7/15/2019

Um grito no deserto (Crítica), de Sylvio Floreal



Um grito no deserto

Ao Nilo Costa, magnífico camarada, belo talento de panfletário – esta rajada de indignação.

O grau de cultura de um povo aquilata-se pelo número de jornais independentes que o mesmo possua.

O jornal independente exerce sobre a consciência popular uma influência extraordinária; orienta, informa, ventila causas justas, espalha opiniões e normas de benefício geral e vai assim alicerçando lentamente no seio da coletividade o senso da justa medida para julgar as coisas da vida e o hábito da lógica para analisar tudo quanto existe.

É verdade que a imprensa desinteresseira e honesta só acarreta sacrifícios e outras dificuldades.

Na formação do caráter de um povo ela desempenha o papel predominante, e todo o povo que tiver a desdita de não a possuir, está fadado a passar pelo vexame de ver a balança da sua justiça transformada em prato sórdido de balança de algibebe, onde os políticos relapsos, mancomunados com jornalistas leiloeiros da consciência, pesam o produto extorquido do povo incauto.

No Brasil esta imprensa prolifera assombrosamente, não só nos grandes centros, onde afinal já há certo grau de cultura, mas nas pequenas cidades de todo o interior do país.

No Estado de S. Paulo, por exemplo, há, em todas as cidades do interior, um jornaleco fundado por esta ou aquela facção política, por este ou aquele grupelho de indivíduos para explorar, chantagear, traficar, latrocinar, ludibriar, mistificar, patenteando sempre que a razão não é de quem a tem nem de quem tem talento para ter, como diz o brocardo, mas sim de quem souber com astúcia e velhacaria turvar as águas e lançar a confusão, para no fim, tirando partido de tudo, dizer que está de posse da verdade e da lógica!

O mal destes pasquins, alcoviteiros e porta-recados de corrilhos políticos, onde não há nem uma chelpa de verdadeiro patriotismo e de amor à coletividade, é tão enorme e nefasto, que Euclides da Cunha chegou a exclamar que se o Brasil tem inimigos, eles é que são os únicos e verdadeiros!

Cavam assim a sepultura do caráter, desmoronam esse resquício de bom senso ingênito na consciência popular, avinagram as ideias, deturpam os bons sentimentos, colocam a mentira no trono da verdade, a injustiça no altar da justiça, o roubo no lugar da virtude, encarceram os homens de bem, abrindo ao mesmo tempo as cadeias para pôr em liberdade os vigaristas e os facínoras da pior espécie.

Ora, resulta de tudo isto que sendo o nosso país um vasto campo aberto à cobiça de falcatrueiros de toda a estirpe, vindos das cinco partes do mundo, não é raro ver-se um aventureiro de qualquer raça, enfronhado em qualquer cidade, vila ou povoado do estado de São Paulo, guindado de um momento para outro às culminâncias da política e da imprensa.

Os filhos do lugar percebem isto, mas longe de apurarem e reduzirem ao silêncio tais aves de arribação, se limitam, muito pachorramente, a sorrir e a bocejar; cientes de que é necessário correr com o intruso que se enriquece, fazendo imprensa assalariada, jornal amarelo, dão de ombros e, como Pilatos no Pretório, lavam as mãos, dizendo: — “não vale a pena!...” E ante essa frase que traduz toda a indolência de um povo que ainda não aprendeu a amar suficientemente o seu país, os arrivistas respondem num largo gesto de triunfadores: “vim, vi e venci!”

E a imprensa assalariada, ora exercitada por aventureiros de duvidosa procedência, ora dirigida por brasileiros canalhoides, mas corrompidos do que os outros, prossegue a sua marcha triunfal, alastrando a miséria moral no seio das populações!

Até quando durará esta inominável desgraça?

Até o dia em que os brasileiros tomarem vergonha e, possessos de cólera, fizerem justiça, expurgando do organismo social todos esses ladravazes da imprensa assalariada.

