos, que ele atravessa às vezes, nada encontrará se quiser varrer-lhe do coração a parte de sentimentos que devia caber-lhe na distribuição pela humanidade. Onde nos outros homens há células vibradas por afetos, no cigano há simplesmente cavernas. Dir-se-á que uma grande tuberculose íntima lhe esfuracou todo o seu ser moral.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019

A Felicidade (Reflexão), de Alberto Bramão



A Felicidade

Há uma velha lenda árabe em que se exprime simbolicamente a afirmativa de que a felicidade jamais existe:

Um santo faquir, a quem os representantes de todas as classes vão consultar sobre a forma de remediar os seus males, ouve-os a todos e diz-lhes por fim: — Só poderá ser feliz aquele que tiver perdido o desejo da felicidade.

E logo todos se entreolharam tristes, reconhecendo ser esse desejo irrescindível na alma humana.

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A constante ambição dos homens é uma lei implacável, que algumas religiões melancólicas tentaram suavizar, pela pregação das humildades santas e pela promessa das recompensas eternas. Mas, embora suavizada, essa lei jamais será destruída: ela é a força inicial de todo o progresso humano, e a sua origem deve talvez encontrar-se na mais remota origem do Universo.

Segundo Laplace e Kant, o nosso sistema planetário deveria ter sido uma ígnea e vasta nebulosa, que um dia, por misteriosa efervescência cósmica, rebentou no espaço indefinido, como uma granada que estoura.

Pedaços rolaram pelo vácuo, levados no impulso circulatório que rege os mundos. E cada um desses fragmentos se transformou num planeta, isto é, num corpo independente, regendo-se por leis especiais e vivendo numa atmosfera própria, embora na grande confederação planetária todos esses corpos obedeçam à suprema lei da atração universal.

Cada planeta ficou com as suas exigências e as suas vantagens especiais, e assim Saturno, por exemplo, que é grande, teve oito satélites na partilha das regalias, e a Terra, que é pequena, ficou com um satélite apenas, a Lua, que vem com a sua luz reflexa substituir a luz do sol.

Parece, pois, que desde a origem dos mundos, desde o ponto em que ao curto espírito humano é licito formular uma hipótese sobre a gênese de tudo isto, parece que todas as coisas tendem a transformar-se, a multiplicar-se, numa perene e incansável ambição.

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Saída da grande nebulosa, como uma brasa chamejante, formou-se a Terra, e dela brotaram depois, por seu turno, os primeiros espécimes da vida vegetal. Apareceu a alga marinha, protoplasma de onde irradiou mais tarde, como de uma semente contendo milhões de germens, toda a vasta e variadíssima legião das plantas, até surgir de entre elas o exemplar de transição, o coral, o espongiário e outros em que começa a manifestar-se a vida animal.

De então para cá, desde o reptil às aves, desde o sagui ao antropoide, desde o selvagem ao homem civilizado, tudo tem sido uma série indefinida de transformações a caminho do aperfeiçoamento, no intuito de levar o mais alto ser da escala zoológica ao ponto de mergulhar a vista pelo interminável firmamento, com a esperança de encontrar no céu misterioso, uma vez esgotados todos os recursos da terra, alguma coisa consoladora para a dolorosa aridez da vida material.

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A meio deste caminho de ambições e insofridos desejos, apareceu outrora na Índia, seis séculos antes da era cristã, um príncipe, filho do rei Sidarta, chamado Chakia-mouni, que para apostolizar tomou o nome de Buda, palavra que significava – aquele que, desprendido de todos os desejos e de todas as influências da paixão e do mundo material, obteve a sabedoria e o conhecimento completo e absoluto.

O budismo era, como se vê, a seita da renuncia às tentações da carne e às ambições do espírito, mas firmava-se numa base falsa.

Contra essa pretensão da completa sabedoria, admitindo como irremediável o sofrimento da vida, e como termo exclusivo e único da humanidade o rio Nirvana, rio de eterno silencio e de eterno esquecimento, erguia-se a protestar a indomável força da aspiração humana, e por isso jamais a seita búdica conseguiu impor-se, como consoladora, ao espírito irrequieto e indomável dos homens.

Uma religião sem deuses, sem cosmogonia, sem culto, tendo como único sacramento a confirmação da dor iniludível e como único alvo a aniquilação absoluta da nossa alma, pode ser o protesto irônico e sombrio de um espírito desesperançado, mas jamais conseguirá enraizar no coração da humanidade.

