7/15/2019

O homem que comprou dinheiro empacotado (Crítica), de Sylvio Floreal



O homem que comprou dinheiro empacotado

Numa tarde de temperatura que convida a ver montras de lojas e relojoarias, caminha pacatamente pela calçada ensombrada das ruas das imediações da Estação da Luz um homem nem alto nem baixo, nem gordo nem magro.

O drama da vida que o circunda não recebe apurados favores da sua atenção.

E o vulto lá vai, ora gingando sobre as pernas, ora deslizando rijo, ora preguiçoso ao léu da sinfonia bárbara da luta pela existência que redemoinha pelas ruas.

Tudo o encanta, porém, pouca coisa o sugestiona.

Visto de longe, o vulto é um indivíduo qualquer: examinado de perto, o fulano em questão é o senhor Tibúrcio Malacacheta, proprietário de uma pequena roça na Mogiana, onde, há trinta anos, devorado pelo trabalho, conseguiu, com o concurso da esposa e dois filhos xucros, formar um pequeno cafezal.

Há quinze anos que está para vir à capital e, há quinze anos que Tibúrcio faz prodígios de economias a fim de pôr em prática a viagem tão longamente planejada.

Por fim veio à São Paulo, trazendo cinco contos de réis dentro de um lenção vermelho, que ele guarda no bolso de dentro do paletó, cuja saliência afaga continuamente no lado onde lhe bate o coração.

Voltemos à tarde em que o surpreendemos nas adjacências da Estação da Luz. Tibúrcio caminha ingenuamente, enquanto que dois tipos bem apessoados, matreiros, acostumados a dissimular intenções pouco honestas, o seguem em passinhos calculados.

Logo adiante, surge, como que de imprevisto, a fatalidade, uma vitrina de joias baratas onde as pedras de várias cores e tamanhos, de cambulhada com vários metais, brilham mentirosamente, procurando esconder a sua falsidade, segundo o desejo dos proprietários da vitrina.

Até parece que a malfadada montra é uma teia de aranha.

Tibúrcio, querendo satisfazer um velho desejo de adquirir um presente para a sua consorte, aproxima-se e, olhando demoradamente, fica pespegado como uma mosca nas ofuscações das pedrarias.

É o momento do ataque.

Os tipos, que a pouca distância vinham esbulhando mentalmente o pequeno fazendeiro, aproximam-se e param.

Um é nutrido, o outro... pode ser até mesmo desnutrido.

E sem perda de tempo começam a desfiar para os ouvidos do nosso Tibúrcio uma lenga-lenga comovedora e sentimental.

O fazendeiro, acostumado a lidar com bois que passam por ser os animais mais pacientes que há, deixou-se ficar e pacientemente devorara com os ouvidos tudo quanto os dois desconhecidos lhe diziam.

O nutrido, escanhoado, metido num terno muito melhor do que a sua estofa moral, procura consolar o companheiro que mui tristemente conta a história tristíssima de um sujeito muito rico que querendo legar certa quantia à Santa Casa o incumbira, no momento de morrer de levar a essa instituição de caridade a quantia de dez contos de réis.

Porém, ele, que merecera a confiança do amigo morto, por um dever de consciência, achava que devia entregar esse dinheiro à Santa Casa; e, meditando sobre o fato, chegou à conclusão de que a Santa Casa, sendo uma instituição rica, tanto pode prestar benefícios com dez contos a mais como com dez contos a menos.

Mas a consciência é um caso sério e ele não querendo curtir um remorso por todo o resto da sua vida andava justamente à procura de alguém que, recebendo o pacote de dez contos de réis, fosse levá-lo ao seu destino, ou mesmo que não fosse; queria ele ficar com a sua consciência limpa mas também aspirava a um lucrozinho na transação, dizendo que daria o dito pacote a quem lhe entregasse uma quantia qualquer, por exemplo, cinco contos de réis.

Tibúrcio, sem pestanejar, apalpou o lenção vermelho que amortalhava os cinco contos e, olhando para o tipo nutrido e para o desnutrido, esboçou um sorriso, que tinha todas as intenções de ser um sorriso alegre.

O bote estava, assim, quase no seu epílogo.

