7/31/2019

Eça de Queirós, o artista da palavra



Eça de Queirós, o artista da palavra

Portugal e Brasil irmanam-se nas comemorações centenárias do nascimento do romancista máximo de Portugal, José Maria de Eça de Queirós. Justifica-se esta união de louvores, em torno da obra do artista português, não apenas pela igualdade de língua dos dois países, mas principalmente porque de todos os escritores portugueses é, sem dúvida, Eça de Queirós o mais lido, o mais estimado, o mais difundido em todo o Brasil.


Desde a estreia do grande romancista, gerações e gerações de leitores brasileiros deliciam-se com a prosa maviosa e com a ironia e o sarcasmo do irreverente homem da Póvoa de Varzim. Acresce a circunstância de ter sido ele colaborador de jornal brasileiro e de ter sempre mostrado pela nossa terra uma simpatia indisfarçável, repassada de ternura, como se vê daquela última carta de Fradique Mendes, dirigida a Eduardo Prado, em 1888. Um de seus livros, "O mistério da estrada de Sintra" teve mesmo uma edição em terras brasileiras, em Belo Horizonte.

Certo é que, entre as gerações mais novas, já não existe tão acendrado esse culto pela obra do escritor português. Atenazados por problemas bem mais cruciantes que os do fim do século XIX, com heranças tremendas de guerras e revoluções sociais, os moços de hoje não encontram em Eca de Queirós um clima intelectual em que se sintam à vontade. Indiferentes, e alguns mesmo deliberadamente adversos a preocupações estilísticas, julgam uma inferioridade aquele amor e apuro da forma, que mais e mais se acentuaram no decorrer da vida literária de Eça. Graves e sérios diante dos torturantes problemas sociais do momento não se sentem bem ao lado de um homem que julgava a gargalhada um meio de consertar males e defeitos da vida social. Distanciados já do cientificismo oitocentista, sorriem, apiedados, ao ler os ditirambos de Eça às modas literárias e científicas de seu tempo.

No entanto, os que conseguem vencer estas barreiras espirituais e penetram no estudo da obra queirosiana, em breve se sentem fascinados pelo que nela existe de verdadeiramente artístico, de construtivo, de bem intencionado, e, desprezando os tributos que ela pagou a certa salafrarice dos leitores, que o naturalismo acirrou, os exageros e erros de visão do caricaturista que Eça tantas vezes foi, saboreiam com prazer aquela prosa cantante, colorida, viva, ágil, terna e risonha, em que estão vazadas tantas das mais belas páginas da literatura em língua portuguesa.

Não é de admirar, pois, que na já volumosa biografia em torno da obra de Eça de Queirós, vamos encontrar entre escritores jovens brasileiros, três substanciosos estudos queirosianos, os trabalhos de Viana Moog, Álvaro Lins e Clóvis Ramalhete. Porque o que atrai especialmente os críticos e estudiosos na obra de Eça é a própria obra, os seus problemas de ordem literária e estética, a sua essência própria, sem aquele domínio absorvente das circunstâncias exteriores e dos dramas passionais, que caracteriza a obra de certos grandes escritores.

Em Eça, a vida literária é tudo, a vida comum, quase nada. Sua biografia resume-se em poucas linhas. Teve uma infância apagada, foi estudante em Coimbra, sem grande relevo, advogou sem êxito, redigiu um jornalzinho político em Évora, fez uma viagem ao Egito, administrou o concelho de Leiria, cidadezinha provinciana, fez concurso e foi nomeado cônsul de Portugal em Havana, visitou os Estados Unidos, foi transferido para Newcastle upon Tyne  e depois para Bristol, na Inglaterra, casou-se sem muito amor, já quarentão e acabou seus dias como cônsul de Portugal em Paris, depois de uma viagem à Suíça, em busca de melhoras.

 Não teve uma dessas vidas borrascosas, que celebrizaram tantos artistas e escritores, cheias de aventuras amorosas e tragédias, que são um valioso achado para os autores de biografias romanceadas. Os próprios apertos financeiros, de que tanto se queixa a seu amigo Ramalho Ortigão, que era quem o livrava muitas vezes de apuros, não têm aquele caráter dramático e mesmo catastrófico das dívidas de um Walter Scott ou dum Balzac.