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Desde que o homem compreendeu a possibilidade ou teve a intuição da melhoria na sua condição misérrima, a tendência para a felicidade surgiu implacável dentro do seu ser, como um impulso que raciocínio algum conseguirá travar. Podem conspirar contra esse impulso todas as filosofias de negação, todas as teorias tendentes a demonstrar a inutilidade de todos os esforços, ante a sombria voragem do eterno esquecimento, que nem por isso o homem deixará de erguer para o céu, para o firmamento misterioso, os olhos tristes, na hora das grandes amarguras; nem por isso deixará de constantemente procurar alívio aos irremediáveis males do seu destino; nem por isso deixará de esperar que o sol de cada dia lhe traga maiores consolações.

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Houve há três séculos, na Escócia, um teólogo chamado Thomas Brunet, que pretendeu ter encontrado a razão da nossa mortalidade e das nossas angustias: Derivam da hora em que o nosso primeiro pai mordeu o fruto proibido, fruto venenoso e implacável, que continha os princípios da corrupção do sangue, do vício e da miséria espiritual, do irritamento das paixões e da destruição da nossa vida.

Esta explicação teológica é mais uma das muitas lucubrações com que a humanidade tem pretendido justificar, para sossego da sua consciência inquieta, o gérmen do mal que a pouco e pouco se ramifica em todas as criaturas.

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Para purificar a alma, tornando-a digna do perdão celeste e apta a entrar na eterna bem-aventurança, a Igreja criou o batismo, destruindo pela lavagem com água lustral a nódoa do original pecado; mas não soube preservar a existência das torturas que este mundo gera, e até, reconhecendo a irrevogável fonte das dores humanas, quis dela extrair o elixir mais forte para sustentáculo da esperança na recompensa do céu. E desta forma o martírio foi considerado como um bem, e as maiores agonias foram lançadas à conta da benevolência de Deus.

Mas ainda assim, mesmo na alma dos ascetas mais fervorosos, que procuravam no cilício o castigo da carne e a demonstração do seu desprezo pela miséria da terra, ainda assim, como uma serpente diabólica, a dúvida surgia às vezes a empeçonhar o bálsamo da fé.

Já depois da conversão, São Paulo declarou que conhecia pouco e que só via obscuramente...

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A propósito de Flaubert e do seu niilismo literário, diz Paulo Bourget:

"Um filosofo raciocina dentro de nós, demonstrando a inanidade da esperança e do esforço, mas o nosso coração bate e projeta nas nossas artérias um sangue cheio de átomos enérgicos, transmitido pelos antepassados..."

O coração bate, impetuoso e febril, contra o maior quebrantamento do espírito, renovando o alento daqueles que, por terem provado o amargo fruto da verdade científica, se sintam a resvalar para o desânimo aniquilador.

Há sempre no fundo do nosso ser, através de todas as desconsoladoras experiências, e sobrevivendo a todas as calamidades da nossa alma, uma força instintiva de aspiração, insaciável e constante, para embargar a qual não bastam nem os grandes infortúnios nem as grandes regalias. É essa força a que se opõe implacavelmente à perfeita felicidade dos homens. Mendigo ou monarca, mártir ou algoz, ninguém jamais se contentou com a sua sorte.

A felicidade perfeita seria aquela que fizesse emudecer na nossa alma a voz de todos os desejos; seria aquela que refrigerasse em nós o ardor de todas as paixões.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Touros (Conto), de Alberto Bramão


 Touros

Tempos de capa e espada! bons tempos esses... Havia então a arte suprema de tornar pitoresca a vida, entrecortando-a de peripécias, de lances arriscados, de aventuras felizes. A altiva aspiração dos vinte anos era a conquista da glória para a conquista da amada. O orgulho indomável da mocidade só se rendia ante os encantos da escolhida do seu coração. O homem que não tinha coragem para antepor aos perigos, e braço de ferro para remover os obstáculos, não alcançaria cativar as graças de uma donzela.

A têmpera das almas nobres fazia-se na guerra ou nos torneios de encruzilhada.

D. Francisco de Quevedo e Villegas, que era feio como um bode, ceifou na seara amorosa muitos corações de donzelas. É que as raparigas desse tempo não gastavam afetos com um bigode mais ou menos retorcido ou com uma bochecha mais ou menos corada e delambida. Os Dâmasos Salcedes do nosso tempo, se os transplantassem para a idade media, poderiam, quando muito, se nesse tempo as houvesse, servir de engomadeiras. Hoje são os leões da moda, e as meninas da baixa disputam-lhes as farripas da cabeleira casposa, com a mesma avidez com que Alcidonie e Josephine, duas velhotas ósseas do romance de Parrel, disputavam as graças do boticário da freguesia – um gordo!

