8/14/2019

Um Dia de Chuva (Conto), de Eça de Queirós



Um Dia de Chuva

Era meia-noite e José Ernesto, que estranhara os colchões duros de folhelho, ia enfim adormecer, quando uma larga e pesada bátega de água se abateu bruscamente sobre o Paço de Loures. Estremunhado, levantou a cabeça da dura fronha, cheia de rendas que o incomodavam, e ficou um momento com os olhos arregalados na escuridão, a escutar o rumor da água despenhada que alagava os telhados e crepitava sobre a folhagem dura do laranjal. Depois, pensando na velhice daquele casarão do século XVI, desabitado, segundo afirmara o padre Ribeiro, desde 1850, acendeu a vela e espreitou, meio erguido, os tetos negros de carvalho, no receio de algum buraco. Mas os velhos tetos almofadados pareciam sólidos e José Ernesto acabou por soprar a luz, puxar o cobertor que, ao deitar, arrojara para os pés, acalorado com a ceia de cabrito e o vinho de Pedras Negras, e cerrou os olhos no conchego que a chuva, lá fora, agreste e fustigada pelo vento, tornara mais doce e onde se fundia o grande cansaço da sua jornada, naquele meado já quente de abril.

Mas não adormeceu, contrariado com aquela chuva de Lua nova que podia pegar e estragar a sua visita a Paço de Loures. E ao mesmo tempo, ante aquele rumor de invernia surgindo em abril, pensava no estranho impulso que o levara, a ele, solteiro e sociável, amando as cidades e o conforto, a querer comprar uma quinta tão longe de Lisboa, numa região de serras e de névoas.

Era todavia um desejo bem antigo, já do tempo do liceu, quando vivia com o pai em Lisboa, no quarto andar de uma rua ruidosa, tendo por único horizonte um terreno vago, horrivelmente seco, todo de saibro e cascalho, entalado entre dois altos prédios e de onde não via outra cor que não fosse o pardo da cal suja. De verão, sentia a poeira por toda a parte, até nos travesseiros e nos lençóis — e sonhava com grandes árvores cheias de sombras e de pássaros, com águas muito frias e muito lustrosas, trasbordando dos tanques de rega. Depois, em Coimbra, tivera por companheiro de casa um rapaz do Norte, que falava perpetuamente na sua casa de São Brás e nas suas grandes avenidas de carvalhos, nas cascatas, nas roseiras e no mirante sobre o rio onde se tomava o café nas noites de verão. E já então José Ernesto pensava, no seu quarto, sobre os seus livros: — "Que diabo, quando for rico, também hei de ter o meu São Brás!" Mais do que tudo, porém, certas impressões de leituras sobre a Inglaterra e a sua luxuosa e hospitaleira vida de campo, tinham desenvolvido nele aquele apetite de ter uma quinta e uma vasta casa com muitos quartos e uma adega bem fornecida, onde pudesse receber os amigos alegres de Lisboa e presidir como um castelão risonho a jantares soberbos de leitão assado, depois de uma caçada pelas serras...

Porém, quando herdara a fortuna do tio Bento, tinha esquecido a quinta, e a natureza, e a vida bucólica, na alegria de realizar outros sonhos, vivos também e cheios de imprevisto. Viajara então pela Europa, conhecera o mundo e acabara por organizar em Lisboa uma instalação de rapaz elegante, estética, com carvalhos lavrados, cadeiras de couro e colchas da Índia. Aí, empatara dois ou três anos na ociosidade da cidade, com um fáeton, uma cadeira em São Carlos, uma certa Micaela, corista do Trindade e uma paixão pela mulher do seu senhorio, na Rua de São Bento.

Este grande sentimento, ao fim de um ano, murchara naturalmente, como uma bela flor — e fora então que despertara nele o antigo desejo do campo, da quinta e dos hóspedes alegres, em torno do leitão assado, depois de uma caçada pelas serras...

Justamente, por acaso, lera nas Novidades, numa correspondência da província, o anúncio de uma quinta, com um nome sonoro que ele se recordava de ter lido algures, num romance ou numa crônica. Na quinta, de resto, havia uma ruína histórica, capela ou torre, e pertencia a um fidalgo provinciano, de que ele nunca ouvira falar, mas que tinha dom e apelidos infindáveis. Escrevera então a esse senhor D. Gaspar — que lhe respondera com uma certa elegância, numa bonita letra inglesa, propondo que ele visitasse o Paço de Loures, onde o Sr. padre Ribeiro o esperaria, para o hospedar e lhe mostrar a propriedade! E como nesse momento Lisboa lhe era penosa — José Ernesto partira para o

Norte, tentado, já meio decidido a comprar a quinta àquele fidalgo amável e culto, que possuía um padre e um tão lindo cursivo inglês.

