7/16/2019

Maria Julieta (Conto), de Cláudio Basto



Maria Julieta

— Que me importa que tenhas dado o coração?

Eu amo o teu olhar ingenuamente escuro: a viveza desses olhos lindos que nos meus se prendem. Eu amo o encanto dos teus lábios, vermelhos como sangue, de mobilidade inefável. Eu amo a cor do teu rosto, níveo como a poeira das ondas. Eu amo a tua alegria, a tua desenvoltura, a tua gentileza, — ó loira figurinha mimosa!

Eu amo a graça do teu corpo, esbelto e artístico; eu amo a tua cabeça de criança onde brilham como estrelas dois brincos pequeninhos...

— Que me importa que tenhas dado o coração?

Demora-te sob os meus olhos, nunca fartos de te ver! Dá-me a luz dos olhos teus, desfaze a boca em sorrisos, — brinca, brinca... Pudera eu sonhar continuamente com a tua graça, despreocupada e simples!

Quisera cantar a teu lado a Verdade e o Bem, o Amor e a Beleza, para acordar teu pensamento, para comover teu coração: quisera abalar a tua alma ainda moça, para que ela, por si, por trabalho seu ora brando ora violento, voasse, voasse cheia de luz — e pudesse ir ao encontro de outra alma irmã da tua e nela se confundisse amoravelmente, como na macieza das rosas se confundem duas lágrimas de orvalho que se encontram...

— Que me importa que tenhas dado o coração?

Pudesse eu no teu corpo delicado criar uma alma livre e bela, — sem tenção egoísta de a lograr!

Eu quero a tua felicidade, eu quero que a tua alma, divinizada pela Dor, encontre uma alma divina.

Felicidade é o ver chorar ess’outra alma a quem adoramos, quando a nossa própria chora. Viver é sentir, e sentir é sofrer. A Dor é a coroa da Vida. Quem mais sofre é quem mais vive. Feliz do que sabe sofrer — quando a sua alma tem par!

— Que me importa que tenhas dado o coração, — se porventura o deste bem?

Eu só quero sonhar, — e o que te admiro a mais ninguém pertence. A suavidade do teu olhar, como eu a sinto ninguém mais a sente. A expressão da tua boca, só eu a contemplo como eu a adoro. Da arte do teu corpo leve, só eu amo a impressão que me provoca.

Na água, sossegada e pura, claramente quieta, ou na água jaspeada pela aragem mansa, — a luz, ao sol morrer, transforma-se, poetiza-se, espiritualiza-se, e cada qual ali sente a grandiosidade da Natureza; mas não são iguais os aspectos a todos os olhares: o que certos olhos alcançam, outros o nem sonham talvez.

E a suavidade do teu olhar, a expressão da tua boca, a arte do teu corpo, tais como eu as vejo, são minhas, só minhas. E eu não desejo mais nada para mim.

Guarda o coração. Sabe guardá-lo. Aquela ventura me basta.

Não tires, pois, ó loira figurinha mimosa, de meus olhos d’alma o estímulo delicioso da minha ventura!

Deixa-me sonhar. Deixa-me sentir a Natureza, grande, eterna, infinita, no teu melindre, na tua graciosa delicadeza!

Porto, março de 1911.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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