A índole dessa época temperava-se na luta, quer contra os inimigos da pátria, alcançando foros nobiliárquicos e esporas de ouro, quer em arruaças noturnas, que davam à cidade uma atmosfera de perigo e de sobressalto. Isto durou principalmente até ao fugidio reinado de D. Afonso VI, em que os fidalgos partidários deste monarca epiléptico timbravam em apavorar o povo com acometidas de encruzilhada, raptos, arrombamentos e estocadas!

Lisboa nesse tempo era uma cidade recamada de lendas. O povo, compelido pela sua índole maldosa, e mais ou menos justificado pelo exemplo das camadas superiores, fazia-se rufião e desordeiro, e raro era o dia em que das pugnas populares não resultavam cadáveres e cenas de lacerante tragédia; porque, inibido de usar floretes e montantes, como os nobres, usava facas e navalhas, cujas lâminas brilhavam à luz amarelenta dos lampiões, nos momentos do conflito. Foi desta forma que apareceu o fadista, espécie de resíduo ignóbil de todas as camadas sociais, organizando uma classe à parte, cuja existência nenhum princípio de seriedade explica, e cuja perpetuação nasce do impulso tradicional desses velhos tempos.

Os bons homens das províncias e cidades subalternas, quando vinham dantes  à capital, revestiam-se de uma coragem tão grande e tão louca como a dos fidalgos heroicos que foram com D. Sebastião em defesa de Muley Mahomet.

Eles sabiam que em Lisboa a nota predominante era a facada, imposta ao ventre incauto dos estranhos pelos malandrins perversos que fermentavam nos bairros.

Alfama tinha assumido as proporções fatais daquela torre lendária, de onde a crônica extraíra esta inscrição desesperada: – Quem lá vai, lá fica! Todas as vielas, todos os becos tortuosos desse labirinto medonho tinham a sua historia e o seu crime.

Entrava-se em Alfama por uma dessas gargantas sinistras como goelas de tigres, e perguntava-se a algum mendigo que para ali resfriasse os ardores da fome sobre as pedras das ruas, a crônica arrepiada daqueles sítios.

Ali aparecera um homem estrangulado numa noite de inverno; acolá um fadista esfaqueara em delírio a amante ébria; mais adiante, num recôncavo de beco, fora enterrado, vivo ainda, um brasileiro ricaço, abafado pela mordaça e pelo punhal da malta; mais além, uma desgraçada postulenta, como laivos de gangrena no corpo arroxeado, emborcara de um trago uma infusão de fósforos, heroicamente, sobre a última baixeza de um amor profano e maldito...

É um nunca acabar, uma série ininterrupta de cenas trágicas, medonhas, escritas nas pedras soltas desse tortuoso bairro, infamíssimo, de onde a gente saía com o coração apertado e um acre sabor a sangue!

A Mouraria e o Bairro Alto começaram depois a fazer concorrência à criminalidade de Alfama, e a reclamar, com o direito irrecusável, os foros de terror que este bairro monopolizara por longo tempo. E, durante um período extenso, os jornais da capital iam espalhando pelo país inteiro toda a serie de crimes noturnos, sucessivos e delirantes, que constituíam a tragédia fadistal, passada entre malandrins de navalha e mulheres dissolutas, nos lupanares miseráveis e nos becos de onde mal bruxuleava, de longe a longe, a chama ensanguentada e tremula de algum lampião de azeite.

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Depois, a civilização, o progresso, todo o cortejo de conveniências, teorias e processos novos que constituem a maneira de ser da sociedade atual, começaram a destruir os velhos usos e os velhos crimes, demolindo casas, expropriando becos, policiando tudo, proibindo tudo, até a própria facada!

Os bairros que conservavam, desde Martim Moniz, o herói do Castelo de São Jorge, a sua fisionomia fantástica, revelando em cada ângulo um acontecimento histórico, e em cada contorno uma data celebre, começaram a entrar na uniformidade endossa e grave do nosso tempo.

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Mas todos esses episódios dramáticos, em que a facada se inspirava principalmente nos vapores do vinho, eram apenas o produto degenerado da faculdade guerreira, parodiando, em acometidas cobardes, os conflitos de espada, por onde outrora se aferia o valor físico e a grandeza moral de cada homem.