Nos países em formação, e neste caso o Brasil, a imprensa que não tiver em mira uma grande aspiração e não se bater por uma ideia concorre para o desfibramento da raça, cavando a ruína moral do povo.

Um povo somente é forte e cônscio de seus lídimos direitos de pátria, quando sabe pensar para saber querer e lograr se impor.

A justiça, fator primordial do alevantamento físico, medra somente quando encontra a seara propícia, quando encontra consciência formada e espírito equilibrado.

Nada disto encontrando, a justiça degenera, periclita, claudica, se amesquinha e morre, matando ao mesmo tempo esse mesmo povo que não a soube acolher e assimilá-la, devido à falência de uma certa perfectibilidade moral, de que a mesma carece para germinar, vicejar, frutear e pompear com orgulho entono!

Na justa das competições e dos valores, o povo que não tiver um ideal de unificação que seja o reflexo da cultura do seu país e um prolongamento dos desejos e aspirações de sua raça, corre o risco de ser relegado para um segundo plano e escarnecido pelos fortes e audaciosos.

Nos nossos dias temos um doloroso exemplo; na Conferência da Paz, onde as potências, com garras de felinos, tiveram ensejo de todas reunidas mostrarem o brilho sinistro dos colmilhos e o lampejo assassino das unhas, ainda que salpicadas de gotas de sangue da grande sangria que enxurrou o mundo, vimos com quanto cinismo e audácia elas humilharam, vilipendiaram, desprezaram, chacotearam e menosprezavam os povos pequenos ou mesmo grandes, mas que não ocupam no mundo um lugar de destaque, tanto pela força moral como pela força bélica.

E os pequenos países, não o Brasil, porque territorialmente ele é tido como um dos maiores, mas os outros que concorreram alguns com seu sangue, outros com seu dinheiro, foram e fomos até nós esquecidos e empurrados, jeitosamente, dessa augusta conferência.

Não cabe aqui fazer a defesa dos outros povos; façamos a nossa, porque além de ser nosso dever de patriotas, é a nossa obrigação de jornalistas.

Na tal conferência, diga-se de passagem, não nos tomaram muito a sério, e sabem por quê?

Porque além de não sermos um país bem organizado militarmente, não temos opinião!

É fácil não só de se ver como até mesmo de se explicar: — A imprensa, que deve ser feita por filhos do país e homens de cultura e probidade, é exercitada em sua maioria por estrangeiros que fazem desse veículo de opiniões um carro de exploração, que guiam ao seu bel prazer, por entre os aplausos da multidão analfabeta.

A outra parte, que é diminuta, perde o seu precioso tempo em discutir somente questões fósseis e assuntos cediços e velharoucos. É tão nefasta quanto a outra e cava a nossa derrocada coadjuvada pela arraia melda duma babilônia de jornalecos insignificantes, mal escritos e pessimamente orientados, subordinados aos interesses de um partido sem horizontes e ideais, verdadeira corja sem escrúpulos que, pondo-se a serviço do seu estômago e da sua vaidade, praticam toda sorte de infâmias e roubalheiras.

Enquanto isso, há sempre um ou outro homem de brio que levanta a cabeça indignado e clama contra esse estado de coisas.

Clama, mas o seu clamor, o seu grito e o seu verbo são parábolas que morrem no deserto pérfido da indiferença!

E a situação permanece a mesma: de um lado a imprensa assalariada que tem ânsias de vender o país a retalho; do outro lado o povo cansado de ser ludibriado, explorado, traficado, cruza faquirianamente os braços e deixa tudo correr à revelia, frio impassível, inerme, pusilânime, sem o mínimo vislumbre de revolta e indignação.

E essa imprensa prossegue avante, conduzindo na sua caravana a morte do ideal, o cadáver da justiça, o arcabouço da verdade e o corpo moribundo da opinião!

E em vez de abrir sulcos para lançar os alicerces de uma pátria nobre, grande e forte, sepulta nesses mesmos fossos a pátria!

E a caravana avança triunfalmente, tendo por claque e admiradores um povo inteiro que, à força de ser enganado, já não distingue mais o bem do mal!


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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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