Na estação, lá encontrara o Sr. padre Ribeiro, procurador de D. Gaspar, com dois cavalicoques para o conduzir ao Paço. Era ao escurecer, e logo o caminho para a quinta o encantou, apesar de áspero, com os seus arvoredos pacíficos, um rumor de água corrente, um cheiro forte de pomares e de prados. O casarão, lá em cima, pintado de amarelo, com uma grande varanda coberta que o ligava a uma velha ruína, tinha um belo aspecto romântico; a ceia, que preparara o caseiro, rescendia... Só o padre Ribeiro lhe desagradara, com o seu pigarro, o seu cachaço nédio e a desconfiança com que o observava por cima dos óculos redondos, de aros de tartaruga. Parecia, além disso, tremendamente maçador, e a descrição miúda que lhe fizera da propriedade, e das demandas, e de uma certa questão de águas com um vizinho, e dos foros, e da igreja de São Lucas, e dos desgostos do Sr. D. Gaspar, e dos consertos feitos na tulha e no espigueiro, quase lhe tornara amargo o delicioso vinho branco da quinta!

E a sua última impressão, antes de adormecer, depois daquele primeiro dia de campo, fora a do horror de um dia de chuva, ali fechado, naquele casarão vazio, só, abandonado, sem defesa contra o padre Ribeiro...

Cedo, de manhã, o caseiro, o excelente Brás, veio bater timidamente à porta do quarto, anunciando a sua excelência as oito horas — e o primeiro gesto de José Ernesto foi o de escutar para os lados da janela. Chovia!

Desesperado, José Ernesto saltou do casto leito de pau-preto, destrancou as grossas portadas das janelas — e verificou o desastre. Chovia! Por baixo dos vidros embaciados, verdejava vagamente a copa de um laranjal, que parecia muito fundo, enterrado num vale; depois, eram campos com arvoredos, colinas baixas, uma alvura de casario, tudo esbatido, meio diluído em névoa. E de um céu confuso, todo em flocos moles de nuvens pardas, descia a chuva, lenta, direita, vagarosa, repousada e como estabelecida sobre o Paço de Loures, assim, para toda a eternidade.

— Que maçada! Que estúpida maçada!

E logo tudo em redor lhe pareceu imensamente triste, de um desconforto agreste — aquela cal branca das paredes, o soalho nu, remendado com tábuas mal aplainadas, as três cadeiras de palhinha, hirtas, estreitas, rígidas, que repeliam, e o lavatório com a sua pedra de lousa e a sua baciazinha verde onde mal cabiam as mãos...

Não, positivamente não lhe convinha aquele solar de nome sonoro!

E maior ainda foi a sua indignação, quando ouviu o caseiro, de fora da porta, murmurando que o Sr. padre Ribeiro ia dizer missa na capela da casa e só esperavam por sua excelência! Valente descaro, o do Sr. padre Ribeiro! Como sabia ou com que autoridade concluía o Sr. padre Ribeiro, que ele, José Ernesto, fosse católico ou mesmo cristão? Justamente havia anos que não ouvia missa — desde os primeiros entusiasmos com a mulher do senhorio, quando a farejava através de Lisboa, e todos os domingos, à espera dela, sentia grandes baques de coração, debaixo das acácias, diante da igreja de Santa Isabel!... E agora aquele horrendo maçador entrava assim familiarmente na sua consciência — e impunha-lhe uma missa! Mas que fazer? Era hóspede, não podia escandalizar a devoção simples dos caseiros... E acabou de se vestir, furioso, com bruscos repelões à roupa e longos olhares cheios de amargura àquela chuva que caía, lenta e serena, como que regalada em cair...

Mas quando o caseiro, através das grandes salas quase nuas onde os seus passos eram sonoros, o conduziu à capela, à tribuna, à tribuna senhorial, com a sua grade de carvalho e duas velhas almofadas de veludo verde no chão, toda a sua irritação caiu: sentiu mesmo o encanto de presidir assim à devoção dos criados de lavoura, das raparigas do sítio, numa capelinha própria, diante de uma Nossa Senhora que era como uma deusa doméstica, padroeira e amiga da casa. Até o padre Ribeiro lhe pareceu menos horrendo, através do doce sussurro do latim, com a sua velha casula onde o ouro desbotado se esfiava. Duas ou três raparigas que não eram feias, com as suas grandes arrecadas e os seus lenços vistosos, voltaram para a tribuna, ao agacharem-se no chão, uns olhos curiosos e negros. A elevação da Hóstia, com o fino tanger da campainha, o lento bater nos peitos, foi muito suave. Uma das almofadas em que ajoelhava tinha umas vagas armas bordadas... E José Ernesto pensou que havia muita beleza na antiga vida de um solar português.

