7/09/2019

O Homem do Cancro (Conto), de Raul Brandão



O Homem do Cancro
(A Alberto Bramão)

Lembrava-se mal dos primeiros dias de hospital. Confundia as alucinações terríveis da febre: carrancas, esgares medonhos, com a realidade triste: o senhor enfermeiro, um brutal, arrastando a perna, piteiro sempre, atrás da maca.

— Aí no vinte, rapazes!...

Aos rasgões via a enfermaria, as camas alinhadas, de cobertas de ramagens escuras; a noite — lampiões luzindo tristemente, quando redobram os gemidos, maldições, aquela gente com medo de morrer longe dos seus — principalmente uma criança chamando pela mãe, numa ânsia terrível.

Ele tinha pena também, e depois com a noite a febre voltava-lhe, tristezas grandes, alguém que morria, torcendo-se, aos uivos, lutando com a morte, para não ficar ali no hospital medonho, com a autópsia em seguida, a cova triste, um farrapo de lençol com manchas de sangue ... E o doente do vinte e um, a cama junto à dele, dizia obscenidades, rindo escárnico, roído por um cancro na face, medonhamente inchada.

— Mais um! Mais um! Lá vai aquele adiante de mim!...

Era terrível aquele homem, Odiava os que iam passando melhor, com alguma esperança já, e tendo a morte certa, e sabendo-o desiludia os mais, cheio de podridão, a cara roída, roída a alma. Dizia rindo, com uma alegria muito grande ao ver os outros empalidecer:

— Tenho visto muitos assim! Vão melhorando e de repente... zás...

E descrevia-lhes miudamente, com um regalo intenso, a casa das autópsias: os estudantes

cortando carne, atirando com desplante bocados uns aos outros, esburacando nos cadáveres...

— Que aquilo são uns malandros!...

De maneira que o temia — e já, na alucinação da febre, o doente do vinte e um lhe aparecera, dizendo dele:

Lá vai mais um! Lá vai aquele! — rindo, os olhos cheios de contentamento, com vontade de que os outros morressem primeiro, prenhe de inveja, sabendo que todos tinham nojo dele, que era repugnante, podre assim...

Pouco e pouco, porém, foi melhorando. Sentava-se na cama já, muito pálido, sem força ainda — e o médico dissera:

— Vá que você escapou de boa!...

Um dia, da aldeia apareceu-lhe a mãe — uma velhinha antiga, miudinha, muito lavada, os olhos azuis. E rindo mostrou-lhe maçãs que trazia escondidas debaixo do avental — malapios do quintal, da velha macieira, muito vermelhos.

“Ai o seu filho não imaginava como o pomar estava lindo, cheio de fruta, carregadinho, assim!... Era preciso enrijar. Querendo Deus havia de se pôr bom depressa...Depois ia até lá, passeava... Veria...”

Ele, contente, mais saudável até, o olhar luzindo, pensava nos seus, via o quintal, amava a sua casa cheio de ternura como se fosse uma pessoa: lembrava-se das árvores, da laranjeira antiga...

E a mãe papagueava-lhe dando-lhe as maçãs de presente, ajeitando-lhe a roupa, risonha, trabalhadeira — querendo ver tudo em ordem.

— Ora, meu filho!

Depois uma enfermeira passou, e a velhinha reconhecendo nela a filha da Maria da Tenda, da sua aldeia, correu, os braços abertos, radiante — e houve um contentamento, risadas — a rapariga, satisfeita por a velha lhe falar nos seus, prometendo olhar pelo doente...

— Ora a Maria! Como estás bonita, rapariga! Benza-te Deus!...

E na cama o homem do cancro espreitava mordido pela inveja — sem ninguém que dele cuidasse — odiando-os a todos...

Ai, pois todos, todos os doentes tinham quem os visitasse, mulher perdida ou mãe, que viesse um dia na semana amá-los, trazendo uma fora fruta, carícias, enchendo à quinta-feira de alegria, de cheiro a roupa lavada, a enfermaria, o hospital inteiro — e só ele...