Quanto a aventuras amorosas, falta-lhe na vida de burocrata consular uma dessas paixões violentas e vorazes, que aureolam de romantismo a vida de outros escritores e artistas. Nem mesmo há qualquer tom de exotismo, de drama, de excepcionalidade, como no caso dum Baudelaire, dum Byron, dum Musset, nos seus amores mercenários com espanholas e inglesas de vida airada. A única aventura amorosa que se lhe conhece é aquela com a baronesa de Salgueiro, que redundou, aliás, num ridículo tremendo e tirou a Eça de Queirós, talvez para sempre os pruridos donjuanescos e lovelacianos, tornando-o mesmo um inimigo do adultério, cujos vícios, misérias e ridículos procurou depois mostrar nos seus livros.

Eça de Queirós foi, pois, um desses artistas cuja obra absorve completamente a vida e muito mais do que esta é interessante, viva, atrai leitores e ouvintes. Sua frase petulante e falsa "A arte é tudo porque só ela tem a duração e tudo o resto é nada", sintetiza bem o que foi para ele a Arte. Viveu da literatura e para a literatura. Dela fez o seu ideal de vida. A ela dedicou toda a sua existência. Às vésperas da morte, quando viajava pela Suíça, procurando alívio a seus males de tísico, carregava consigo os seus cadernos de apontamentos, os seus papéis para escrever.

Suas atividades, seus pianos, fora do ramerrão da burocracia consular, eram atividades de ordem literária, eram planos de realizações literárias: revistas, obras, coleções. Daí o valor, a qualidade, a pujança da obra que deixou, pois a ela consagrara todas as energias que salvava da doença. Por isso sua obra vem resistindo ao tempo, vem sobrepairando às modas literárias e aos preconceitos de escolas. É que sempre a animou aquele imortal sopro de romantismo, a que não puderam escapar até mesmo as obras mais afincadas e deliberadamente adstritas aos cânones da escola naturalista.

Eça de Queirós, estudada com atenção a sua obra, nunca deixou de ser aquele rapaz romântico dos primeiros folhetins da "Gazeta de Portugal", aquelas "prosas bárbaras" a que sempre procurava retornar, quando cansava de empunhar o látego do sarcasmo e o veneno da ironia e quando tentava fugir das torpezas da realidade para um outro mundo de beleza e de harmonia. E a modificação que se lhe nota nos escritos de sua última fase literária não é mais do que o retorno, agora renovado pela experiência e pela perfeição do artista, senhor de seus meios de expressão, a um clima espiritual e artístico em que o escritor se sentia mais à vontade, mais de acordo com suas tendências e volições mais íntimas, sem necessidade de afivelar máscaras e tomar atitudes, como sempre fizera. Porque não podemos esquecer este traço da figura literária e moral de Eça de Queirós. Foi um homem de "atitudes", de "máscaras". Psicologicamente explicáveis, aliás. Era um tímido, dominado, ainda por cima, pelo complexo de inferioridade que lhe causava sua origem espúria e o não ter tido a cercá-lo, na infância, os carinhos e cuidados maternos. Daí seus sarcasmos, suas atitudes agressivas do bom senso burguês e das convenções sociais. Era a defesa que fazia de sua sensibilidade, de seu senso estético de artista contra as feiuras do prosaísmo ambiente.

Quando se atenta, porém, com cuidado, para a sua obra de polemista e de sarcasta, verifica-se que ela não foi apenas demolidora ou sem objetivo outro que não o de denegrir, como a certos panfletários virulentos. Se se excedeu por vezes na sátira, se carregou nas tintas com que descreveu a sociedade de seu tempo, (excesso talvez das contingências da escola literária a que ateve sua arte criadora), a verdade é que sua pena não a utilizava ele a serviço duma filosofia cínica, duma defesa do vício, duma exaltação dos maus instintos do homem.

Combateu a frivolidade, a burrice imponente, a literatura artificial, a hipocrisia, a beatice, o sensualismo desenfreado, a política sem ideais, os desvirtuamentos do espírito cristão, os ridículos e misérias duma civilização materializada, os vícios duma organização social que dava origem a tantas injustiças e desigualdades. Os próprios excessos em que incidiu têm sua explicação psicológica. Na mocidade, com o complexo do seu nascimento fora da legitimidade social e seus ideais duma arte e duma sociedade melhores, investe com ardor contra tudo quanto lhe parecia ser propício a casos idênticos ao seu, ou atentasse contra aqueles seus ideais.

Pela sua inteligência e pela sua sensibilidade, em choque contra o meio, lançou mão da única arma que sua timidez lhe proporcionava: o sarcasmo. "As Farpas", que escrevia em colaboração com outro irmão de ideais e de sensibilidade, Ramalho Ortigão, são os seus apetrechos de guerra. Os aspectos censuráveis do meio que o cercava estavam por demais próximos de sua vista, para que não os visse grandes e fortes em excesso. Os seus ataques estavam em proporção com essa visão agigantada.

