7/16/2019

João da Rocha (Conto), de Cláudio Basto



João da Rocha


Não vale a pena nesta inglória esfera
Procurar nome, pretender subir...

João da Rocha - Nossa Senhora do Lar.

Coração, que bateste de mansinho, e depois a má sorte dilacerou nas urzes do caminho, meu pecador ingênuo e inocentinho, para de vez na morte!

JOÃO DA ROCHA -  Refúgio de Pecadores (poesia inédita)

João da Rocha morreu.

Na Madona do Campo Santo, esse lírio de poesia que fulge entre as flores de arte que Fialho com mais gentileza plasmou, — Artur, diante da morte de Judite, olha-a num pesadelo, com a impressão de coisa passada noutros tempos, com outras pessoas, noutros lugares...

Como Artur, marasmado de luto perante a Virgem das rosas que um sonho de vida tenuemente gerou e desfez, — eu tenho sempre a impressão, quando a morte leva um ente que me é querido — querido ao coração, querido à inteligência, ou querido à inteligência e ao coração, como agora —, eu tenho sempre a impressão de que a mágoa sombria desse acontecimento, afastando-se no tempo e no espaço, se projeta, não sei entre que fluidez, numa época e num lugar estranhamente distantes.

João da Rocha morreu. Morreu ontem. Melhor que ninguém, disseram-mo as árvores que da minha casa vejo e que na manhã de hoje, amortalhada de chuva, soluçam pelo amigo que, entre elas, numa brilhante hora de sol, festivamente as cantou um dia... Morreu ontem. E não sei por que singular desdobramento pessoal, eu me julgo muito aquém, muitíssimo aquém dessa brutalidade, como se fora um velho que relembrasse e revivesse uma longínqua página da vida de outro “eu”, já não com a febre sobressaltada em que se recebe o choque de uma notícia acabrunhante, mas já com o acabrunhamento de uma recordação antiga a que a saudade, pelos tempos fora, houvesse vaporizado a febre do sobressalto em ternura e desalento.

E João da Rocha, vendo-o eu dessa maneira, afastado de mim, surge em toda a sua grandeza moral e mental, em toda a sua florente sensibilidade de artista, em todo o seu vigor fanático de estudioso; — vejo-o em conjunto, integramente, sem as deficiências a que uma visão próxima e parcelar obriga o espírito ainda sangrante de surpresa angustiosa.

João da Rocha foi um dos polígrafos de pena mais variada que neste país têm havido. A sua pena maleável ia do rigor severo da erudição mais cimentada, às mais vaporosas florescências literárias. Pela sua pena fácil escapava-se, sem qualquer constrangimento, sem qualquer hesitação, a forma elegante e clara em que se modelavam os seus estudos, as suas ideias, as suas imagens, as suas estesias, a potência do seu saber, a delicadeza do seu sentir...

João da Rocha morreu. Passou nesta vida como um desconhecido, como um ignorado. Passou obscuramente, encolhido na sua modéstia, orgulhosa com nobreza, — naquela orgulhosa modéstia dos grandes homens que têm a consciência da sua triunfal superioridade, naquela orgulhosa modéstia que torna os grandes homens insatisfeitos e receosos de si, anelantes de perfeição, duvidosos da correspondência das suas obras ao nível do seu talento. Passou, por isso mesmo, sem as pedras falsas das vaidades labregas, quase apenas conhecido numa roda escassa de amigos e adoradores, entre os quais se encontram dos espíritos mais altos e mais cotados da terra portuguesa. Os testemunhos, porém, dessa admiração, guardou-os sempre João da Rocha no mais secreto do cofre da sua modéstia, e jamais, pode-se dizer jamais, o seu nome andou nas bocas, ridiculamente sonoras, das trompetas do elogio nacional. E ainda bem!

Que essas trompetas se gastem nos lábios frouxos dos nulos, soprando, ocamente vibrantes, hosanas a outros nulos! João da Rocha tem a erguê-lo à plana dos primeiros escritores portugueses o pedestal das suas obras. Hão de gastar-se aquelas trompetas, hão de perder-se os seus ecos fúteis, — e o monumento honesto, que João da Rocha descuidadamente edificou com o fulgor da sua pena, permanecerá para sempre, para sempre atestando vitoriosamente o seu valor. E a crítica, no futuro, não a crítica inçada de superficiais impressionismos que se nota por aí, mas a crítica literária que seja realmente crítica, como a história de um povo o exige, há de verificar que em João da Rocha se fundiram um grande poeta, um grande prosador, um grande erudito, um grande crítico, um grande orador, — um poeta, um prosador, um erudito, um crítico, um orador, notavelmente acima de muitos intelectuais que p’ra aí se veem, por falta de visão apreciadora e por falta de equilibrada e honrada justiça, consagrados entre os primeiros.