Os dois sujeitos, maneirosos com a voz suave, proferindo tristezas persuasivas, sobre coisas graves que dizem respeito ao sentimento e à consciência, ao cabo de uns minutos a mais de lamúrias puxadas à sustância acabaram por convencer Tibúrcio de que ele era justamente o homem enviado pela Providência divina, a fim de cumprir o sagrado desejo daquele que jazia no cemitério, tendo legado dez contos à Santa Casa de São Paulo.

Tibúrcio não podia mais! Arquejava, exausto sob o peso de tantas coisas tristes contadas com o firme propósito de tornar a tristeza o mais triste possível.

Foi um banho de duchas de lamúrias que amoleceu completamente o pobre Tibúrcio.

Depois, houve o seguinte: com a boca mole e os olhos tão marejados como os olhos dos outros dois tipos, o fazendeirinho, na ânsia de escapulir com dez contos, entregou a trouxinha de cinco contos embrulhados num lenção vermelho, recebendo o pacote de dez contos, despedindo-se rapidamente e indo cada qual para o seu lado.

Tibúrcio correndo mais do que aquele desgraçado que ia tirar o pai da forca, com o pacote colado debaixo do braço, varou ruas, dobrou esquinas, passou em tudo e por tudo como uma flecha, esbarrando, empurrando, atropelando, com tanta sorte que durante todo o trajeto não conseguiu encontrar nenhum Ford que o fizesse parar.

Por fim, numa rua solitária, debaixo de uma árvore, Tibúrcio parou.

O pacote, que continha a sua felicidade, o seu sonho, rolava-lhe nas mãos, acariciado por seus olhos que ardiam de contentamento. E pela sua imaginação perpassou de esfuziada um cortejo de coisas belas e agradáveis. E o contentamento foi adiante, até confundir-se nos horizontes de todos os seus desejos realizados. Tibúrcio, deslumbrado numa onda de magnetismo, boiava em pleno sonho. E o êxtase, tendo-o arrebatado, produzira-lhe uma transfiguração tão violenta que ele tinha a sensação de que estava virado ao avesso e do avesso assistia a vida gritar em torno de si numa sarabanda interminável, furta-cor, em que a realidade se esfumava em miragens de longínquas cambiantes. Mas a realidade com seu turbilhão de castigos ainda acudiu a tempo, porque senão Tibúrcio, dominado por excesso de sonhos, poderia perder a razão. Porém, a razão, como é uma grande aliada da realidade, salvou o nosso homem justamente no instante febril em que ele desatou o barbante que amarrava o pacote. O pacote abriu-se, mostrando aos olhos do fazendeiro toda a sinceridade da sua mentira, toda a dissimulação do seu embuste. Dinheiro! Havia uma nota nova, de uma quantia insignificante, dobrada astuciosamente, que mostrava na superfície do pacote vários bicos.

Tibúrcio, perdendo a noção da realidade mais ainda do que antes quando mergulhara na região do sonho, quis gritar, provocar escândalo, quis até mesmo esmagar o crânio contra a parede. Lutou alguns minutos contra a matilha da raiva que o invadira, deixando-o possesso; por fim, conseguindo dominar a raiva, e, levando consigo os despojos do pacote ladrão, foi dar parte à polícia. E a polícia foi tão boa que nem o quis encarcerar porque, em última análise, Tibúrcio é que era o verdadeiro ladrão; ladrão por ter querido comprar com cinco contos de réis a quantia de dez, com o agravante de que pertenciam a uma instituição de caridade. E Tibúrcio, voltando para a sua fazendola, naturalmente jurou, com todas as forças da sua fé, que nunca mais na vida se deixaria levar pela tentação de comprar dinheiro empacotado.

Este é o conto do vigário banal que todos os dias deparamos na crônica policial da segunda página dos jornais. Entretanto, a vida está crivada de contos de vigários que não vão parar na polícia, nem na coluna dos jornais...



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Fonte:
Rafael Rodrigo Ferreira: "O 'literato ambulante': antologia e estudo da obra de Sylvio Floreal - 1918-1928" (Tese). Universidade de São Paulo - USP. São Paulo, 2018.

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