E toda a vida fora assim — assim sempre, sempre... todos tinham nojo dele, a cara aberta de pachos em sangue, com nódoas lívidas de podridão e de matéria, sem nariz, medonho e terrível. E de cada vez o mal avançava mais, hediondo, hediondo... e ele sentia na alma violentamente um desejo grande de amar alguém. Sem lábios já, tinha vontade de dar beijos ainda...

De manhã procurava nos mercados, no Anjo — nascia o dia — pedaços de fruta apodrecida, mexendo com o pau, curvado, nojento, a babar-se, podre — Jesus!...

E pouco e pouco a alegria ia entrando no mercado. Era uma tela de artista genial e forte, sem preocupações. Montões de repolhos amarelos, cenouras, rábanos, todas as cores rompendo em contraste, amontoadas, aos murros. Em cima das bancas as couves dum verde escuro, exalando frescuras, regadas, pingando... Do outro lado, nas barracas, laranjas, canastras de maçãs, de frutas... O sol que nascia dourava a folhagem das grandes árvores e o saque àquela abundância começava. As regateiras, braços nus, fortes, manga arregaçada, discutiam. Uma flecha de sol dourada atravessava as folhas, e caindo sobre os legumes, sobre os frutos, aviventava as cores um instante... E era uma balbúrdia, uma alegria esfuziando no céu... Ele então, repelido, desaparecia. Chegada a noite vadiava pela cidade, rente às muralhas, escondendo-se na escuridão das vielas, em antros repelentes que só ele conhecia — e na alma raivava-lhe sempre uma sede grande de amor, uma ânsia infinita que nunca acalmava, em revolta sempre. E até as rameiras nojentas, vadiando na cidade à noite, sem fim, como cadelas com fome, fugiam dele! Sem ninguém que o amasse, bom Deus! E só uma noite — uma noite de chuva — uma barregã nojenta o quisera. Não tinha pálpebras ela, a miserável, roída de sífilis, um montão de andrajos, a podridão ambulante. Para se aquecerem, ela morrendo de fome, ambos morrendo de frio, juntaram-se no escuro — e foi o noivado da podridão. Ao outro dia ela morreu — e ele foi vadiando, quase feliz, quase contente.

E mais e mais nojento — terrível...

Pouco e pouco, escorraçado, sem a piedade de ninguém, toda a gente com nojo dele, odiou o mundo inteiro; afez-se lentamente a alegrar-se com a desgraça dos outros e tinha o desejo ardente de que a humanidade inteira apodrecesse mais depressa que ele — que todos morressem primeiro. De uma vez correra, cheio de raiva, atrás duma criança, procurando beijá-la para lhe comunicar a podridão que o enchia...

Quando a mãe lhe disse adeus o doente do vinte ficou cheio de resignação, o pensamento nos seus, as maçãs escondidas debaixo do travesseiro — e o outro espreitando odiava-o, odiava-o mais ainda — porque ele tinha saúde, e porque ele tinha mãe. E como o rapaz lhe oferecesse uma maçã, comeu metade — e queria que ele comesse o restante, sabendo bem que o outro não aceitaria porque tinha nojo dele — unicamente para o ver embaraçado.

— Coma, coma! Instava.

O rapaz cheio de repugnância não quis, fazendo um gesto de nojo e ele então comeu a maçã inteira.

Pouco e pouco a enfermeira começou a gostar do doente. Falavam da terra, dos seus — e juntos passavam ali na enfermaria dias inteiros amando-se...


E ele sentia ao ver os dois juntos, ela rindo, cheia de cuidados, afável e linda, um ódio imenso, uma raiva espumante, sem fim, rebentar-lhe na alma. E os dias todos, tardes inteiras, os ficava espiando, espiando... E ele morria. Como todos o odiavam, o enfermeiro havia dito contente, arrastando a perna, ao passar por ele:

— Anda malandro, esta noite, zut! E foi cantando:

O ladrão do negro melro
Toda a noite assobiou...

E um rapazola para outro doente:

— Que raio de piteira hoje, hein!...