Dada a degenerescência da faculdade, impunha-se ao dever dos legisladores a sua incorporação nas previsões penais, pois que, tendo ela deixado de ser uma elevada manifestação heroica, passara a ser, por uma aviltante transformação, a inspiradora de hediondos e repugnantes crimes. O que fazia dessa faculdade uma virtude social era a altivez e a abnegação que a revestiam, pois que nenhum fidalgo, digno de tal título, deixaria jamais de arrancar a espada contra o homem ou a legião que o ofendesse, nem jamais deixaria de por o seu braço e a sua vida ao serviço da causa nacional, muito embora tivesse a absoluta convicção de morrer despedaçado no campo inimigo. À semelhança de Bayard, cada cavaleiro podia esculpir no seu escudo a divisa – sans peur et sans reproche.

Isto vem mais ou menos a propósito dos nossos toureiros amadores. À falta de assumpto em que exerçam o seu espírito aventureiro, continuador da velha índole dos fidalgos portugueses, inventaram os torneios tauromaquícos, de forma a provarem ali na arena, em face de um animal feroz, que ainda nas artérias desta nacionalidade combalida pulsa algum daquele sangue destemido que brilha em toda a nossa epopeia da Idade Média.

As pessoas que assistem ao torneio do alto de uma galeria, mal podem fazer ideia do que seja um touro na praça, escarvante e mugidor, com algumas garruchas espetadas no cachaço.

Só quem tem descido à arena, a contemplar de perto o animal bravio, de olhar em fúria e nervos em convulsão, poderá compreender quanta coragem, e quanto sangue frio são necessários para arcar alegremente com todos os riscos que esse feroz animal oferece.

Nesta quadra de cômoda pacatez e de pautadas conveniências, os toureiros amadores são por certo fenômenos atávicos, anacronicamente postos, como enigmas, ante o espírito pratico da época. E o atavismo é definido e claro. Eles são, como já disse, os depositários e os representantes do antigo espírito português, aventureiro e destemido, capaz de trocar a vida por um lance violento, de sacrificar tudo por uma empresa arriscada.

Mas como as épocas se transformam na sucessão evolutiva, as faculdades são obrigadas a adaptar-se aos elementos de cada época. Os mouros, por exemplo, desapareceram da península. Se os houvesse ainda, os rapazes que hoje lidam nas praças de touros formariam cruzadas e iriam, em nome da religião de Cristo, derramar intrépidos o sangue dos infiéis. Mas os mouros correram para outras regiões, e na contemplação nostálgica da sua decadência, embevecidos nas passagens melancólicas do Alcorão, já não oferecem ao gênio do século polpa que devastar em favor de interesses nossos.

Desapareceram também as guerras com a nação fronteira. O ditado, que simbolizava a nossa atitude ante os nossos vizinhos – de Espanha nem bom vento nem bom casamento – passou a ser uma mentira redonda. Desapareceram as descobertas; o homem cruzou já todas as paragens do planeta. Era necessário inventar algum alimento para a faculdade aventureira: foi então que surgiu o touro.

Nada mais completo para satisfação de coragem indomável e altiva do que um forcado no meio da praça, batendo o pé ao montanhoso quadrúpede, afrontando-lhe a fúria tremenda, escarnecendo-o, atirando-lhe com o barrete ao focinho bravio, num repto imponente e trocista.

E depois, o animal investe numa vertigem alucinada. Faz-se uma concentração de pavor no anfiteatro repleto, e o bicho parece que vai num golpe desfazer em pedaços o pequeno vulto que se lhe colocou na frente. E vê-se então o forcado amparar o animal na carreira, deter-lhe o ímpeto ferocíssimo, passar-lhe os braços em torno da papeira calosa, e ficar-lhe na cabeça bicorne, triunfante e forte, como um herói de ferro!

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E já que entrei em divagações pelos meandros da arte tauromáquica, seja-me permitido emitir baixinho uma opinião, que certamente porá de pé os cabelos artísticos de toureiros e aficionados, mas que espero me seja relevada em nome da franqueza com que falo.

Há muito tempo que a sisudez da arte de tourear baniu da arena o velho Pai Paulino e a sua trupe. A não ser em praças de segunda ordem, onde mesmo raro aparece o elemento negro, os nossos espetáculos tauromáquicos limitam-se monotonamente a exibir a pericia com que o toureiro mete um par de bandarilhas, passa o boi de capa, crava um ferro curto à tira, pega o bicho de cara, de cauda ou de cernelha.

A gravidade com que estes atos se praticam uma nuvem solene que embarga um pouco a expansão da festa. Os toureiros – a quem não quero desconhecer direitos artísticos – estão excessivamente compenetrados da seriedade do seu papel. Quando entram na arena, levam a vida disposta para alcançar a glória, e alguns certamente irão pensando no panteão que lhes arrecadará os restos mortais, pela eternidade dentro.

