Deixei-te
há pouco, meu Amor! Separei-me há pouco de ti e desse teu jardim, sobrejacente
ao mar, perfumado belamente dos nossos melhores segredos. — Encostamo-nos, pela
vez última, ao rosal amigo que se debruça, todo nevado de rosas, para a penedia
escura onde farfalha a ourela das águas, — e dissemo-nos um adeus de lágrimas,
à toada chorosa das ondas...
Eu
trouxe comigo, entesouradas no coração amolecido por bárbaras saudades,
lembranças que me comovem a todo o instante. Trouxe a delicadeza quente das
tuas palavras de amor, o teu riso e a tua melancolia, a tua nobreza e o teu
carinho; trouxe nos meus olhos os teus olhares: olhares enternecidos de tristeza,
olhares cintilantes de alegria; trouxe nos meus lábios ansiosos o enigma
conturbador de sonhados beijos que te não dei...
E
vou emolhando, cismadoramente, as recordações que trouxe de ti, mimosas e
finas, como se delas fizesse um encantado ramo de flores de magia a que a minha
alma em todo o momento aspire o brando aroma confortante.
Ando
cego, perdidamente encandeado por este amor. Este amor transforma tudo que vejo
e penso. É uma luz de aurora deslumbrante que ilumina, com um brilho triunfal
que vem do Céu, toda a minha alma estonteada, e quanto a cerca, de longe, de perto,
de real e em sonho...
Eu
quisera, agora de ti apartado, na solidão destas montanhas, tristes como a
triste vida sem enganos, analisar friamente o que sinto. Quisera antever se, em
minha alma, perpetuamente arderá este rebatamento que a endoida, porque eu mais
que muito quisera que sempre, assim como hoje, com o mesmo frescor, o mesmo
entusiasmo, a mesma poesia, a mesma loucura, em meu peito viçasse o meu amor
por ti; que jamais em meu peito ele emurchecesse, como jamais, em terras do
Oriente, emurchece a sempre-viva cor azul nas formosas pétalas do agerato!
O
tempo...
O
tempo! O tempo esfolhará, é certo, ilusões de agora, mas há de trazer, também é
certo, ilusões novas. — Ilusões que tombam, como folhas de outono,
vagarosamente, e ilusões que nascem, subitamente, como as estrelas ao
anoitecer! Umas vão, outras veem... — Lembras-te, meu Amor, de quando
olhávamos, os dois, do teu jardim enflorescido, as ondas bailando no mar? Umas
se levantavam, num arremesso vitorioso, e logo abatiam desfazendo-se nos
recôncavos da água, já quando outras se alcantilavam... São assim as ilusões.
Umas veem, outras vão!...
Eu
quero acreditar que sempre e sempre deporei a minha alma na pureza da tua, como
se a depusesse na pureza de um altar, — de um altar do Céu onde o próprio Deus
se entronizasse. Sinto-me preso à tua perfeição moral, à tua sensibilidade
harmoniosa, ao teu devotamento altivamente submisso. A tua singela humildade é
que me domina, a tua meiga fraqueza é que me vence.
A
tua escravidão contente, fervorosa de felicidade, é a tirania fatal que me
escraviza a mim.
Já não digo
Que eu vivo no abandono e sou um
miserável
Aos tombos pela Vida...
Aos tombos pela Vida...
E
só tu, fada salvadora, — com o subtil condão da gentileza da tua alma
apaixonada, numa intuição de gênio —, na minha alma desigual e triste,
vagabunda e louca, soubeste, namoradamente, encontrar o perfume bom...
Que
eu não vivia, não, Mulher se tu não fosses.
E
poderá esmorecer um amor assim? Não hei de eu viver sempre numa sujeição
dominadora, aos pés da minha Escrava, extaticamente, como na sublime Adoração de Sinding?
Pois
havia de o meu amor descer do além-humano, onde voeja entre as estrelas, tão próximo
de Deus e tão longe, tão longe do mundo!?
Ah!
não quero.
Não
quero?!! Mas que vale o querer? A vontade não doma nem inspira o pensamento,
não sobressalta a imaginação, não poetiza a alma: não inflama arroubos e
devaneios, não vibra comoções, não escandece o amor. A vontade! A vontade
trago-a, inabalável e feliz agora, à mercê do tumultuar da alma revolta pela
paixão, — mas é nesse tumultuar ardente que ela encontra o estímulo para se
constituir e fortalecer em direção a ti.
Ah!
que jamais então abrande esse estímulo sagrado que jorra da minha sensibilidade
e se derrama, doce e triunfante, por todo o meu ser, enlourando-me a vida! que
nunca uma sombra de tédio ou cansaço venha enoitecer este nosso amor! que ele
nem sequer roce jamais o gelado alento do acume das realidades satisfeitas, e
que ele seja sempre um alvorejar de visões ideais, embrumadas deliciosamente de
mistério! Esta rosada névoa que me esfuma adoravelmente o futuro, que ela
exista sempre, sempre, porque sempre e sempre então, na minha alma insaciada,
com alor igual viverá a ansiedade pelo ignorado, eterna fonte de insofrido amor
contente!
Eu
quero na vida caminhar, enfebrecido em sonhos, com os olhos postos no
Inalcançável, — como um poeta caminheiro, toda a vida a percorrer visionário labirinto de balada,
fascinado por uma indecisa Terra-da-Promissão, que de largo o atrai,
misteriosamente.
Eu
quero em mim, para sempre, esta fantasiosa Insatisfação que me atormenta e me delicia;
quero em minha vida este crepúsculo auroreal a sorrir eternamente uma promessa
vaga: esta bruma incerta que me envolve a alma fulvidamente, enflorando-me de
inquieta esperança o trabalho, o esforço, o delirante devanear que me aferventa
o cérebro.
Eu
quero trazer em mim, inalterável e sempre, esta alvorada de amor que me vem da
luz da tua alma!...
Viana-do-Castelo, mês das flores, 1916.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba
Mendes (2019)
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