O ladrão escondia-se.
Perseguiam-no, fugira, andara, e nessa noite, com um pedaço de pão metido entre
o seio e a camisa rota, fora dar ao cais. O céu estava negro e o rio negro
corria como lava. A água à noite assusta; fala, atrai, e a sua frialdade tem
qualquer coisa de cova. O rumor das águas lembra um ruído de vozes a concertar
baixinho coisas presagas.
Estava uma noite de
silêncio úmido e abafado. Brilhava uma luzinha ao largo e ouvia-se a ressaca
subir nas pedras, entrar nas cavidades puídas do cais. E era no ermo o único
ruído, aquela respiração estrangulada, apressada, um marulhar humano e trágico
na noite funda, silenciosa e opaca.
O Morto aconchegou ao seio
o pedaço de pão – o seu jantar – e teve um ah! de alívio. Ali ninguém o
procuraria, era como se estivesse sepultado no fundo do rio. Havia quase dois
dias que não
comia e ia enfim dar a
primeira dentada no pedaço de pão. Tinha os joelhos doridos e sentia uma
lassidão enorme. Ao sentar-se topou num corpo caído, abandonado. Num
sobressalto, de pé, com o pão, a que ia dar uma dentada, na mão, perguntou:
– Quem está aí?
– Ouh!
As suas mãos ao tatear
deram com uma rapariguinha inerte. A saia estava encharcada e frios os pés.
– Estará morta.
E sossegado tornou a
sentar-se para comer o pão. Mas sentiu-a mexer-se.
– Outra desgraçada... –
cismou. – Quem está aí? E, saindo da treva, uma voz de criança começou:
– Sou eu.
– Tu quem és?
– Não sou ninguém.
– Que estás aqui a fazer?
– Não estou a fazer nada.
– Tu que queres, então?
– Vim deitar-me ao rio.
– Ah!...
– Mas tive medo. A água do
rio sempre é mais fria do que a morte.
A treva espessa em torno e
o mesmo ruído da ressaca, a pregar. As nuvens baixas envolviam-nos num fluido
negro, ambos tragados pelo deserto da noite. Não se viam e aquelas duas vozes,
uma infantil e baixinha, a outra rouca, eram como o diálogo de duas forças
ignotas, que o acaso rola no mesmo turbilhão do infinito.
Perguntou-lhe o Morto:
– Como te chamas?
– Chamo-me Luísa.
– Quem te fez mal?
– Ninguém. Estou grávida.
– Ah!...
– Estou grávida. Eu não
sabia nada. Estou grávida, acabou-se. Por que é que não ensinam à gente que
todos nos querem fazer mal? Uma pessoa devia aprender.
– O quê?
– A ser desgraçada. Há dois
dias que não como. Tenho andado por aí. Botaram-me fora, empurraram-me e eu
ando por aí a chorar.
– Vai pra a tua casa.
– Eu sou do Asilo, não
tenho ninguém, nem mãe, nem nada.
– Enganaram-te?
– A mim não, ninguém me
enganou. Eu não sabia nada. Quando vim do asilo não sabia nada. Um dia apareci
grávida e puseram-me fora. Ninguém me quer assim. Quando a gente está grávida
que há de fazer? A gente não tem culpa...
– Não fizesses o filho.
– Eu era uma inocente.
– Ah! – E o ladrão riu-se.
– Não sabia nada, juro-lhe
pela minha salvação.
– E então?
– Deitaram-me fora do asilo
e fui servir. O patrão foi quem me
logrou.
É sempre o mesmo caso banal
e trágico. Se o homem encontra uma pobre criatura
desprotegida e ao desamparo, ilude-a e explora-a. Saída do asilo com uma trouxa
debaixo do braço e o discurso do senhor provedor, foi servir. Logo que o patrão
viu aquela rapariguinha ao abandono na terra, pôs-se a falar-lhe baixo, às
escondidas.
– Era como se me pisassem o
coração...
Ela ouviu e depois com um
sorriso triste, em que mostrava os dentes agudos de esfaimada, ficava muitas
horas cismática e a falar sozinha. Abandonava-lhe o pobre corpo macerado,
cheirando a enfermaria, já vindo à terra com este destino amargo – ser
explorada. Ele deixou-a logo e ela continuou a servi-los, com o mesmo sorriso,
mais descorada e triste. Um dia acordou grávida e patroa pô-la na rua.
Remexeu-lhe a trouxa e gritou:
– O que tu merecias era ir
para a polícia.
Com um filho na barriga e a
trouxa debaixo do braço pôs-se a andar pelas portas, despedida das casas logo
que lhe viam o ventre, até que foi dar o rio pregava e o ladrão ria.
Calou-se. Só se ouvia o
chapinhar da maré. Só o rio pregava e o ladrão ria.
Uma luzinha, que brilhava
ao largo deixando na água um fio de ouro trêmulo, de todo se sumira. Então o
Morto, no silêncio e no negrume, começou:
– Tu que imaginas que é
isto?
– Isto quê, senhor?
– A vida. Todos querem mas
é enganar. Os ricos fazem mal aos pobres, os pobres roubam os ricos. Todos querem fazer chorar os mais.
– Todos?
– Todos. Eu mesmo posso-te
agora matar, posso-te fazer o mal que quiser. Não grites, que é pior. Ninguém
te acode.
– Eu não grito.
Deitou-lhe as mãos enormes
e frias puxou-a para si para a olhar no escuro:
– A tua mãe botou-te fora, para
não te criar, o teu patrão enganou-te. Tu que imaginas? E que podias fazer
senão deixá-lo enganar-te? Que hás de fazer? Hão de enganar-te sempre e só te
não desamparará...
– Quem? – perguntou
ansiosa.
– A fome. Hás de andar por
aí até caíres de velha, aos pontapés e às voltas com a desgraça.
Agora vais ser minha... A
desgraça é que pode tudo, ninguém no mundo tem mais força. Se tiveres fome, hão
de se rir de ti e dar-te terra a comer.
– Ó senhor! senhor! Mas
então para que me criaram no asilo? Era melhor terem-me deixado morrer. Eu não
faço mal a ninguém. Que hei de fazer? Tenho esta camisa que trago no corpo. Uma
saia empenhei-a. Há dois dias que não como.
– Mata-te. Para que vieste
tu ao rio?
– Para me afogar... Mas
tenho um medo à água!...
Quando meti os pés no rio
tão negro, fugi...
Apertou-a nas grandes mãos,
mas ela nem sequer gritou. Era uma coisa já sem forças, abandonada, que chegara a compreender que seria sempre a presa do mais forte.
O ladrão ria. E ela só gemeu:
– Ó minha mãezinha!...
E tombou para o lado.
O Morto palpou-a. Estava
encharcada, todo o pobre corpo, ainda por criar, enregelado e transido.
– Tu que tens?
– Nada. Fome.
– Toma lá.
E o ladrão deu-lhe todo o
pão que trazia.
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Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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