7/31/2019

Eça de Queirós e a pureza da língua (Ensaio)



Eça de Queirós e a pureza da língua

Os puristas, que prejudicialmente exageram a boa tendência do amor à correção idiomática, acusam Eça de Queirós de galiciparla e solecista. Acontece que o romancista do século XIX escreveu algumas das mais belas páginas da literatura portuguesa. Quer isso dizer que, para escrever bem como fez o Eca, basta despreocupar-se do tom vernáculo e desprezar as normas gramaticais. Tal a conclusão a que se apegaram e ainda se apegam muitos desprecavidos, embora sem a formularem. É tão falsa como a premissa que a impõe.

Só aparentemente isto, é exercício de lógica. Uma leviandade incrível de Graça Aranha serve de boa documentação: "(Eca de Queirós) foi um artista que, ignorando a língua, escreveu de um modo encantador, numa língua espontânea e corrompida, com certa liberdade, por lhe serem estranhos os moldes clássicos. E assim os principais defeitos do escritor que é Eça de Queirós, contribuíram para a vivacidade e magia dos seus livros". ("A Estética da Vida")

Ninguém é capaz de saber como pode o artista da palavra ignorar a própria língua. A verdade, por si mesma evidente, está na crítica de José Veríssimo: "Ele tinha - ou possuiu como talvez ninguém depois de Garrett - o dom da língua, mesmo quando ainda não a sabia perfeitamente nem a empregava com a mestria com que acabou por manejá-la" (Homens e Coisas Estrangeiras). E um pouco acima explica: "Faltava aos seguidores do naturalismo aqui o que em Eça sobejava, a personalidade pala  transformar em seu, aquilo que acaso lhe não pertencia de próprio e a grande capacidade de transposição para os tons mais originais e mais variados dos temas que lhes ofereciam a literatura e a vida".

Como de costume, o que pegou foram os defeitos, a camada superficial de alcance fácil. No caso dos brasileiros, ressalta a sedução dos elementos desportuguesantes, muito ao sabor da reação jacobina, condição da ainda incerta autonomia literária. A cópia transparece no abuso da adjetivação, particularmente infeliz no próprio "clássico do adjetivo". Monteiro Lobato deu com ela na prosa aguada de pequenos jornais do interior, e poderia rastrear-se facilmente até na escrita de alto coturno. O resto veio de França, "certos quindins da prose artiste dos naturalistas", como diz Agostinho de Campos, além de inegáveis galicismos léxicos e sintéticos.

É de notar sem demora que o influxo de Eça de Queirós ultrapassou a transmissão de salientes particularidades formais. O ar de coisa postiça que assume nos epígonos vem-lhe do caráter de simples atualidade. A prosa queirosiana, porém, é muito mais que vitrina de bibelôs literários que passaram de moda. Sem dar na vista, a parte profunda de sua influência é muito mais importante. Limitar-se-á ao francesismo?

Estava na ordem natural das coisas o absorvente da influência francesa, na linguagem como nas atitudes literárias. No fim do século XIX tudo, mas tudo mesmo, vinha de França para Portugal. Em conhecida página, Eça de Queirós reconhece e lamenta essa macaqueação do francês. Desde a escola e pela vida fora só se aprendiam coisas francesas no original ou em traduções aproximadas. "Não quero escrever uma página de memórias, declara. Apenas mostrar, tipicamente, como eu, toda a minha geração (excetuando espíritos superiores, como Antero do Quental ou Oliveira Martins, benévola exceção) nos tínhamos formado fatalmente franceses no meio duma sociedade que se afrancesava e que, por toda a parte, desde as criações do Estado até o gosto dos indivíduos, rompera com a tradição nacional, escrevendo, ensinando, vivendo, cozinhando — de trapos vindos de França!" (Ultimas Páginas). E um pouco adiante acrescenta: "Mas é sobretudo na minha especialidade, na literatura, que esta cópia do francês é desoladora. Como aqueles patos que Zola tão comicamente descreve na Terre, aí vamos todos, em fila, lentos e vagos, através do caminho da poesia e da prosa, atrás do ganso francês."

Ora, Agostinho de Campos, paladino da reabilitação gramatical do grande prosador, mostra que o mais dos galicismos que lhe assacam já eram empregados quando começou a escrever. Mais: o exame dos incontestavelmente seus revela quase sempre enriquecimento da língua, por meio do empréstimo tomado ao francês.