Desde, porém, que a distância e o exílio o colocaram em posição de olhar a perspectiva nas proporções devidas, e o amortecimento das paixões da juventude e o senso das proporções, que a experiência da vida produz, lhe deram uma visão mais real e mais autêntica da sociedade, passou a vê-la com outros olhos, a sentir suas virtudes recônditas, a censurar com mais bonomia que sarcasmo seus vícios e defeitos. E surge então a necessidade de libertar-se da fôrma rígida e estreita do naturalismo, o amor pelas coisas portuguesas, o apuro maior da linguagem sem excessos de francesismo, daquele francesismo de que fora epígono, pela palavra e pelo exemplo, e que condenaria em artigo cheio de ironia e de sátira, ao lado de muita crítica sensata, recolhido nas "Últimas Páginas", a romantização da vida rural e a condenação dos excessos deformatórios da civilização mecanizada, a atração pelas coisas simples e pela vida dos santos, em que a sua arte de fundo mais romântico que naturalista, encontraria motivos que farte para dar asas à sua fantasia.

Não concordamos com alguns críticos que consideram os livros da última fase da vida literária de Eça, inferiores aos anteriores. Se do ponto de vista da técnica do romance, "A Ilustre Casa de Ramires", (Eça incorre no mesmo defeito de "A Relíquia", com o enxerto de outra história, escrita pelo protagonista que, em ambos os casos, não tinha qualidades para compor narrativas tão artisticamente perfeitas) e "A Cidade e as Serras'' não sejam tão propriamente romances como "O Crime do Padre Amaro", ou "O Primo Basílio", quando os encaramos, porém, como realização artística, pela forma, pela expressão, pela intencionalidade, não há por onde negar-lhes qualidades excepcionais que lhe assinalam um lugar mais sólido e mais duradouro na obra do romancista. Demonstra-o a preferência dos leitores de melhor gosto por "A Ilustre Casa de Ramires", por "A Cidade e as Serras", por "Os Maias" mesmo e, noutro gênero, pela "Correspondência de Fradique Mendes". É que em Eça de Queirós o artista primava sobre o romancista, mais romântico do que realista.

Os analistas de sua obra mostram como não se pode considerá-lo um naturalista à Zola, como se foi ele libertando, de livro para livro, de cânones rígidos da escola, como Flaubert exerceu sobre ele mais influência do que Zola e como sua admiração pelo gênio verbal de Victor Hugo, a quem sempre cultuou e louvou, fê-lo, de ano para ano, um insatisfeito artífice da expressão lapidar e perfeita. E é o artista que em Eça de Queirós, tantos anos depois de sua morte, ressalta com mais nitidez, com mais força, com mais relevo. As caduquices de escola caducaram mesmo. Mas o lavor do artista esplende sempre mais, a finura de espírito tem sempre o sabor de velhos vinhos. Certas páginas de Eça, hoje relidas não perderam e não perderão jamais, quaisquer que sejam as mudanças de gosto e a multiplicidade de escolas literárias, a sua graça, o seu frescor, a sua harmonia, a sua vivacidade e o seu colorido. Não são peças frias de mármore, porém. São coisa viva. Porque em Eça o homem, com seus ideais, com sua ternura, com sua bondade de tímido e de sentimental, está sempre presente para informar a criação do artista. E as obras de arte que ficam, que atravessam os tempos, que encantam gerações as mais diversas e povos de raças diferentes, são aquelas que souberam harmonizar, num momento de criação genial, inteligência e coração, razão e sentimento, arte e humanidade.

A Eça, entre os seus erros, os seus desvios de visão, os seus excessos e as suas limitações, não faltaram aquelas qualidades que imortalizam as obras de arte. Se as fraquezas do homem, se os preconceitos do partidário tisnam tantas vezes a sua obra, a parte que nela há de verdadeiramente sólido e de verdadeiramente belo resiste ao tempo e às modas e justifica a consagração que se presta, no centenário de seu nascimento, ao artista que soube mais que qualquer outro de seu tempo dar à língua portuguesa a maleabilidade, a graça, a harmonia, a vivacidade, a luminosidade, o vigor e o colorido que lhe negavam outros escritores menos artistas e mais aferrados a um purismo, que ganhava em imponência e massudez o que perdia em comunicabilidade e vida.

---
OSCAR MENDES
Revista Brasileira, dezembro de 1945.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...