O
homem que comprou dinheiro empacotado
Numa tarde de temperatura que convida
a ver montras de lojas e relojoarias, caminha pacatamente pela calçada
ensombrada das ruas das imediações da Estação da Luz um homem nem alto nem
baixo, nem gordo nem magro.
O drama da vida que o circunda não
recebe apurados favores da sua atenção.
E o vulto lá vai, ora gingando sobre
as pernas, ora deslizando rijo, ora preguiçoso ao léu da sinfonia bárbara da
luta pela existência que redemoinha pelas ruas.
Tudo o encanta, porém, pouca coisa o
sugestiona.
Visto de longe, o vulto é um indivíduo
qualquer: examinado de perto, o fulano em questão é o senhor Tibúrcio
Malacacheta, proprietário de uma pequena roça na Mogiana, onde, há trinta anos,
devorado pelo trabalho, conseguiu, com o concurso da esposa e dois filhos xucros,
formar um pequeno cafezal.
Há quinze anos que está para vir à
capital e, há quinze anos que Tibúrcio faz prodígios de economias a fim de pôr
em prática a viagem tão longamente planejada.
Por fim veio à São Paulo, trazendo
cinco contos de réis dentro de um lenção vermelho, que ele guarda no bolso de
dentro do paletó, cuja saliência afaga continuamente no lado onde lhe bate o
coração.
Voltemos à tarde em que o
surpreendemos nas adjacências da Estação da Luz. Tibúrcio caminha ingenuamente,
enquanto que dois tipos bem apessoados, matreiros, acostumados a dissimular
intenções pouco honestas, o seguem em passinhos calculados.
Logo adiante, surge, como que de
imprevisto, a fatalidade, uma vitrina de joias baratas onde as pedras de várias
cores e tamanhos, de cambulhada com vários metais, brilham mentirosamente, procurando
esconder a sua falsidade, segundo o desejo dos proprietários da vitrina.
Até parece que a malfadada montra é
uma teia de aranha.
Tibúrcio, querendo satisfazer um velho
desejo de adquirir um presente para a sua consorte, aproxima-se e, olhando demoradamente,
fica pespegado como uma mosca nas ofuscações das pedrarias.
É o momento do ataque.
Os tipos, que a pouca distância vinham
esbulhando mentalmente o pequeno fazendeiro, aproximam-se e param.
Um é nutrido, o outro... pode ser até
mesmo desnutrido.
E sem perda de tempo começam a desfiar
para os ouvidos do nosso Tibúrcio uma lenga-lenga comovedora e sentimental.
O fazendeiro, acostumado a lidar com
bois que passam por ser os animais mais pacientes que há, deixou-se ficar e
pacientemente devorara com os ouvidos tudo quanto os dois desconhecidos lhe
diziam.
O nutrido, escanhoado, metido num
terno muito melhor do que a sua estofa moral, procura consolar o companheiro
que mui tristemente conta a história tristíssima de um sujeito muito rico que
querendo legar certa quantia à Santa Casa o incumbira, no momento de morrer de
levar a essa instituição de caridade a quantia de dez contos de réis.
Porém, ele, que merecera a confiança
do amigo morto, por um dever de consciência, achava que devia entregar esse
dinheiro à Santa Casa; e, meditando sobre o fato, chegou à conclusão de que a
Santa Casa, sendo uma instituição rica, tanto pode prestar benefícios com dez
contos a mais como com dez contos a menos.
Mas a consciência é um caso sério e
ele não querendo curtir um remorso por todo o resto da sua vida andava
justamente à procura de alguém que, recebendo o pacote de dez contos de réis,
fosse levá-lo ao seu destino, ou mesmo que não fosse; queria ele ficar com a
sua consciência limpa mas também aspirava a um lucrozinho na transação, dizendo
que daria o dito pacote a quem lhe entregasse uma quantia qualquer, por
exemplo, cinco contos de réis.
Tibúrcio, sem pestanejar, apalpou o
lenção vermelho que amortalhava os cinco contos e, olhando para o tipo nutrido
e para o desnutrido, esboçou um sorriso, que tinha todas as intenções de ser um
sorriso alegre.