João da Rocha, como poeta, foi indubitavelmente um dos maiores e dos mais portugueses, pela expressão do seu lirismo e pelo lirismo da sua emoção. Companheiro íntimo de Antônio Nobre, foi com ele um renovador de ritmos. E cadências, que se têm apregoado recentemente como modernidades, são já velharia nos seus versos de estudante. Poeta de comoção, poeta de ritmo formal anastomosado ao ritmo da alma, subpunha a rigidez de clássicas regras métricas ao desabrochar intenso das belezas emotivas.

Como prosador, a sua fluência de dição lateja vida. A sua prosa possui maviosidades dolentes, terna fantasia, lembrando às vezes a música vocabular de Eça de Queirós, e possui uma diafaneidade, um colorido e um talhe artístico inconfundíveis. E ainda nas suas velhas prosas, como nessas impressionantes Angústias, se encontram processos e temas que recentemente se têm conclamado como novíssimos.

Os seus trabalhos de erudito impuseram-no à estima dos investigadores mais exigentes. João da Rocha não tinha só uma vastíssima cultura, uma rara facilidade de estudo e de assimilação, uma tenaz paciência imperturbável: tinha ainda uma extraordinária antevisão que o impelia sempre para os caminhos indagadores mais felizes e mais fecundos. Nos assuntos históricos, a que se votou com especial prazer e aptidão, era em verdade formidável, pelo saber, pelo raciocínio, pelo comentário, pelo método. A sua acuidade crítica era perscrutante e fina, enraizada numa inteligência poderosa e numa cultura múltipla, e aí topava João da Rocha um dos fatores mais salientes do esplendor das suas observações e dos seus juízos em todas as esferas do pensamento e do sentimento.

E, como se fora pouco somarem-se num só homem aspectos assim vários e deslumbrantes, ainda na sua auréola de cientista e literato reluzem os dons de jornalista como poucos, de professor como poucos, e, sobre isso, de orador de amplos voos eloquentes, o que é raro, e de substanciais ideias inspiradas, o que é raríssimo.

João da Rocha morreu. E com ele morreu uma das cerebrações mais complexas e mais completas que se podem sonhar!

Há em João da Rocha, porém, mais uma faceta, diamantina pela fulgência e pela pureza: a de homem de bem.

Se foi homem de ciência e homem de letras, que oscilou entre geniais trabalhos sobre magnetismo e harmoniosas espumas da arte mais levemente ideal, João da Rocha foi ainda um homem de bem. Foi-o em honra e em coração, — que João da Rocha foi um herói de bondade. Não soube nunca zangar-se, não soube nunca ralhar. A mais espontânea e meiga abnegação lhe impregnava a alma, fibra a fibra. E se a sua inteligência e a sua sabedoria passaram ignoradas, a sua magnanimidade passou incompreendida. Nestes ruins tempos de egoísmo, de inveja, de baixeza, de rancor, de animalez, em que, se Jesus à terra voltasse, de novo seria crucificado mas com redobrada fúria e inaudito escândalo, — a religiosidade afável e amorosa de João da Rocha pairava muito alto, fora da percepção grosseira do comum dos homens.

No seu espírito inebriado de arte, engastava-se a mais rara joia da beleza moral, a joia divina do sacrifício. João da Rocha, realizando o ensinamento do apólogo bíblico das árvores, foi um perpétuo sacrificado aos interesses alheios. Sacrificou-lhes o seu bem-estar, a sua atividade, o seu dinheiro, a sua saúde, a sua vida e, acima de tudo, a glíria do seu nome.

João da Rocha, que podia ser Maior do que foi, se à sua individualidade tivesse dedicado o seu trabalho de pensador e de esteta, dispersou-se, desperdiçou-se em canseiras extenuantes e anódinas, infrutíferas e apagadas, sacrificando-lhes muitíssimo da glória do seu nome, — o maior sacrifício que um artista pode fazer.

Sacrificou-se contente, eterno sonhador, eterno optimista, eterno poeta, dando assim um exemplo de homem perfeito, a caminhar numa senda que já não é deste mundo, mas que, por entre as estrelas, conduz até Deus...

Viveu pelo coração, — e pelo coração morreu...

Morreu?! Morreu João da Rocha?! Não será um pesadelo? Terá efetivamente morrido?

Morreu, morreu! Melhor que ninguém, dizem-no as árvores que da minha casa vejo, e que na manhã de hoje, amortalhada de chuva, soluçam pelo amigo que, entre elas, numa brilhante hora de sol, festivamente as cantou um dia... Soluçam — e choram. O vento, que sopra do cantochão da praia, faz-lhes tremer convulsamente os ramos nus, e deles caem, a luzir alvuras, lágrimas de tristeza, pérolas de saudade...

Eu ouço-as lá fora soluçar, vejo-as lá fora chorar...

Viana-do-Castelo, Aven. de Camões

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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