Minhas Senhoras, Meus
Senhores:
Com superior eloquência,
falada e escrita, e em formosos versos, disse-se já de Eça de Queirós o que
havia a dizer nesta hora. Tudo o que demonstra a sua grandeza, e tudo o que
constituiu o seu encanto pessoal, foi aqui relembrado com justiça: justiça a
que não faltou, não podia faltar a alta e piedosa bondade a que os mortos têm
direito, e sem a qual é sempre falível ou, pelo menos, estreita a visão das coisas
humanas.
Eça de Queirós era inacessível
aos fumos e estonteamentos da vaidade: desta vulgar tentação, a que ainda os
mais fortes sucumbem, defendia-o o processo usual da sua ironia; mas se tivera
a previsão desta comemoração, tão saudosa e tão amorável, creio que ela lhe
sorriria como a mais bela recompensa dada ao seu gênio e ao seu trabalho... Um
grande e poderoso artista fixa-lhe em precioso mármore a fisionomia nervosa,
intensa, expressiva: e, na admirável composição de toda a escultura, colhe e
perpetua o feitio original da sua figura e a síntese literária da sua obra.
Amigos fiéis — fiéis depois da morte! — agrupam-se em redor do seu monumento,
e, penetrados da sua glória, dizem sobriamente, em seu louvor, merecidas
palavras de afeto e de verdade. O profundo sentimento, a quase divina piedade
dos que ele mais amou sobre a terra prolongará a fugaz duração deste momento em
que o seu claro perfil reaparece na luz e graça natural... Nada, do que ele
quereria, falta; nada, do que lhe repugnaria, se faz!
O grande perigo de uma
celebração desta ordem foi afastado por intencional vontade de nós todos. Eça
de Queirós era dos que nunca perdoaram à Grécia, a luminosa pátria do aticismo,
ter inventado a Retórica, e tê-la
ordenado, nos seus dias decadentes: seria indigno dele e de nós que lhe
trouxéssemos agora as oferendas da nossa admiração nas velhas ânforas usadas e puídas,
de que se não exala nunca todo o perfume da sinceridade, grato aos vivos, mais
grato aos mortos... Era em mim, talvez, que o perigo parecia maior. Mas se
alguma poeira me ficou das tribunas, em que fui hóspede, sacudi-a longe daqui:
por temor dele, que ainda me pode ouvir, e em homenagem à absoluta perfeição
que foi, progressivamente, a flor, o ideal, ç maravilhoso encanto da sua formosíssima
palavra escrita!
Formosíssima, decerto; inigualável
até, sob muitos aspectos. O escritor faz-se; mas que laboriosa evolução é
precisa para se conseguir uma linguagem adequada e dócil, um estilo literário e
perfeito!
Eça de Queirós tinha a
predisposição nativa e procurou as estranhas influências que dão esse supremo
resultado. A lógica, que é condição primária para pensar e escrever bem; a
observação atenta, que descobre nas coisas qualidades novas, geralmente
ignoradas; a imaginação poética que, fundindo o espírito e a natureza, era o
maravilhoso mundo da arte: tudo isto havia, e em sumo grau, no seu gênio
pessoal. Depois, o trabalho de toda a sua vida foi a fecundação e o
aproveitamento destas faculdades ingênitas. Sempre à procura de alguma coisa
inédita,— como aquele lendário mereante de que ele fala num dos seus livros, —
avidamente procurou nas literaturas estranhas, nos poetas raros de psicologia
mórbida, nas civilizações cultíssimas, no contato com a natureza e com as populações
exóticas, tudo o que pudesse ser um novo motivo para a Arte e um esplendor novo
para a Forma. Para isto, fez e refez o seu estilo, desarticulou-o e recompô-lo,
deu-lhe agilidade e graça, tornou-o de uma leveza quase imponderável: e pode
dizer- se que, desde a gaze diáfana, de que se tecem os sonhos, até ao bronze
consistente, em que se gravam as legendas imortais, de tudo houve na sua
palavra fulgidíssima!
A sua prosa não tem a larga
medida oratória, tão agradável ao ouvido peninsular; mas há harmonioso ritmo
nos seus períodos, as suas frases parecem, por vezes, abertas em ouro pelo
buril dum artista precioso e paciente: e dentro desses períodos, e dentro
dessas frases, a alma moderna vive livremente a sua vida ansiada, inquieta,
cheia de elevados ideais e de contradicções flagrantes, com uma nevrose em cada
dia, ora mística e pura como um tabernáculo de Deus, ora desvairada, incoerente,
como possessa de um demônio louco! A graça ridente, as surpresas do espírito, o
contraste das coisas, a emoção que irrompia, às vezes, dos íntimos recatos, em
que ele a guardava, encontravam sempre a palavra adequada, a expressão nítida e
própria, simples ou artificiosa, grave ou hilariante...