Desta compreensão nasce necessariamente a atitude solene, de retraimento e superioridade, que muitos espectadores notam, principalmente nos toureiros espanhóis. E se é certo que a proximidade do perigo pode desculpar essa atitude, certo é também que ela põe no anfiteatro uma nota enfadonha, um peso de monotonia, que no fim de três ou quatro touros corridos só pode ser suavizada pelo sobressalto de alguma colhida, em condições de serio risco.

Ora, pois, para espairecer o espírito e lavá-lo das manchas de monotonia que uma longa corrida produz, insuflando nos espectadores a atmosfera da expansão sem limites, cheia de gargalhadas festivas, nada mais completo do que a colaboração do Pai Paulino e da sua trupe, no programa das touradas.

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A última vez que eu tive a felicidade de ver o Pai Paulino, foi há bons quinze anos, na praça do Campo de Sant’Ana.

A meio da arena, foi rapidamente construído um navio de ripes, com mastros e tombadilho, todo enroscado por uma serpente pirotécnica, cujos anéis eram formados de valverdes, bombas e bichinhas de rabiar. Sobre a amurada de estibordo – de onde viria o temporal do boi furioso – toda a tripulação, composta de seis negros espadaúdos, empunhava garruchas, à laia de punhais, como que preparando-se para resistir a um assalto de piratas.

No público passava um ar de expectativa alegre, fazendo-se conjecturas sobre a sorte da embarcação.

De repente, como um vendável que se desencadeasse, encrespando montanhas de vagas estrepitosas, abriu-se a porta do curro, e um boi mugidor, com chispas nos olhos e o lombo erriçado de raiva, arremeteu de encontro ao navio frágil, despedaçando tudo à primeira marrada, tal como um baixel arrasado subitamente por uma avalanche de penedos, no degelo das regiões polares. E então, toda aquela serpente de lume entrou a esfuziar sobre o animal deslumbrado, e no meio da fumarada e da cintilação do fogo viam-se as caras sorridentes dos negros, mostrando uns dentes alvos de marfim, como os Satanases de mágica que ficam a rir, no meio das grandes derrocadas cênicas.

A gargalhada irrompeu clamorosa do anfiteatro, em palmas à pretalhada vitoriosa e apupos ao boi assarapantado e ridículo.

A sorte da barrica era também deliciosa, eriçada de imprevisto, capaz de escancarar as mandíbulas de um morto.

Em frente do curro, um preto de olhos alvos estendia o busto de dentro da barrica, empunhando uma farpa.

O touro arremetia; a barrica rolava de encontro à trincheira, com o preto dentro. Rompia a gargalhada na praça. E quando o preto ia a estender a cabeça, para espreitar o touro, este, que ficara de atalaia, inteligente e vingativo, caía logo sobre a embocadura da barrica, a qual rolava novamente, arrastando consigo o preto aos trambolhões.

E este espetáculo às vezes prolongava-se, enchendo de gargalhadas retumbantes o ambiente da praça, e dando a cada espectador a sensação de forte alegria, que deve caracterizar as festas populares.

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Vem a propósito intercalar nestas considerações tauromáquicas um episódio histórico, sucedido no ano de 1764:

Um índio de Buenos Aires, tendo sido condenado às galés em Cadiz, propôs ao governador, mediante o premio da sua liberdade, expor a vida numa festa pública, que constaria do seguinte: Ele sozinho, sem o menor auxilio, e apenas munido de uma corda, atacaria na arena um touro dos mais bravos, lançá-lo-ia a terra, prendendo-o depois pela parte que lhe indicassem, por-lhe-ia uma sela e, montando-o, combateria assim dois outros touros, até que lhe dessem ordem para matar.

O governador acedeu e o índio cumpriu à risca o seu programa.

Este feito extraordinaríssimo vem narrado no 1º tomo das Observations sur l'Histoire naturelle, de Gautier.

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Posto isto, resta fazer uma declaração terminante: O autor destas linhas nunca foi toureiro. Houve um dia em que a musculatura irrequieta e um certo desejo inexplicável de provar novas sensações lhe fizeram passar pelo cérebro a ideia de pegar um boi de cara, para ver se realmente a bravura do animal na arena contrastava com a sua mansidão – no prato. Essa ideia, porém, desapareceu fugaz, como um meteoro de mau prenúncio, e de então para cá nunca mais tive o lamentável desejo de tourear boi algum, a não ser – com garfo e faca. O que é, no fim de contas, como bem diz um carnívoro das minhas relações – a única coisa que a gente leva deste mundo.


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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)