7/15/2019

“Alma Cabocla” (Crítica), de Sylvio Floreal



“Alma Cabocla”

Paulo Setúbal, o incomparável cantor da “Alma cabocla”, é um poeta que ocupa um lugar à parte entre os poetas da atual geração que marcham vertiginosamente pelo desfiladeiro da glória, rumo ao ideal.

Ocupa um lugar à parte porque, sobre ser grande e verdadeiro poeta, é dotado de uma ausência de cabotinismo que, longe de lhe apagar o brilho, mais o reaviva e o intensifica.

A sua alma de poeta, na acepção homérica da palavra, lampeja, corusca e faroleia, do fundo da penumbra elegante da sua modéstia, de tal modo que até chega mesmo a perturbar o brilho falso e as reverberações imprecisas dos que, acavalados no ginete do cabotinismo, galopam furiosamente para a notoriedade, abrindo passagem a golpes de audácia e estonteante e alardeadoras clarinadas.

A sua poesia é bem a poesia do Brasil, porque nela há muito sol e luar dos trópicos, murmurâncias de selvas, murmurilhos de arroios, mistérios de penumbras, realidades de clareiras, aromas de veludosas e desonduladas campinas, perfumes de almas fundidos e misturados com perfumes de gleba e amores silenciosos, medrosos, furtivos, da gente rude, que se acostumou a ser boa em contato com a grande bondade da terra e aprendeu a amar dentro do Panteão da Natureza.

Apesar dos bizarrismos mórbidos e estapafúrdios que de há muito lavram, desvirtuando e degenerando a veia poética dos poetas do Brasil, a ponto de cantarem alheios a tudo quanto os rodeia e os envolve, Paulo Setúbal, herdeiro de uma lídima infibratura de robusta, eloquente e seivosa poesia, encerrando entre as muralhas do seu temperamento, resistindo heroicamente a todas as maléficas influências infiltradoras, faz poesia refletindo a nossa ética, como todo o corolário das suas ânsias desordenadas, violentas, mas afinal profundamente nossas e ardentemente brasileiras.

Poesia é sentimento e o autor de “Alma cabocla”, fazendo deste postulado artístico o seu padrão, o seu ponto de apoio, sem procurar e sem pedir assuntos e motivos além das nossas fronteiras, conseguiu plasmar uma poesia em que palpita, vibra, estua e anseia a alma da nossa gente em toda a sua plenitude e desdobramento — rugidora, violenta, bárbara, nas rajadas de volúpia; e terna, suave, melancólica, dulçurosa, nos desfalecimentos de tristezas, de dores e de sofrimento.

Artificialismos em sua arte não encontraram guarida, da mesma forma que aquilo que ele não sente também não canta. Livro singelo, onde se sente a presença onipotente e comovedora da verdadeira e alta poesia!

Setúbal é simples, sem ser banal; meigo, sem ser lamecha; voluptuoso sem deslizar pelo declive estafante e cediço do sensualismo.

As suas estrofes, entretecidas de brejeiro feitiço, de langorosos amavios, insinuam-se e penetram lentamente, silenciosamente, como uma carícia musical de luz, dentro da alma de quem as lê.

Enquanto os livros que refletem esta ou aquela escola, este ou aquele modo de versejar passam, desaparecem, sem deixar na memória de ninguém o marco da sua passagem, “Alma cabocla” fica e timbra nos sentimentos, marcando no Brasil uma etapa que muito nos orgulha, porque representa um livro de poesia genuinamente nossa.

Livro excelente, que vale só por si por quantos livros de sensações falsas e amaneiradas têm aparecidos nos últimos tempos.

Poderia Paulo Setúbal poetar como a maioria dos nossos poetas, mas o acendrado amor que tem à nossa gente levou-o a pôr galhardamente o seu coração de poeta a serviço do vasto e bramante coração da Pátria!


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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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