O bote estava, assim, quase no seu
epílogo.
Os dois sujeitos, maneirosos com a voz
suave, proferindo tristezas persuasivas, sobre coisas graves que dizem respeito
ao sentimento e à consciência, ao cabo de uns minutos a mais de lamúrias
puxadas à sustância acabaram por convencer Tibúrcio de que ele era justamente o
homem enviado pela Providência divina, a fim de cumprir o sagrado desejo
daquele que jazia no cemitério, tendo legado dez contos à Santa Casa de São
Paulo.
Tibúrcio não podia mais! Arquejava,
exausto sob o peso de tantas coisas tristes contadas com o firme propósito de
tornar a tristeza o mais triste possível.
Foi um banho de duchas de lamúrias que
amoleceu completamente o pobre Tibúrcio.
Depois, houve o seguinte: com a boca
mole e os olhos tão marejados como os olhos dos outros dois tipos, o
fazendeirinho, na ânsia de escapulir com dez contos, entregou a trouxinha de
cinco contos embrulhados num lenção vermelho, recebendo o pacote de dez contos,
despedindo-se rapidamente e indo cada qual para o seu lado.
Tibúrcio correndo mais do que aquele
desgraçado que ia tirar o pai da forca, com o pacote colado debaixo do braço,
varou ruas, dobrou esquinas, passou em tudo e por tudo como uma flecha,
esbarrando, empurrando, atropelando, com tanta sorte que durante todo o trajeto
não conseguiu encontrar nenhum Ford que o fizesse parar.
Por fim, numa rua solitária, debaixo
de uma árvore, Tibúrcio parou.
O pacote, que continha a sua
felicidade, o seu sonho, rolava-lhe nas mãos, acariciado por seus olhos que
ardiam de contentamento. E pela sua imaginação perpassou de esfuziada um
cortejo de coisas belas e agradáveis. E o contentamento foi adiante, até confundir-se
nos horizontes de todos os seus desejos realizados. Tibúrcio, deslumbrado numa
onda de magnetismo, boiava em pleno sonho. E o êxtase, tendo-o arrebatado,
produzira-lhe uma transfiguração tão violenta que ele tinha a sensação de que
estava virado ao avesso e do avesso assistia a vida gritar em torno de si numa
sarabanda interminável, furta-cor, em que a realidade se esfumava em miragens
de longínquas cambiantes. Mas a realidade com seu turbilhão de castigos ainda
acudiu a tempo, porque senão Tibúrcio, dominado por excesso de sonhos, poderia
perder a razão. Porém, a razão, como é uma grande aliada da realidade, salvou o
nosso homem justamente no instante febril em que ele desatou o barbante que
amarrava o pacote. O pacote abriu-se, mostrando aos olhos do fazendeiro toda a
sinceridade da sua mentira, toda a dissimulação do seu embuste. Dinheiro! Havia
uma nota nova, de uma quantia insignificante, dobrada astuciosamente, que
mostrava na superfície do pacote vários bicos.
Tibúrcio, perdendo a noção da realidade
mais ainda do que antes quando mergulhara na região do sonho, quis gritar,
provocar escândalo, quis até mesmo esmagar o crânio contra a parede. Lutou
alguns minutos contra a matilha da raiva que o invadira, deixando-o possesso;
por fim, conseguindo dominar a raiva, e, levando consigo os despojos do pacote
ladrão, foi dar parte à polícia. E a polícia foi tão boa que nem o quis
encarcerar porque, em última análise, Tibúrcio é que era o verdadeiro ladrão;
ladrão por ter querido comprar com cinco contos de réis a quantia de dez, com o
agravante de que pertenciam a uma instituição de caridade. E Tibúrcio, voltando
para a sua fazendola, naturalmente jurou, com todas as forças da sua fé, que
nunca mais na vida se deixaria levar pela tentação de comprar dinheiro
empacotado.
Este é o conto do vigário banal que
todos os dias deparamos na crônica policial da segunda página dos jornais.
Entretanto, a vida está crivada de contos de vigários que não vão parar na
polícia, nem na coluna dos jornais...
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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.
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