Portugal e Brasil irmanam-se nas
comemorações centenárias do nascimento do romancista máximo de Portugal, José
Maria de Eça de Queirós. Justifica-se esta união de louvores, em torno da obra
do artista português, não apenas pela igualdade de língua dos dois países, mas
principalmente porque de todos os escritores portugueses é, sem dúvida, Eça de Queirós
o mais lido, o mais estimado, o mais difundido em todo o Brasil.
Desde a estreia do grande romancista, gerações e gerações de leitores brasileiros deliciam-se com a prosa maviosa e com a ironia e o sarcasmo do irreverente homem da Póvoa de Varzim. Acresce a circunstância de ter sido ele colaborador de jornal brasileiro e de ter sempre mostrado pela nossa terra uma simpatia indisfarçável, repassada de ternura, como se vê daquela última carta de Fradique Mendes, dirigida a Eduardo Prado, em 1888. Um de seus livros, "O mistério da estrada de Sintra" teve mesmo uma edição em terras brasileiras, em Belo Horizonte.
Certo é que, entre as gerações
mais novas, já não existe tão acendrado esse culto pela obra do escritor
português. Atenazados por problemas bem mais cruciantes que os do fim do século
XIX, com heranças tremendas de guerras e revoluções sociais, os moços de hoje
não encontram em Eca de Queirós um clima intelectual em que se sintam à
vontade. Indiferentes, e alguns mesmo deliberadamente adversos a preocupações
estilísticas, julgam uma inferioridade aquele amor e apuro da forma, que mais e
mais se acentuaram no decorrer da vida literária de Eça. Graves e sérios diante
dos torturantes problemas sociais do momento não se sentem bem ao lado de um
homem que julgava a gargalhada um meio de consertar males e defeitos da vida
social. Distanciados já do cientificismo oitocentista, sorriem, apiedados, ao
ler os ditirambos de Eça às modas literárias e científicas de seu tempo.
No entanto, os que conseguem
vencer estas barreiras espirituais e penetram no estudo da obra queirosiana, em
breve se sentem fascinados pelo que nela existe de verdadeiramente artístico,
de construtivo, de bem intencionado, e, desprezando os tributos que ela pagou a
certa salafrarice dos leitores, que o naturalismo acirrou, os exageros e erros
de visão do caricaturista que Eça tantas vezes foi, saboreiam com prazer aquela
prosa cantante, colorida, viva, ágil, terna e risonha, em que estão vazadas
tantas das mais belas páginas da literatura em língua portuguesa.
Não é de admirar, pois, que na já
volumosa biografia em torno da obra de Eça de Queirós, vamos encontrar entre
escritores jovens brasileiros, três substanciosos estudos queirosianos, os
trabalhos de Viana Moog, Álvaro Lins e Clóvis Ramalhete. Porque o que atrai
especialmente os críticos e estudiosos na obra de Eça é a própria obra, os seus
problemas de ordem literária e estética, a sua essência própria, sem aquele
domínio absorvente das circunstâncias exteriores e dos dramas passionais, que
caracteriza a obra de certos grandes escritores.
Em Eça, a vida literária é tudo,
a vida comum, quase nada. Sua biografia resume-se em poucas linhas. Teve uma
infância apagada, foi estudante em Coimbra, sem grande relevo, advogou sem
êxito, redigiu um jornalzinho político em Évora, fez uma viagem ao Egito,
administrou o concelho de Leiria, cidadezinha provinciana, fez concurso e foi
nomeado cônsul de Portugal em Havana, visitou os Estados Unidos, foi
transferido para Newcastle upon Tyne e
depois para Bristol, na Inglaterra, casou-se sem muito amor, já quarentão e
acabou seus dias como cônsul de Portugal em Paris, depois de uma viagem à
Suíça, em busca de melhoras.
Não teve uma dessas vidas borrascosas, que
celebrizaram tantos artistas e escritores, cheias de aventuras amorosas e
tragédias, que são um valioso achado para os autores de biografias romanceadas.
Os próprios apertos financeiros, de que tanto se queixa a seu amigo Ramalho Ortigão,
que era quem o livrava muitas vezes de apuros, não têm aquele caráter dramático
e mesmo catastrófico das dívidas de um Walter Scott ou dum Balzac.
Quanto a aventuras amorosas,
falta-lhe na vida de burocrata consular uma dessas paixões violentas e vorazes,
que aureolam de romantismo a vida de outros escritores e artistas. Nem mesmo há
qualquer tom de exotismo, de drama, de excepcionalidade, como no caso dum
Baudelaire, dum Byron, dum Musset, nos seus amores mercenários com espanholas e
inglesas de vida airada. A única aventura amorosa que se lhe conhece é aquela
com a baronesa de Salgueiro, que redundou, aliás, num ridículo tremendo e tirou
a Eça de Queirós, talvez para sempre os pruridos donjuanescos e lovelacianos,
tornando-o mesmo um inimigo do adultério, cujos vícios, misérias e ridículos
procurou depois mostrar nos seus livros.