Típico é o caso da ordem gramatical. A preferência pela direta não redunda necessariamente em escravização ao desenho frásico francês. É certo que a lição de Castilho insinua o seu abandono em benefício da ordem inversa. É demais. Da privilegiada liberdade que a opulência flexional nos assegura, faz parte o recurso à ordem direta, mais adequado ao enunciado explicativo e que, se na maioria dos casos convém à linguagem de índole intelectual, também pode marcar aspectos efetivos, pois uma e outra maneira de arranjar os termos podem espelhar particularidades estilísticas. Curiosa liberdade essa, que vem a descambar em nova proibição. A maior frequência da ordem direta esta na lógica de nossa evolução linguística. Ressalta a partir de Eça de Queirós como sinal de sua influência.

O modelo francês fez mais do que sugerir vocábulos e torneios a Eça de Queirós. Norteou-lhe o ideal literário. Na citada página de confissão, que é também injusto arrependimento, indica as razões pelas quais a imitação francesa lhe parece injustificável, pela ausência de finalidade. Traça então este paralelo: "A França é um país de inteligência; nos somos um país d'imaginação. A literatura da França e essencialmente crítica. Nós, por temperamento, amamos sobretudo a eloquência e a imagem. A literatura da França e, desde Rabelais até Hugo, social, ativa, militante. A nossa, por tradição e instinto, é idílica e contemplativa". Pela mão do criador de Fradique Mendes, a literatura de língua portuguesa foi buscar à sua irmã neolatina precisamente o que lhe faltava, num esforço por corrigir tradicionais defeitos, exageração de ingênuas qualidades.

"Com raras exceções, a prosa portuguesa é enfática, artificiosa e gongórica, sobrecarregada de ornamentos como o mais anticlássico dos estilos arquitetônicos, se estilo se pode chamar ao manuelino. A nossa alma barroca compraz-se no arabesco literário puramente formal, ignorando ou desprezando a clareza, a sobriedade, o aticismo e o equilíbrio das proporções". Pondo de parte certo exagero desse desabafo de Osório de Oliveira (Psicologia de Portugal), o qual negligencia a sobriedade de um Bernardes em pleno seiscentismo, fica patente que o papel de Eça de Queirós consistia em reagir contra esse barroquismo literário. Para tanto, seguiu o exemplo de escritores franceses, em condições de comunicar à prosa que nos legou o que falta à generalidade dos escritores portugueses, e pode ser incorporado à nossa língua literária. Inegavelmente muitos fugiram à frase bonita, para caírem na frase bonitinha. A culpa não é de Eça de Queirós. Não é para qualquer a "personalidade para transformar em seu aquilo que acaso não lhe pertencia".

***

A crítica de Eça à sociedade sua contemporânea reflete ideias e reivindicações em moda. Era também um modo indireto de ser nacionalista. O patriotismo inteligente, apanágio de escritores não burocratizados é pessimista por índole. Os mais amargos motejos revêm a esperança. Este modo crítico de querer bem, muito mais construtor do que parece aos nacionalistas ovantes, refletiu em Eça de Queirós, a princípio inconscientemente, o verdadeiro patriotismo e reverência na mocidade, veneração livre na madurez. Não há, pois, contradição nas duas fases do escritor. De outra parte, óbvio que não foi nem podia ser uma voz isolada que destoasse, na evolução histórica da prosa portuguesa.

A frequentação dos clássicos não podia traí-lo. A ideia de vernáculo lembrava-lhe "pedantismo, caturrice, a Academia das Ciências, o pingo de rape, outras coisas antipáticas", (Últimas Páginas). Tinha mesmo de ser assim. Na prática literária correspondia à linguagem de Castilho, o árcade retardatário que os realistas combatiam e à escrita camiliana, nos antípodas da sua maneira, pelo regionalismo e pelo gosto de ostentar riqueza, através da opulência vocabular. Eça de Queirós consagrou à prosa leve e ágil, o máximo de resultado expressional com o mínimo de meios lexicográficos. Cultivou a graça e a sutileza, na fluência semelhante ao discurso oral. Com isso não lhe falta ascendente na literatura portuguesa. Liga-se à tradição através de Garrett.