Depois, ao descer do altar com o cálix nas mãos, padre Ribeiro saudou a tribuna, o hóspede.

— No fundo, não parece mau homem — murmurou José Ernesto.

E foi já com um sorriso amável que o acolheu, quando ele apareceu na sala grande onde se ia servir o almoço. Falaram logo da chuva. Segundo o caseiro, era possível que estiasse, lá para o fim da tarde. Padre Ribeiro, porém, não acreditava. Ali, naquela freguesia de Loures, havia assim umas chuvas, como em nenhuma outra localidade do reino...

— Lembro-me perfeitamente que em 1876...

E foi uma história medonha, que ele desenrolou devagar, com datas, com nomes, com detalhes, pousado à borda da cadeira, imóvel, com as mãos cabeludas nos joelhos, os imensos óculos cravados no hóspede. José Ernesto terminou por não escutar, murmurando apenas ao acaso, com um vago sorriso: ah, é boa!... E enquanto o padre Ribeiro desfiava a sua história, foi examinando a sala, atraído por três velhos retratos que pendiam das paredes, dentro de caixilhos a que a umidade e o tempo iam comendo o dourado. Um deles era o retrato de um rapazito magro, de grande nariz, com uma gola de rendas sobre o gibão preto. O outro parecia um magistrado, pela toga de amplas pregas que o cobria e onde destacava, ainda muito vermelha, a Cruz de Cristo. Mas o que mais interessava José Ernesto, era o terceiro: uma bela rapariga, forte, com um sorriso bondoso que lhe punha duas covinhas nas faces e um bonito colo decotado, que o tempo tornara amarelo, mas que devia ter sido de uma grande brancura. José Ernesto pensou mesmo, sorrindo, que os poetas do tempo decerto a tinham comparado ao leite e às rosas... Na mão de dedinhos aguçados sustentava uma rosa e toda ela dava uma vaga impressão de boa criatura, natural, salutar e pacificadora.

— De sorte que — ia contando o padre Ribeiro com as mãos apoiadas aos joelhos — estávamos aqui sem poder partir, e a chuva sem parar, zás, zás...

Lembro-me muito bem de que a Sra. D. Manuela, que Deus haja, tinha nesse dia uma enxaqueca, e até se encostara nesse mesmo canapé em que vossa excelência está sentado. E era um domingo... É curioso, era também um domingo. Foi até o reitor de São Brás que disse a missa. Já lá vai, coitado... Pois era rijo. Andava nos seus setenta anos e vinha da residência aqui, que é bem uma légua, e uma légua larga, a pé... Tinha ele dito a missa, e estava ali sentado, à janela...

Felizmente o caseiro apareceu, atarefado, com a moça que trazia uma grande pratada de ovos fritos — e ao puxar a cadeira, atar o guardanapo ao pescoço, limpar bem o copo, aliviar as vias do pigarro e considerar prazenteiramente os ovos, o padre Ribeiro deixou escapar os fios emaranhados da história da Sra. D. Manuela e do velho reitor de São Brás.

À mesa, o digno homem era silencioso. E quando José Ernesto lhe perguntou, apontando para os três quadros, se eram retratos da família, padre Ribeiro deu apenas uma informação curta, rápida, para não espaçar as garfadas. O desembargador, com a Cruz de Cristo, era o Sr. Jorge Manuel de Vilhena, que fora diretor das Alfândegas no tempo da Sra. D. Maria II; a senhora, era a filha, tia do Sr. D. Gaspar; o menino, pertencia a outro ramo — aos Valadares da Guarda.

— Pois era uma bonita mulher, a tia do Sr. D. Gaspar! — murmurou José Ernesto, que ficara defronte do retrato e que continuava a interessar-se por aquela face meio desbotada, pequena e fina, tão doce no seu sorriso.

Depois dos ovos, apareceu um frango guisado que José Ernesto achou delicioso. E aquela gostosa cozinha de província que encantaria os amigos de Lisboa quando ele os hospedasse, mais o impacientava contra a chuva teimosa que lhe não permitia visitar a quinta, fazer logo uma ideia das suas vantagens e dos outros prazeres rurais que ali o esperavam.

Não seria possível, com guarda-chuvas e tamancos, ir ao menos dar uma volta pelo pomar, até ao jardim?

Não senhor! Estava tudo encharcado... Nem se podia apreciar a importância dos campos, da lavoura, a vista até Vila Fria.

— Que maçada!

O caseiro encolheu os ombros, foi olhar o céu com melancolia. Padre Ribeiro atacara de novo o frango, em silêncio.