A Morte! Era ela! Morrer, bom Deus! Morrer sem ter tido no mundo um dia de felicidade, alguém que o amasse, mulher que o beijasse fundamente, com amor, na boca! Morrer! morrer! quando o do vinte renascia para a vida, falando em casamento à enfermeira, tão linda, linda! E sentiu-se nojento naquele instante: — tendo-lhe estalado um olho, a face descarnada já, o peito também, não podendo falar desde o dia antecedente, a rouquejar — horrível, horrível — vivo ainda e sentindo já os bichos roerem-no, passearem-lhe lentamente na fronte! Morrer! morrer! Não queria! não queria! E torceu-se na cama numa angústia enorme, rugindo! Não! Não! Babujou. Mas caiu sem forças e então pediu... Bom Deus! O bom Deus bem sabia! Por piedade! Nunca ele tivera como os outros mãe que o acariciasse — alguém que lhe dissesse no mundo uma palavra amiga, cheia de bondade. E ele não pedia muito, não!... Um dia só de felicidade! Um momento — Jesus! Só um instante, alguém que o acariciasse — alguém que lhe desse um beijo na boca, um só— Senhor!...

A noite descia; a noite avançou terrível, medonha naquele hospital. Gemidos redobraram e doutras enfermarias vinha de quando em quando um grito — alguém que morria talvez... Dos Lampiões caía uma luz ensanguentada, e nas paredes a sombra das cordas que os suspendiam desenhava-se em arranhões tremulando... As camas, àquela luz vermelha e má, enfileiravam-se tristemente, e os doentes gemiam... Na do trinta — um pedreiro — à morte viam-se os lençóis sacudidos numa respiração ofegante, num arquejar cheio de angústia e àquela hora, acordados ainda, os doentes lembravam-se dos seus — das suas mães, das suas casas, da aldeia, do sol, de lá de fora... — Meu Deus! Meu Deus! Era a hora terrível, a hora angustiosa em que se tem medo de ficar ali, em que a febre aumenta, em que as alucinações começam, as súplicas do Senhor, os gemidos, os gritos do fundo da alma... Para ele aquela noite era a última, a última! Sentia-o! sentia a morte!

E o seu único olho raiado de vermelho, luzindo na cara apodrecida e negra, olhava fixo, odiendo e triste — cheio de tristeza pelas alegrias que nunca tivera — cheio dum ódio intenso por todos aqueles que as sentiam... Um pensamento dominava-o agora: — ia morrer e os outros  — o do vinte — não morriam também! E o ódio foi tão grande nele que se sentou na cama — o olho vermelho luzindo, luzindo...

Mas teve de se deitar outra vez: a enfermeira vinha ainda ajeitar a cama do vinte — e ele ouviu, ouviu bem, ela dizer alegre:

— Durma bem, vá! Amanhã tem alta!...

Ai, para aquele havia amanhã ainda, alta, saúde, o casamento e ele... Oh, Deus! Oh Senhor, Senhor!... por piedade, bom Deus! Que bandalhos!... deitou as pernas fora da cama num impulso, mas agachou-se ainda: alguém passava devagarinho, sem barulho... E ele não podia! Já não podia! Sentia-se morrer. Mas era ali — vá.... Gemidos redobraram e ouviu-se bem um grito noutra enfermaria — um grito onde a angústia era tanta, tanta, que ele mesmo o sentiu!... Vá!

— Que é? Disse o do vinte surpreendido.

Mas não teve tempo de gritar. O outro numa raiva infindável, louco, caiu sobre ele, cheio de força, apertando-lhe o pescoço entre as mãos, beijando-o, esfregando-lhe a cara pela dele com força, a ponto de pedaços podres de carne caírem...


Ao outro dia encontraram-nos mortos ambos, ambos juntos. E o enfermeiro, arrastando a perna, chamado à pressa, piteiro já, berrou:

— Ora já viram um filho da puta assim! Que canalha!

E foi dar parte, cantando:

O ladrão do negro melro
Toda a noite assobiou...

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Raul Germano Brandão (1867-1930)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)

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