7/09/2019

Os pêssegos (Conto), de Raul Brandão



Os pêssegos
(Ao Senhor Joaquim de Araújo)

Ai a gente que o doutor tinha naquele dia a jantar!... Primeiro a fidalga de Arnozela, gorda, cinquenta anos, cor de maçã camoesa, largas risadas cantantes; depois o abade — o diabo do abade! — comilão insaciável, um bucho que eu sei lá!... — e que já lhe tinha dito na véspera:

— Ora eu sempre quero ver esse jantar!...

E ainda, com a mãe — a morgadinha dos Trigais, tão fresca, tão boa rapariga, tão amiga dele!...

Por isso o doutor dizia à criada:

— Ai Gertrudinhas, eu quero isto como um brinco! Como um brinco, filha! O que mais o afligia, porém, eram os pêssegos...

— Ora, como o diabo hei de eu arranjar isto, não fazem favor de me dizer?...

Três frutos magníficos aqueles! Três pêssegos enormes, alourados, penugentos!...

A árvore nascia ao meio do quintal, entre couves galegas de folhas verdes, rendilhadas, e duma margem de hortelã pimenta, cortada por um fiozinho de água, que saía do tanque e atravessava a horta, embalando-a com mil murmúrios. Na primavera tinham-lhe nascido três florinhas delicadas, duma cor de rosa muito esbatida e imediatamente o doutor a rodeara de cuidados, cavando a terra em redor, matando sem piedade o besouro mais inocente que se atrevesse a passear naquele sítio, aquecendo-se ao sol do bom Deus.

Que eu nunca vi velhote mais contente! Uma alegria santa esfuziando em risadas; bebendo sempre pingas dum vinho velho que possuía arrecadado no fundo da adega.

Setenta anos saudáveis e alegres. Gostava de contar histórias galantes...

O Outono corria lindo. Os dias amanheciam azuis, límpidos, serenos, aquecidos por um sol temperado que amadurecia lentamente a fruta pelas árvores — e o doutor espreitava a todos os momentos a fruteira, olhava com admiração os pêssegos enormes, magníficos que a luz trespassando-os fazia de um ouro soberbo...

À noite, depois da regalada ceia, enfiava-se na cama, satisfeito com a frescura do linho dos seus lençóis, apagava a luz, atabafava-se bem e punha-se a discutir com a sua própria pessoa, para conciliar o sono, o caso grave e interessante de se deveria ou não convidar para o jantar em que se comeriam os pêssegos o seu excelente amigo abade de Arnozela.

— Nada! E se ele come a fruta toda?

E revolvia-se na cama aflito com aquela lembrança. Mas logo se recordava com alegria das excelentes histórias e chalaças que o seu amigo para o regalo de ambos tinha por costume contar à sobremesa.

— É o diabo aquele homem! É o diabo!

E ria-se com vontade à simples recordação daquelas pilhérias tão ricas, daqueles casos galantes sobre que versavam de ordinário as palestras do jantar.

— Mas se o homem come os pêssegos? Com um bucho como o dele!... — perguntava bocejando, com o sono um bocadinho espertado.

— Amanhã resolverei.

Mas os pêssegos é que não podiam esperar muito: iam dia para dia amadurecendo mais; tornavam-se alourados, enormes, e as manchas vermelhas pareciam à luz do sol três grandes nódoas de sangue.

— E amanhã! Convido o abade, ponho dois pêssegos na mesa para que ele não possa comer senão um, e o terceiro guardo-o para mim só.

E exclamava, olhando os frutos já maduros, excelentes, parecendo prestes a rebentar muito cheios de sumo.

— Que ricos!

A cozinha tinha um aspecto alegre e confortável com a sua grande chaminé onde se defumavam os paios do Alentejo e os presuntos saborosos, e fazia gosto ver a ordem, a simetria, o modo porque a Gertrudes dependurava os grandes tachos de cobre reluzente, dispunha as caçoilas vidradas, e encastelava a um canto as assadeiras enormes, a contrastarem com a verdura dos louros.

Naquele dia, porém, tudo estava fora dos seus lugares, e a velhota, inquieta, formigando, ralhava com a criada, provava o arroz muito lourinho e levemente tostado por cima, dispunha ao redor do lombo de porco pequeninas rodelas de limão, enfeitava com ramos de salsa a carne ensanguentada.

— Saia daqui, criatura! A cozinha fez-se para as mulheres!

E empurrava familiarmente o doutor que provava como entendido um molho já preparado.

Bom, bom... Eu vou até o quintal.... Olhe: dê cá esse prato de louça da Índia para trazer os pêssegos.

E ia a sair contente quando a criada lhe perguntou:

 Já sabe que vieram uns noivos passar uns dias à aldeia?... Estão em casa da D. Genoveva.

 Uns noivos! Olá!...

E, assaltado de repente por uma ideia brejeira, foi pulando às risadas pelo quintal adiante.

— Uns noivos!... Ih! Ih!...

O dia estava lindíssimo: perfumado pelas flores silvestres, dourado pelo sol que punha cintilações de cobre antigo na folhagem verde das árvores; num campo fronteiro duas vacas pastavam pachorrentas, e o quintal, com o pomar cuidadosamente tratado e a água brilhando como um espelho ao sol, tinha um aspecto encantador.

— Devem estar bons! Murmurou.

E seguiu pensando na beleza, no tamanho, no aroma daqueles frutos sem igual.

— Até apetece comê-los!

Abriu a navalha e dirigiu-se radiante para a árvore, com um sorriso de satisfação nos lábios vermelhos.

— Vamos a isto!

Mas de repente estacou, a fisionomia transtornada, deixou cair o prato de finíssima louça, agitou os braços num desespero, e estendeu o punho, exclamando num rugido.

— Ladrões!

Nem um! Nem um só dos pêssegos restava na árvore.

Caíram-lhe silenciosas as lágrimas pelas faces afogueadas, e, aos soluços, aos soluços, deixou-se cair sobre um banco de pedra que ali havia.

“Tinha-lhes dedicado todos os seus cuidados, toda a sua ternura! Na Primavera, depois de lhe terem nascido as florinhas, quantas aflições não tivera por causa delas? Quantas vezes, altas horas da noite, não acordara estremunhado, julgando ouvir o estalejar da saraiva nas vidraças?... E para quê todo aquele trabalho, todos aqueles incômodos?...”

Mas uma risada fresca, vibrante, cristalina, soou do lado do campo.

As lágrimas secaram-se-lhe, levantou-se dum pulo, e vagarosamente, arrastando-se cheio de

precauções, aproximou-se da sebe de trepadeiras em flor, que serviam de divisão, e olhou...

— Os noivos!

Efetivamente, sentados na relva à sombra dum carvalho, os noivos acabavam de comer o último pêssego, e pelo chão rolavam ainda os caroços muito vermelhos, em sangue, da fruta que tinham roubado.

Então o doutor, cheio de despeito, desfazendo entre as mãos trêmulas as flores da trepadeira a que se encostava, berrou, pulando de raiva:

— Ladrões! Ladrões!

E, na janela da sala do jantar, o abade, que tinha chegado naquele momento, gritava, rindo às gargalhadas: Ó doutor! Ó malandro! Então vamos ou não vamos a esse jantar!

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Raul Germano Brandão (1867-1930)
Pesquisa: Iba Mendes (2019)

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