Mas daí a instantes foi outro desastre. Ao tirar a cigarreira, José Ernesto encontrou um único cigarro, dos que fumava, cigarros turcos com tubo de cartão. E quando foi dentro, procurar à mala uma das caixas de que se fornecera em Lisboa, descobriu com terror, depois de revolver toda a roupa, que o seu criado se esquecera de as emalar! E ali estava, preso pela chuva dentro de um velho casarão, sem esperança e sem tabaco!

Felizmente padre Ribeiro fumava uns horrendos cigarros "Ferreirinhas", que José Ernesto aceitou sucumbido.

Acesos os cigarros, foram percorrer a casa detalhadamente, até às adegas. Mas todo o interesse de José Ernesto, o prazer que ele se prometia de ir fantasiando a sua instalação, as obras a fazer, certos móveis a colocar, foi estragado cruelmente por padre Ribeiro, que em cada quarto parava, lhe narrava a história da casa — e quem ali dormira, e quem ali morrera, e os belos trastes que o ornavam no tempo do pai do Sr. D. Gaspar... Debalde José Ernesto queria seguir — ele retinha-o pelo braço com familiaridade:

— Um momento mais... É necessário que veja... Aqui nesta alcova nasceu a Sra. D. Maria Joana, a menina mais velha... Há ao canto uma porta de comunicação... Lembro-me até perfeitamente que nessa noite...

E a anedota brotava, espraiada e lenta. Numa das salas José Ernesto teve de escutar, a propósito de um conciliábulo político que ali se celebrara em 48, toda a história da Maria da Fonte. Adiante, em frente de um degrau de pedra que separava dois quartos, foi o relato da queda que ali dera uma Sra. D. Mafalda, e das aflições dele, padre Ribeiro, que tivera de ir pelo médico, às dez da noite...

— E chovia! Oh, senhores, pior do que hoje! Imagine vossa excelência que estávamos muito sossegados a jogar o gamão, o Sr. D. Gaspar e eu...

José Ernesto sorria com uma resignação amarga. A cada instante atirava um olhar através dos vidros...

Chovia sempre, caindo a chuva de um céu sujo onde parecia não dever mais reaparecer o azul. As salas desmobiladas tinham um aspecto mais triste naquela luz cinzenta e úmida... E ansiava por um cigarro — mas no despeito daquela loquacidade que o enervava, não o queria pedir ao padre Ribeiro.

Assim chegaram ao famoso terraço coberto, que era a beleza e o luxo da casa, com os seus artísticos azulejos do século XVIII, e a extensa vista, abrangendo três léguas de campos e povoados, até às serras. Mas a chuva, agora mais forte, tudo esfumava, fundia no seu vasto véu de água e de névoa. O padre Ribeiro, todavia, de braço estendido, indicava os lugares, os solares vizinhos, as aldeias, as dependências da propriedade. Acolá era o sobreiral. Por trás dos sobreiros, além, aquela casa branca era dos Valadares. Depois, não via sua excelência o muro? — Era o cemitério da freguesia. Mas José Ernesto já não escutava, sentado num banco, com os braços cruzados. Perdera todo o interesse pela casa, pelos campos, que aquela chuva estúpida e a tagarelice do padre Ribeiro lhe iam tornando bruscamente intoleráveis. E só antevia, se por acaso viesse ali habitar, longos dias melancólicos de chuva e conversas intermináveis e fastidiosas, murmuradas com lentidão! Além disso, aquele casarão enorme, frio, que de noite devia ter ecos sinistros, não lhe convinha — e nem quis visitar o lagar, as adegas. Pretextando cansaço, uma leve dor de cabeça que pedia repouso, abalou para o quarto.

Encontrou lá o caseiro com uma das moças, fazendo a cama.

— Ó Sr. Brás, a que horas é amanhã o comboio?

Sua excelência tinha comboio às duas — mas se chovesse como hoje, sua excelência não podia pensar em partir, com as duas horas a cavalo até à estação... — E de carro, não se poderia ir? — Completamente impossível, não havia carro que se metesse àqueles caminhos. O Governo há muito que prometera a estrada para a estação. Todos os anos, sobretudo em vésperas de eleições, apareciam os das Obras Públicas. Depois, não voltavam.

— É inacessível, é inóspito, é horrível! — pensava José Ernesto.

Agora só lhe restava pacientar, até que fosse possível a jornada até à estação.