Na visão e cópia da
natureza era inexcedível: ou tivesse visto a paisagem, ou a sua imaginação a
houvesse adivinhado e recomposto. Igualmente magistral nos dois processos de
representar o mundo exterior: quando recebia e comunicava a impressão
dominante, apontando-a, sugerindo-a apenas, e quando, distendendo a sua
palavra, como um véu transparente, sobre a superfície das coisas, as mostrava,
como ele as via, na forma, no relevo, na cor e proporção que tinham. Se a
ironia era o seu processo mais frequente na observação da sociedade, a
sinceridade e a ternura reservava-as inteiramente para a natureza: como se
houvesse no grande e requintado artista, que ele foi, uma ingênua alma de
celta, primordial e simples, absorta no mistério e na adoração das coisas
criadas!
A descrição da Palestina,
mirrada e triste, a do Extremo Oriente, monstruoso e fantástico, e aquele
quadro minucioso e completo, exuberante e magnífico, dos dias genesíacos da
Terra, num dos seus Contos, — são, na
arte de pintar por palavras e frases, o mais alto exemplo e o mais acabado
modelo. Mas superior a tudo é a pintura amorável que ele fez da nossa terra:
desta benigna natureza, tão bela, tão poética, tão abençoada de Deus. O norte
de Portugal... como o lindo norte de Portugal se reflete na prosa dos seus
últimos livros, impressionada e verdadeira, fluida e plástica, opulenta de tons
e de cores?! Por mim digo que nunca lhe agradecerei bastante o vivo prazer que
experimentei encontrando nos seus livros a minha amada terra natal, e vendo-a,
e sentindo-a, como eu lhe quero e como ela é, com as suas serras alterosas e os
seus vales profundos, alternando na paisagem a grandeza e a graça: as suas
cearas lourejantes, e os seus ricos e fartos milharais; os seus densos
arvoredos copados e redondos; o carvalho ancestral dominando, solitário, as
selvas e as encostas; o castanheiro verde com os seus frutos dourados; a água
caindo, correndo, gralhando, agora sumida na terra, reaparecendo logo entre
alvos seixos luzidios; os caminhos e as sombras; o entardecer dos dias claros e
quentes; a suma bondade e a penetrante poesia que se exalam de tudo; o sono da
terra durante a noite, velado por estrelas, até à manhã seguinte, em que se
repete a fulgida iluminação solar do nosso verão fecundo, do nosso verão criador.
Inspirava-o a musa de Virgílio quando, com tanta verdade e tanto amor, ele descrevia assim a deliciosa, a incomparável paisagem portuguesa...
A língua que falamos, meus
senhores, é um dos laços que nos prendem, e dos mais fortes, na comunidade
nacional. Aquele que consegue aperfeiçoá-la, dar-lhe maior precisão ou nitidez,
tornai-a de qualquer forma mais rica de locuções ou mais maleável na estrutura —
presta um inestimável serviço às letras e à pátria. Eça de Queirós prestou este
serviço. Nos seus últimos livros atingiu por vezes a absoluta propriedade no
dizer, aquela divina perfeição que o oráculo de Delfos impunha, como norma ou
como ideal, a toda a cultura ateniense. Só por isto ele merecia que se lhe
erigisse um monumento; e que o ideasse e executasse o grande escultor que foi
escolhido para que, na feliz e harmoniosa conjunção da obra de arte e do que
ela glorifica, se ficasse representando uma das maiores belezas e um dos
supremos encantos do espírito português neste momento!
Eça de Queirós foi também
um criador d’almas. Fez concorrência ao estado civil, na bela frase de Balzac.
Na seleção e na arte com que
as produziu, a sua imaginação, que seria a faculdade primacial do seu espírito
se esta designação não pertencesse antes à sua penetração da realidade da Vida,
usou processos novos, desconhecidos ainda entre nós. Não as espiritualizou, não
as sublimou em sonhos aéreos de elevação e de bondade: fiel à escola que
preferiu ou que se lhe impôs, tomou da natureza, como ele a viu, o molde das
suas criações: e afeiçoou-as com engenho fecundo, animou-as, por vezes, com
flagrante verdade. A carne, de que as revestiu, não envelhece; o espírito, que
lhes insuflou, não diminui; a vida, que lhes imprimiu, não acaba.
Os personagens dos seus Romances e dos seus Contos não são destinados a representar a eterna natureza humana
nas suas paixões imutáveis, nas qualidades e nos vícios por que se revela a sua
dupla origem divina e terrestre. Não foram talhados no bloco ingente em que Shakespeare,
Rabelais, Molière recortaram os seus; nem ainda na matéria, incoercível e vaga,
das grandes transformações sociais, com mais ou menos consciência percebidas,
como o D. Quixote de Cervantes ou o Fígaro de Beaumarchais. Foi na massa dos
costumes contemporâneos, confusa, inextricável, contraditória, foi na sociedade
de ontem e de hoje, como ela é, e pintando-a, quase sempre, com a intenção e a cor
da máxima naturalidade, que ele procurou e quis as suas figuras maiores.
