7/02/2019

Filosofia do Gabiru III (Conto), de Raul Brandão



Filosofia do Gabiru III

Em todo o caso, se a imoralidade existe, deve ser bem diferente de tudo o que se tem sonhado.

Ser despedaçado, oprimido, calcado, torna quase sempre o homem grande, porque abala e acorda vozes adormecidas.

Compreendo o materialista sincero, o idealista sincero. Num predomina a nuvem, no outro a terra. Tudo o que é verdadeiro, arraigado e fundo, é belo – até o crime.

Não importa saber donde nasceu a ideia da imortalidade, o que importa é saber se a imortalidade existe. Todos a sentem, até os mais materialistas, todos sabem que ela brilha no fundo do nosso ser. Podem-na abalar, abafar, com teorias, palavras, explicações mesquinhas, o que não podem é arrancá-la. É como certas árvores que, deitadas abaixo, deixam sempre profundas e inabaláveis raízes no solo. Para as extinguir seria necessário tornar estéril a terra.

Cada homem trá-la consigo como uma certeza ou como uma aspiração... Ela remexe sob todas as cinzas.

– Mas que imortalidade?

Tomo tudo a sério, até as coisas sem importância – outra razão para ser desgraçado.

E quando é que eu cumpro o meu destino? – dirás. Interroga-te.

Se as árvores não fossem necessárias, existiriam árvores? Se os criminosos não fossem necessários, existiriam porventura criminosos?

A educação que nos dão, o melhor que há a fazer é esquecê-la. E esquece-se porque ela nada tem com a vida, é uma coisa à parte. A que adquirimos à custa de nervos, de sangue, de suor, a que se aprende na peleja, essa acompanha-nos até ao túmulo. É a verdadeira.

O homem procura sempre uma filosofia onde caiba o seu temperamento, os seus erros – e até os seus crimes. Se não existe, inventa-a.

Acho que, ao contrário do que se diz, não sou amigo de ninguém senão nos primeiros tempos. A princípio os ângulos não aparecem ou disfarçam-se.

Depois começamos a ser duros.

Creio que só há amigos até aos vinte anos, quando ainda se não pensa na vida. Depois endurece-se. Raros são os homens que através da vida a sério e dos interesses conservam ainda amigos.

Para ficarmos amigos, tenho ou de me submeter ou de te submeter.

Não, a morte não destrói a essência da vida, mas, desorganizando uma forma, destrói a consciência dessa forma, que é formada de milhares de consciências...

A ação do que se chama espírito sobre a minha matéria produz o meu eu, com os seus erros, sonhos, desesperos, ódios. A mesma força, tira harmonias diferentes duma arpa ou dum órgão. O que resta, pois? A essência da vida?

A predominância de certas moléculas produz o sonhador; a predominância de outras o herói, etc... Eis a futura química.

Não se trata de ser feliz ou desgraçado, mas de se cumprir o destino para que se nasceu.

Que ideia tão falsa a de se supor que a vida tem um fim – a felicidade ou a desgraça! Não é isto subordinar o universo ao homem?

Se a vida tem um fim – é viver. Viver, deixar que cumpramos o fim para que fomos nascidos. Isto é lógico, inevitável, maior, decerto, do que o que supomos, mais belo, mas cedo ainda para se entrever.

O homem é uma fonte onde a vida corre límpida ou turva, num fio que a emoção torna de ouro num jato negro de cólera. Eu ouço assim correr a minha existência...

Um dia a fonte seca-se.

A terra há de sempre criar os seus tipos, quer os homens queiram quer não. O homem não é senão a essência do universo e nasce para que tudo tenha boca. Podemos tentar abafar isto, por diques, retardar a torrente, mas um dia o largo rio da vida e do destino irrompe.

Não, não é justo que a gente morra de súbito sem protesto, sem palavras, sem gritos, com os seus erros, as suas ambições, os seus sonhos... Abre-se de repente uma cova... Não se pensa mais, não se vê, não se ouve... E o que custa não é deixar pessoas queridas, nem hábitos – é não viver. Morrer quando a vida continua da mesma forma harmônica e impassível – eis o horror.

Nenhum outro homem no universo existe real-mente para o homem; nenhuma outra vida senão a sua vida.

Ao chegar dos trinta anos abandonam-se os amigos. Se alguns restam é por hábito ou por interesse: é por cálculo. Se queres continuar a amar os outros, afasta-te, torna-te solitário. Ou deixas de ser sincero e passas a morar com a mentira. A peleja começou: é preciso arredar, vencer – e cada um nessa idade é o que é. Já se não amolda: é um ferro desembainhado, saído da forja; tem já os seus hábitos, vaidade, mentiras. Tudo o que estava apenas esboçado endureceu; é de pedra.

De forma que se quiseres viver com os outros tens de representar.

Os que têm uma forte individualidade arredam-se, porque nunca podem agradar. O triunfo pertence não aos mais fortes, nem aos mais inteligentes, mas aos que, sem pessoalidade, podem ser todo o mundo...

Ser parecido lisonjeia: daí, tens de afivelar uma máscara igual à do homem que precisas conquistar.

Sim, a vida é uma tragédia esplêndida, com todos os seus crimes, sonhos, ódios. Falam em nos as montanhas, as árvores, as nuvens, e fala até, num murmúrio, o que é ainda desconhecido.

Que é preciso para que cada um se encontre? Que é preciso para que as árvores abaladas se carreguem de flor? A Primavera – a dor.

Tu és a mãe, terra; tu a fecundaste, dor, e até nós veio como o murmúrio apagado dos teus gritos.

Amo-te nos bichos, no sol, na luz, nas pedras; na terra onde mergulho as mãos até as enegrecer, na água que mas banha; no ar que respiro; no sonho; na morte; na desgraça; no que é humilde ou grande, não importa.

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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