Se ao menos tivesse um livro, jornais! Terminou por se estirar na cama. Mas o quarto enorme e sem móveis, o grande silêncio, a luz tristonha, aquele cair lento e contínuo da chuva, davam-lhe uma tristeza que lhe tornava insuportável a imobilidade. Saltou dos colchões duros e começou a passear entre os quatro muros caiados, como uma fera na sua jaula. Enfastiado, foi abrir a janela para ao menos ter mais chegada a companhia da chuva: daquele lado, a casa era muito alta, uma muralha lisa, a que se colava uma estreita escadinha de pedra, descendo para um laranjal, muito enterrado lá em baixo, e que parecia, sob a chuva e a névoa, cheio de sombra e de umidade. Sentiu ódio, então, por aquela velha casa e teve, sem razão, um terror absurdo de adoecer ali, repentinamente. Para sacudir aquela ideia, saiu para o salão, mesmo com risco de encontrar o padre Ribeiro: não havia ninguém. E por outras portas que abriu, noutros quartos que atravessou, era a mesma solidão.

Teve então uma saudade pungente da sua casa de Lisboa, do ruído das tipoias, dos vizinhos, das ruas que o levavam, seguras e secas, ao Clube, aos amigos, à Avenida. Voltou ao terraço e ali ficou encostado à varanda, vendo tristemente cair a chuva. Mas estranhamente, a seu pesar, os seus olhos voltavam-se sempre para aquele muro branco que lhe mostrara o padre Ribeiro, o muro do cemitério. Como, àquela distância, o campo dos mortos não se diferenciava, na névoa que tudo envolvia, dos campos de lavoura, parecia ao pobre José Ernesto que o cemitério era imenso — que a quinta estava toda cercada por um cemitério, que a própria casa era um jazigo!... E o morto? Onde estava o morto?... Impacientado com esta ideia absurda, abandonou o terraço, errou de novo pelas salas, reentrou no quarto, recomeçou o seu passeio de fera entre os quatro muros caiados — e não tolerando mais a solidão nem a falta de tabaco, cedeu por fim, vencido, e foi procurar padre Ribeiro.

Podia, para lhe evitar a loquacidade, propor uma partida de bisca, se houvesse cartas...

Uma criada que arrumava louça na sala, disse-lhe que o Sr. padre Ribeiro devia estar no quarto — e José Ernesto foi bater humildemente à porta do sacerdote.

— Ó Sr. padre Ribeiro, tenha paciência, pode-me passar um cigarro?

O padre abriu logo, em mangas de camisa, com a pena na mão. Estava a escrever — mas convidou o hóspede a entrar, e puxando mesmo para a janela uma velha poltrona de couro, abriu a gaveta onde tinha os cigarros.

— Acabe a sua carta, Sr. padre Ribeiro...

O outro teve um gesto amável. Estava a escrever por ociosidade. Tinha muito mais gosto em fazer companhia a sua excelência. Era uma pena, era uma grande pena aquela chuva, porque se podia ter empregado o dia em visitar a quinta. Se ele ao menos tivesse a planta! Mas não. Estava no cartório, em Vila Fria.

— Há muito que o Sr. padre Ribeiro é procurador destes senhores?

— Trinta e três anos. Vi casar o Sr. D. Gaspar e vi nascer as três meninas. Eu lhe conto como conheci o Sr. D. Gaspar, que é curioso. Tinha eu ido passar o Entrudo a Castelo Branco...

E aí brotou outra história torrencial. Mas tão profundo era o tédio e a solidão de José Ernesto, que se interessou logo por aquelas três meninas. Esperou mesmo com paciência, para as conhecer, que o padre Ribeiro chegasse ao fim da sua espalhada narração, desde os longínquos tempos em que o Sr. D. Gaspar ainda era solteiro. Por fim, como ele se alastrava muito sobre as virtudes da Sra. D. Constança, que Deus houvesse, mulher do Sr. D. Gaspar, José Ernesto puxou o padre para os tempos presentes. Desejou saber se o Sr. D. Gaspar era velho.

— O Sr. D. Gaspar tem, em 18 de setembro, cinquenta e seis anos. Parece mais velho por causa da sua grande barba, toda branca. Mas aquilo é de família: aos quarenta anos começam a embranquecer. A menina mais velha, a Sra. D. Maria Augusta, tem até uma madeixazinha branca sobre a testa. E faz vinte e sete anos, em setembro, como o pai. E dá-lhe graça, a madeixa dá-lhe muita graça...

Então, para obter mais detalhes, José Ernesto, de repente, passou as mãos pela face, como no esforço de uma recordação, e declarou que, na realidade, lhe parecia conhecer muito bem o Sr. D. Gaspar e as meninas. — Tinham estado em Lisboa, não é verdade?... — Não, nunca tinham ido a Lisboa... — Então devia ser no Porto! — Sim, devia ser; havia dois anos, tinham passado um ou dois meses no Porto.

— Justamente! — exclamou José Ernesto — estou muito bem lembrado. No Palácio de Cristal, todas três, com um velho de barbas brancas, alto, forte. E as três senhoras, altas também...