Que acentuada e característica
personalidade o grande romancista lhes deu! Têm fisionomia inconfundível, têm ação
lógica, têm vida própria e distinta. Algumas, animadas por um assopro de gênio,
viverão longo tempo na memória portuguesa. Eça de Queirós marcou-as com o selo
da grande Arte. Essas não sofrem no confronto das que gerou a imaginação sutil,
laboriosa e disciplinada, de Gustave Flaubert.
Por vezes a fantasia de Eça
de Queirós, não podendo conter-se na observação fria, na precisão científica de
particularidades mínimas, no desenho do natural, na análise paciente dos
caracteres, escapava-se, ultrapassava as balizas, rompia os liames que a apertavam;
e, nesta triunfal insubmissão aos preceitos principais da sua arte, era tão
bela e tão surpreendente como nas obras de fôlego, sob outro aspecto melhores,
mais perfeitas, em que o seu engenho se provou e assinalou.
Que finíssima comédia há em
todos os seus livros! As caricaturas, que fazia, valem artisticamente os
retratos de tamanho natural que nos deixou. O seu humor, o seu espírito, era
tão grande como as outras faculdades do seu entendimento claro e profundo. Se
sentiu a tristeza das coisas de que
fala o poeta latino, não gostava de a exprimir: mas a ironia da Vida
inspirou-lhe paginas imortais de pensamento, de penetração moral, de verdade e
de graça...
Nesta hora de apoteose a um
grande escritor, na póstuma celebração do seu nome e do seu gênio, é a
quantidade de esforço inteligente que ele empregou, e a medida em que adiantou
ou serviu a cultura contemporânea— que devem ser rememoradas em voz alta. As
contenções das escolas não veem para aqui.
Eça de Queirós ocupa um lugar
eminente entre os melhores espíritos do nosso tempo e do nosso país; e foram
realmente grandes os homens com que ele podia competir na emulação do renome e
da glória.
Não declinarei os nomes dos
vivos: só os mortos, na sua impassividade sereníssima, podem ser louvados sem
que a vaidade os perturbe, a modéstia os retraía, a comparação os afronte e
moleste.
Camilo, já na declinação da
idade, mas em toda a pujança do seu portentoso cérebro, vivia ainda o romance
original da sua vida e cumulava a colossal medida do seu trabalho ingente, do
seu trabalho enorme. Antero de Quental, sumo poeta, subia aos páramos supremos,
à nebulose metafísica em que o ser e o nada se confundem: e, águia ferida na vista pelo sol, maior na
queda do que fora antes, dava-nos, no seu último livro, o espetáculo
formidável, trágico e místico, da imaginação quase sem asas, arrastando-se,
genialmente ainda, num espaço quase sem luz... Oliveira Martins entesourava e difundia,
com maravilhoso método, o saber enciclopédico do seu tempo, levantava do seu túmulo,
animava e movia as veneráveis figuras da nossa história: e tinha ainda maneira
de nos dizer a quantidade de ilusão poética, a porção de sonho triste que lhe
enchia a grande alma e lhe magoava doloridamente o coração!...
Eça de Queirós teve outro
destino. Das infinitas curiosidades do seu tempo tentou-o a que mais se
ajustava à sua índole e à sua consciência. Enveredou por um caminho novo entre
nós; e a luz raiou, a verdade resplendeu ante os seus olhos: a luz e a verdade que
a cada temperamento de eleição é dado ver e fixar, e que, na hora própria, a
crítica apura, conta, entre as aquisições definitivas da Ciência, da Literatura
e da Arte.
Shakespeare faz dizer a
Hamlet: Horácio há no céu e sobre a terra
mais coisas do que imagina a tua sonhadora filosofia... Também na Arte
havia mais coisas do que sonhava a fantasia de toda a gente quando Eça
revolucionou a literatura da nossa terra, servindo um ideal que ainda não fora
visto aqui, e servindo-o, e realizando-o, com brilho singular e com rara
perfeição, até às vésperas da sua morte!
Na atitude do seu esforço
para arrancar à vida alguma das recônditas verdades, que ela encerra, o
representa este admirável monumento. Redivivo no mármore, a que o gênio do
artista deu intenção e alma, parece que continua a obra interrompida...
Merecido premio a quem perscrutando,
como artista, os segredos da natureza, estudando, como crítico, os fatos sociais,
procurando o verdadeiro sentido da história, a que tinha de recorrer, penetrando
o oculto simbolismo das lendas, de que fez maravilhosos contos, renovando e
enriquecendo a língua em que escrevia, tão perfeitamente interpretou e compreendeu
o seu tempo, e tão gloriosamente serviu e engrandeceu a sua pátria!
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ANTÔNIO CÂNDIDO
"Discurso" (1903)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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