Eça de Queirós foi, pois, um
desses artistas cuja obra absorve completamente a vida e muito mais do que esta
é interessante, viva, atrai leitores e ouvintes. Sua frase petulante e falsa
"A arte é tudo porque só ela tem a duração e tudo o resto é nada",
sintetiza bem o que foi para ele a Arte. Viveu da literatura e para a
literatura. Dela fez o seu ideal de vida. A ela dedicou toda a sua existência.
Às vésperas da morte, quando viajava pela Suíça, procurando alívio a seus males
de tísico, carregava consigo os seus cadernos de apontamentos, os seus papéis
para escrever.
Suas atividades, seus pianos,
fora do ramerrão da burocracia consular, eram atividades de ordem literária,
eram planos de realizações literárias: revistas, obras, coleções. Daí o valor,
a qualidade, a pujança da obra que deixou, pois a ela consagrara todas as
energias que salvava da doença. Por isso sua obra vem resistindo ao tempo, vem
sobrepairando às modas literárias e aos preconceitos de escolas. É que sempre a
animou aquele imortal sopro de romantismo, a que não puderam escapar até mesmo
as obras mais afincadas e deliberadamente adstritas aos cânones da escola naturalista.
Eça de Queirós, estudada com
atenção a sua obra, nunca deixou de ser aquele rapaz romântico dos primeiros
folhetins da "Gazeta de Portugal", aquelas "prosas
bárbaras" a que sempre procurava retornar, quando cansava de empunhar o
látego do sarcasmo e o veneno da ironia e quando tentava fugir das torpezas da
realidade para um outro mundo de beleza e de harmonia. E a modificação que se
lhe nota nos escritos de sua última fase literária não é mais do que o retorno,
agora renovado pela experiência e pela perfeição do artista, senhor de seus
meios de expressão, a um clima espiritual e artístico em que o escritor se
sentia mais à vontade, mais de acordo com suas tendências e volições mais
íntimas, sem necessidade de afivelar máscaras e tomar atitudes, como sempre
fizera. Porque não podemos esquecer este traço da figura literária e moral de
Eça de Queirós. Foi um homem de "atitudes", de "máscaras".
Psicologicamente explicáveis, aliás. Era um tímido, dominado, ainda por cima,
pelo complexo de inferioridade que lhe causava sua origem espúria e o não ter
tido a cercá-lo, na infância, os carinhos e cuidados maternos. Daí seus
sarcasmos, suas atitudes agressivas do bom senso burguês e das convenções
sociais. Era a defesa que fazia de sua sensibilidade, de seu senso estético de
artista contra as feiuras do prosaísmo ambiente.
Quando se atenta, porém, com
cuidado, para a sua obra de polemista e de sarcasta, verifica-se que ela não
foi apenas demolidora ou sem objetivo outro que não o de denegrir, como a
certos panfletários virulentos. Se se excedeu por vezes na sátira, se carregou
nas tintas com que descreveu a sociedade de seu tempo, (excesso talvez das
contingências da escola literária a que ateve sua arte criadora), a verdade é
que sua pena não a utilizava ele a serviço duma filosofia cínica, duma defesa
do vício, duma exaltação dos maus instintos do homem.
Combateu a frivolidade, a burrice
imponente, a literatura artificial, a hipocrisia, a beatice, o sensualismo
desenfreado, a política sem ideais, os desvirtuamentos do espírito cristão, os
ridículos e misérias duma civilização materializada, os vícios duma organização
social que dava origem a tantas injustiças e desigualdades. Os próprios
excessos em que incidiu têm sua explicação psicológica. Na mocidade, com o
complexo do seu nascimento fora da legitimidade social e seus ideais duma arte
e duma sociedade melhores, investe com ardor contra tudo quanto lhe parecia ser
propício a casos idênticos ao seu, ou atentasse contra aqueles seus ideais.
Pela sua inteligência e pela sua
sensibilidade, em choque contra o meio, lançou mão da única arma que sua
timidez lhe proporcionava: o sarcasmo. "As Farpas", que escrevia em
colaboração com outro irmão de ideais e de sensibilidade, Ramalho Ortigão, são
os seus apetrechos de guerra. Os aspectos censuráveis do meio que o cercava
estavam por demais próximos de sua vista, para que não os visse grandes e
fortes em excesso. Os seus ataques estavam em proporção com essa visão
agigantada.