O padre Ribeiro corrigiu. A mais nova, a Sra. D. Maria Joana, era alta; as duas outras, porém, eram baixas. Ele tinha as medidas de todas, em centímetros. Não se recordava agora do número exato, mas a Sra. D. Maria Joana era o que se costuma chamar uma senhora alta, uma bela senhora.

— Sim — acudiu José Ernesto. — Havia uma mais alta. E trigueiras todas... Quero dizer, cabelo escuro!

O procurador emendou com enorme gravidade este erro histórico. Não, não! Então não eram elas! As duas meninas mais velhas, com efeito, tinham o cabelo escuro, como o pai em moço. Mas a Sra. D. Maria Joana era loura. Oh, muito loura! Exatamente como a Sra. D. Constança. Mesmo mais loura!...

— É uma cor notável! Porque, quer vossa excelência creia ou não, o cabelo da Sra. D. Maria Joana, ao sol, reluz como ouro! Às vezes, no jardim... O cartório tem janela para o jardim, e a minha banca fica justamente ao pé da janela. Pois, meu caro senhor, às vezes, ela anda no jardim, lá a tratar das suas flores, e quando passa assim entre duas árvores, toca-lhe uma réstia de sol — e ainda que se não deva misturar o sagrado ao profano — eu lembro-me sempre de uma auréola de santa... Ouro! Ouro puro!

E como José Ernesto sorria à ideia de todo aquele ouro aceso pelo sol, entre as rosas, num velho jardim de província, padre Ribeiro acrescentou, como que cedendo a uma verdade forte:

— Justiça seja feita, àquela menina, lá pelo que toca a rosto, e feitio, é digna de ser admirada em toda a parte. Nesse ponto, não há senão louvar.

E como havia aqui uma reserva, José Ernesto, já curioso, puxou mais a poltrona para ao pé do padre Ribeiro e murmurou com familiaridade, um brilho nos olhos:

— Vejo então que a Sra. D. Maria Joana não é a sua predileta, Sr. padre Ribeiro.

O sacerdote protestou. Oh, ele gostava de todas igualmente! E como não seria assim, se andara com todas elas ao colo!

— A Sra. D. Maria Joana, é verdade, tem lá as suas ideias... Mas é boa menina. É também muito boa menina.

Agora, vivamente interessado, José Ernesto, desejava conhecer "as ideias" da Sra. D. Maria Joana — e pedindo outro cigarro ao padre Ribeiro, estranhou que ela e as duas outras não tivessem casado. Mas o loquaz padre

Ribeiro teve apenas um hê, hê! discreto e vago. E houve mesmo um silêncio, em que padre Ribeiro, remexendo no tinteiro, deitou um olhar à carta que interrompera.

— Oh Sr. padre Ribeiro, continue a sua carta! — acudiu discretamente José Ernesto. — Que horas são? Quatro e meia? Eu vou também um bocado para o terraço, tomar ar. Que dia este, hein? Parece dezembro, com semelhante negrura.

Com efeito havia já uma tristeza de crepúsculo; a chuva caía, mais lenta, mais grossa, com um rumor que parecia desolado, e invernoso, e agreste, naquele declinar da luz. Do terraço, para onde ele fora acabar o cigarro do padre Ribeiro, apenas se via o extenso véu de chuva, que tudo fundia, tudo esfumava numa névoa igual e parda, até as colinas de Vila Fria. Sentado num banco, ele olhava a chuva, escutava a chuva. E já não se sentia tão só, agora, com aquelas figuras que tinham surgido no meio do seu tédio e que tomavam relevo e realidade — o Sr. D. Gaspar com as suas barbas brancas, a Sra. D. Maria Joana com os seus cabelos de ouro... Não conhecia ninguém em Lisboa que tivesse assim uns cabelos de ouro... E que ideias seriam essas, que tão evidentemente desagradavam ao padre Ribeiro? Toda aquela família, e os seus hábitos, e os seus negócios, o começava a interessar — e pela primeira vez pensou nos motivos que levariam D. Gaspar a vender o "Paço". Dívidas decerto, uma administração de fidalgo, desleixada e confusa. E todavia aquele casarão, reparado, com mobílias simples, cretones claros, podia ser uma doce vivenda. Se ele a comprasse havia de ornar toda a varanda do terraço com rosas... Mas a solidão — sobretudo com a chuva!... O campo, na verdade, só é agradável com família, e toda a árvore é triste se na sua sombra não brinca uma criança...

Um rumor na porta envidraçada despertou José Ernesto. Era o Brás que vinha saber a que horas sua excelência queria o jantar.

— Quando o Sr. padre Ribeiro quiser... Às seis... Eu já tenho apetite...