Assim pensavam os próprios companheiros de geração. É o que se vê da impressiva síntese de Ramalho Ortigão, citado por Agostinho de Campos: "Desde os nossos grandes escritores seiscentistas, até Garrett, nunca mais houve na literatura portuguesa senão estilos derivados, secundários, imitativos, ostentando pomposamente a inexpressibilidade mais indigentemente acadêmica, e mais inânime. Garrett foi o primeiro que, opondo-se à corrente do convencionalismo, meteu debaixo do joelho o monstro da ênfase atávica, da hereditária retórica, que por mais de dois séculos resfolegara apopleticamente no fundo de toda a nossa produção artística. Queirós foi para a segunda metade do século XIX o que Almeida Garrett havia sido para a mesma metade da mesma centúria: "O escritor de seu tempo, desprendido de todas as superstições técnicas, exercendo livremente sobre a palpitante realidade do mundo vivo as suas pessoais faculdades de analisar e de sentir" (Eça de Queirós). Idêntica a verificação de José Veríssimo: "O que foi Garrett para a língua portuguesa na primeira metade do século, foi Eça de Queirós na segunda". (Homens e Coisas Estrangeiras). Posteriormente veio a reconhecer Fidelino de Figueiredo: "A forma verbal, estilo linguístico, o abandono da solenidade campanuda, o seu aligeiramento com bom humor, em tom de palestra versátil, com o leitor, sobre muitas coisas que não sejam as fatalidades da paixão, a coragem de alargar o âmbito das curiosidades e das emoções, tudo isso tinha um antecedente glorioso no Garrett das Viagens na Minha Terra" (Últimas Aventuras). Curioso é que os dois prosadores novecentistas, intensos à velha ênfase luso-brasileira, Eça de Queirós e Machado de Assis, derivam de Garrett, deixando à margem a fronde camiliana.

Pela "completa transformação" que operou no estilo português, Fidelino de Figueiredo pôde extremar a história da língua literária portuguesa em dois períodos muito opostos: "antes e depois de Eça de Queirós" (História da Literatura Realista). "Depois de Eça de Queirós" intitula-se um livro seu.

"A ação de Eça de Queirós na nossa história literária", escreveu mais tarde o mestre da crítica portuguesa, "é principalmente a reforma da língua portuguesa como instrumento de expressão e o haver erguido uma sólida obra sobre essa fundamental concepção estética: a arte é a luta pela expressão". (Últimas Aventuras).

Na mesma ordem de ideias, conceitua-lhe o ideal de estilo pela seguinte forma: "Eça desenhava e caricaturava pela palavra. Sabendo ver o traço dominante, o gesto ou a atitude típica, também sabia fazer vê-la pelo dom de expressão, em que se acurou toda a vida: cada palavra um valor pictórico, com o seu lugar próprio. Nem empastamento de tinta, nem avareza dela. Tudo tinha a aparência de espontâneo pela fácil visão que transmitia ou pela pronta emoção que despertava. Máxima simplicidade em resultado, em laborioso resultado, com a máxima expressão" (Últimas Aventuras).

No constante "duelo do espírito com a linguagem", para usarmos da fórmula de Valery, cara a Fidelino de Figueiredo, Eça de Queirós tinha em conta o respeito à gramática. A propósito da limpeza que teve de fazer nos artigos das Farpas, antes de os enfeixar em livro, confessa em carta a Ramalho Ortigão:" ... Eu tive de fazer o meu estilo à custa de esforços e de tatonnements".

Não era possível, decentemente, deixar aparecer a público páginas assim desalinhadas e por vezes "despidas da própria gramática".

Francamente condenável em Eça de Queirós é a "mania de fazer estilo", vício muito português e brasileiro como ele só. E o nosso prosador fez pior. No pecado flaubertiano, refinou. "O próprio Eça, no fim da vida, deixou-se seduzir pelo culto da forma e escreveu as "Lendas de Santos", em que o estilo, em contraste com a obra anterior do romancista, deixa de ser um meio para se tornar um fim" (José Osório de Oliveira: Psicologia de Portugal).

Já não serve ao nosso tempo o superficialismo pictórico da prosa queirosiana. O senso estético no trato da língua constitui-lhe o mais fecundo ensinamento.

Com parte de evitar o malsinado alheamento da vida política e social, vamo-nos entregando ao gostoso desmazelo. O medo de repetir aquela inversão de valores leva ao descuido com a forma. Convém reparar em que Eça de Queirós tomou parte muito ativa nas lutas de seu tempo. Como escritor, porém, nunca menoscabou os valores tipicamente literários. Deu-se ao obscuro trabalho necessário ao cultivo da expressão eficaz. Conhecia-lhe o dinamismo que o aprimoramento só vem intensificar. Se não cabe repetir-lhe o estilo, muito seu e de época ultrapassada, a sua atitude artística, sem o mencionado exagero, permanece modelar e deve ser adaptada às condições de nosso tempo.

Originariamente, será francesa a novidade queirosiana. Perfeitamente normal essa influência. E como a elaboração do artista a transformou? Imprimindo-lhe caráter português.

Dandismo e nada mais são os pecadilhos de moço e as faceirices de velho seguidor da moda. Hoje, ninguém vai empregar galicismo por sistema, nem inverter os valores estéticos. Prendas individuais de estilo próprio é o gosto da frase cristalina, a leveza da amena conversa, a sintaxe limpa de toda a fealdade. Eça de Queirós repudiou a mania do purismo e consagrou o ideal de pureza idiomática.

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AIRES DA MATA MACHADO FILHO
Revista Brasileira, dezembro de 1945.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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