Desde, porém, que a distância e o
exílio o colocaram em posição de olhar a perspectiva nas proporções devidas, e
o amortecimento das paixões da juventude e o senso das proporções, que a
experiência da vida produz, lhe deram uma visão mais real e mais autêntica da
sociedade, passou a vê-la com outros olhos, a sentir suas virtudes recônditas,
a censurar com mais bonomia que sarcasmo seus vícios e defeitos. E surge então
a necessidade de libertar-se da fôrma rígida e estreita do naturalismo, o amor
pelas coisas portuguesas, o apuro maior da linguagem sem excessos de
francesismo, daquele francesismo de que fora epígono, pela palavra e pelo
exemplo, e que condenaria em artigo cheio de ironia e de sátira, ao lado de
muita crítica sensata, recolhido nas "Últimas Páginas", a
romantização da vida rural e a condenação dos excessos deformatórios da
civilização mecanizada, a atração pelas coisas simples e pela vida dos santos,
em que a sua arte de fundo mais romântico que naturalista, encontraria motivos
que farte para dar asas à sua fantasia.
Não concordamos com alguns
críticos que consideram os livros da última fase da vida literária de Eça,
inferiores aos anteriores. Se do ponto de vista da técnica do romance, "A
Ilustre Casa de Ramires", (Eça incorre no mesmo defeito de "A
Relíquia", com o enxerto de outra história, escrita pelo protagonista que,
em ambos os casos, não tinha qualidades para compor narrativas tão
artisticamente perfeitas) e "A Cidade e as Serras'' não sejam tão
propriamente romances como "O Crime do Padre Amaro", ou "O Primo
Basílio", quando os encaramos, porém, como realização artística, pela
forma, pela expressão, pela intencionalidade, não há por onde negar-lhes
qualidades excepcionais que lhe assinalam um lugar mais sólido e mais duradouro
na obra do romancista. Demonstra-o a preferência dos leitores de melhor gosto
por "A Ilustre Casa de Ramires", por "A Cidade e as
Serras", por "Os Maias" mesmo e, noutro gênero, pela "Correspondência
de Fradique Mendes". É que em Eça de Queirós o artista primava sobre o
romancista, mais romântico do que realista.
Os analistas de sua obra mostram
como não se pode considerá-lo um naturalista à Zola, como se foi ele
libertando, de livro para livro, de cânones rígidos da escola, como Flaubert
exerceu sobre ele mais influência do que Zola e como sua admiração pelo gênio
verbal de Victor Hugo, a quem sempre cultuou e louvou, fê-lo, de ano para ano,
um insatisfeito artífice da expressão lapidar e perfeita. E é o artista que em
Eça de Queirós, tantos anos depois de sua morte, ressalta com mais nitidez, com
mais força, com mais relevo. As caduquices de escola caducaram mesmo. Mas o
lavor do artista esplende sempre mais, a finura de espírito tem sempre o sabor
de velhos vinhos. Certas páginas de Eça, hoje relidas não perderam e não
perderão jamais, quaisquer que sejam as mudanças de gosto e a multiplicidade de
escolas literárias, a sua graça, o seu frescor, a sua harmonia, a sua
vivacidade e o seu colorido. Não são peças frias de mármore, porém. São coisa
viva. Porque em Eça o homem, com seus ideais, com sua ternura, com sua bondade
de tímido e de sentimental, está sempre presente para informar a criação do
artista. E as obras de arte que ficam, que atravessam os tempos, que encantam
gerações as mais diversas e povos de raças diferentes, são aquelas que souberam
harmonizar, num momento de criação genial, inteligência e coração, razão e
sentimento, arte e humanidade.
A Eça, entre os seus erros, os
seus desvios de visão, os seus excessos e as suas limitações, não faltaram
aquelas qualidades que imortalizam as obras de arte. Se as fraquezas do homem,
se os preconceitos do partidário tisnam tantas vezes a sua obra, a parte que
nela há de verdadeiramente sólido e de verdadeiramente belo resiste ao tempo e às
modas e justifica a consagração que se presta, no centenário de seu nascimento,
ao artista que soube mais que qualquer outro de seu tempo dar à língua
portuguesa a maleabilidade, a graça, a harmonia, a vivacidade, a luminosidade,
o vigor e o colorido que lhe negavam outros escritores menos artistas e mais
aferrados a um purismo, que ganhava em imponência e massudez o que perdia em
comunicabilidade e vida.
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OSCAR MENDES
Revista Brasileira, dezembro de 1945.
OSCAR MENDES
Revista Brasileira, dezembro de 1945.
Pesquisa e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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