— Efeitos dos bons ares — considerou o caseiro, sorrindo, com a mão encostada à ombreira da porta. A grande pena era a chuva, por não poder sua excelência visitar a propriedade, estender um lindo passeio até ao Mieiro, a ver a queda de água... Que a chuvazinha era necessária, com a terrazinha assim tão sedenta... Mas talvez estiasse. E a quinta era digna de se ver...

— O Sr. D. Gaspar nunca cá vem? — perguntou José Ernesto.

O Sr. D. Gaspar já não vinha ao Paço havia quatro anos. A última vez que por ali aparecera fora de fugida, com a Sra. D. Joaninha, durante três dias.

— As meninas não gostam de estar cá no Paço?

O caseiro sorriu. A falar verdade, a casa agora, assim sem trastes, não era muito de convidar. Que a Sra. D. Maria Joana, essa não se importava! Era senhora para dormir em cima de uma cadeira...

Contanto que tivesse, de manhã cedo, água para chafurdar, estava bem. Nessa ocasião em que estivera no Paço, até se lhe tinha subido para o quarto uma dorna! E água fria... Era de arrepiar! Mas aquilo era senhora muito forte.

— É uma que é loura, não é verdade? — perguntou ainda José Ernesto.

— Loura como milho... Ah, muito vistosa, muito vistosa! Quando aí esteve, era pelo São João, houve uma grande fogueira e veio para aí a raparigada dançar... A Sra. D. Maria Joana vestiu-se de lavradeira... Parecia um sol!

— Bonita, hein?

O caseiro imaginava que não podia haver outra mais bonita — nem em Lisboa! E alegre! E dada! Que as outras meninas também eram boas meninas...

Mas a Sra. D. Maria Joana era um sol...

— Que idade tem ela?

— Isso não sei dizer a vossa excelência. É novinha, é novinha! Ora agora avantaja muito, com aquele bonito feitio, e assim forte! Como ela fica muito bem é a cavalo. Àquilo é grande cavaleira.

José Ernesto olhava vagamente, sorrindo. E depois de um silêncio:

— Pois isto por aqui há de ser bonito quando não chover.

— Isto é muito lindo. E o terraço é uma alegria, com a vista toda até Vila Fria. E mesmo a quinta lá para baixo, para o rio... Tudo é muito lindo. Tudo é muito lindo...

— A pena é ser tão longe da estação.

Ora! De verão era até um agradável passeio. Mas quando vinha a inverneira, era longito, era longito...

Enfim, a estrada estava traçada — e passava além, ao pé da carvalheira, que sua excelência não podia ver... E quem tivesse influência com o Governo, arranjava a estrada.

José Ernesto pensou logo em amigos seus de Lisboa, políticos e influentes. E de repente, com outra ideia:

— Quanto tempo se leva daqui a Vilalva?

Para a quinta do Sr. D. Gaspar? — Tomava-se o comboio da manhã e parava-se na estação de Quintãs; daí era meia hora a cavalo. A casa do Sr. D. Gaspar ficava mesmo à entrada da freguesia. Ao todo, umas quatro horas de caminho.

— E é bonita a casa do Sr. D.

Gaspar?

Oh, a essa não lhe faltava nada. Uma casa nobre, com capela e um belo jardim com um lago e cedros em volta...

Mas vendo que José Ernesto abotoava o jaquetão, o caseiro receou que sua excelência apanhasse umidade. Era melhor recolher, tanto mais que caminhava para as seis... E ele ia dar uma volta pela cozinha, a ver como as suas raparigas andavam com o jantarzinho.

José Ernesto, então, voltou ao seu quarto. Como ia escurecendo acendeu a vela e começou a passear, bocejando, numa indecisão que o tomara de repente sobre a sua volta a Lisboa. Era estúpido, decerto, ficar ali enterrado naquele casarão, à espera de um bocado de céu limpo e seco que o deixasse visitar a quinta e arredores. Mas também, partir para Lisboa, depois daquela imensa jornada que assim lhe ficava inútil, sem sequer ter dado uma volta pelo campo, feito uma ideia da quinta, talvez excelente e realizando bem o seu sonho antigo? Era absurdo. Além disso, a ideia da volta a Lisboa, tão rápida, já o enfastiava, antevendo a Avenida cheia de pó, o clube à noite, com os rapazes a bocejar pelas poltronas, e o seu senhorio, risonho, de lunetas azuis, aparecendo-lhe de manhã para o abraçar e "almoçar sem cerimônia...". E ao mesmo tempo, ia sentindo, apesar daquela infelicidade da chuva, uma vaga atração pela aldeia, e o silêncio rural, e a cozinha gostosa, e essas festas alegres e simples, com fogueiras, em que as fidalgas se vestem dê camponesas... Para a sua saúde mesmo, convinha-lhe passar umas semanas no verde, como um cavalo cansado. E enfim, que diabo! a compra de uma propriedade que lhe custava dez ou doze contos, não se podia fazer assim atabalhoadamente, em horas, sem um exame das terras, uma boa experiência da sua compatibilidade com o campo e mesmo uma conferência com o Sr. D. Gaspar, para ressalvar bem os seus interesses. Na verdade, o Sr. D. Gaspar é quem devia ter vindo ao Paço: — "Vossa excelência — dizia o procurador — vê, examina, e depois entende-se por carta com o Sr. D. Gaspar!" — Não! Cartas nunca definem bem negócios. É indispensável, quando se trata de doze contos, cavaquear, repisar, combinar... Evidentemente, devia ver o Sr. D. Gaspar...

Foi quando ele ruminava essa nova ideia que o padre Ribeiro lhe veio bater à porta do quarto, perguntando se sua excelência estava pronto para o jantarzinho.

— Entre, Sr. padre Ribeiro, pode entrar — exclamou ele.

Padre Ribeiro vinha esfregando devagar as mãos e declarou que o tempo tinha arrefecido.

— Ou será — acrescentou rindo — que o estômago esteja pedindo o calorzinho das sopas.

— Pois a elas, Sr. padre Ribeiro, a elas!

Mas o procurador espalhava um olhar pelo imenso quarto, onde o leito, com a coberta branca, mal alumiado pela luzinha da vela, parecia perdido na vastidão do soalho e do teto negro! Sua excelência não tinha ficado muito bem acomodado, não! Mas assim de repente, com a casa desmobilada, e longe da cidade...

— Estou perfeitamente — acudiu José Ernesto. E com sinceridade: — Pelo contrário. Até me soube bem esta largueza... A gente, em Lisboa, naqueles cubículos, morre sufocado.

Padre Ribeiro sorriu com amizade:

— Pois então é vir para cá, para a província... Olhe, largueza tem. E bons ares. E o que se come é são. Está claro, não há os regalos da corte, nem os teatros, e essas sociedades de que os jornais falam...

E como José Ernesto encolhia os ombros, rindo, no desdém e no cansaço desses regalos, padre Ribeiro deu com inteira franqueza a sua opinião sobre as cidades:

— Cidades, meu caro senhor, são pedreiras! Muita pedra, muita parede. E gente de mais, anda-se aos encontrões, tudo são cerimônias, não há a rica liberdade! Eu lembro-me muito bem, quando vivia em Lamego... Lamego tem recursos... Pois hoje ninguém me pilhava em Lamego! Olhe, sabe o que não cansa? É uma pessoa abrir pela manhã a sua janela e respirar o cheiro da verdurinha, e ouvir a passarinhada, e descer em chinelos para debaixo das sombras, e estar ali muito quieto, com Deus... Hoje ninguém me pilhava em Lamego...

— Também, o Sr. padre Ribeiro, agora, está afeiçoado ao Sr. D. Gaspar, às meninas...

Mas o caseiro entreabriu a porta, anunciando a sopa. E quando entrou na sala, José Ernesto teve uma sensação de conforto e de apetite, diante da pequena mesa, nessa noite mais bem alumiada, com a toalha muito branca, o prato de azeitonas lustrosas, as duas canecas onde o vinho ainda tinha espuma. A sua cadeira era a de braços; a chuva fora cantava mais pesada; a sopa rescendia.

E terminou por esfregar também as mãos, e exclamar, rindo:

— Agora, neste momento, é que não importa a chuva. Até sabe bem ouvi-la cair lá fora.

E o caseiro, com um brilho nos olhos:

— E a terrazinha vai bebendo, que bem o necessitava.

E todos três sorriam, contentes.

O jantar estava delicioso, de um sabor cheio de relevo, com o cheiro gostoso de petiscos do campo — e José Ernesto, enchendo o copo, pensava que um rosto, uns cabelos de mulher, ali, na luz, entre as louças claras, tornariam encantadora aquela sala, mesmo assim nua e sem conforto, com a chuva a cantar no laranjal.

— Esta casa deve ser antiga — considerou ele, desafiando agora, com prazer, a loquacidade do padre Ribeiro.

O procurador acudiu logo, contando que existia no cartório um velho pergaminho relativo a uma compra de terras para o lado do rio, que tinha a data de 1412.

— É bonito! — murmurou José Ernesto com respeito — começo do século XV. Ainda existia o Império Romano do Ocidente.

E isto foi motivo para que o Sr. padre desenrolasse a genealogia do Sr. D. Gaspar. Ela era ilustre. Mergulhava as suas raízes vetustas nas invasões godas, lançava ramos poderosos por todos os reinos da Espanha e através dela se entreviam armaduras de heróis e auréolas de santos. O Sr. D. Gaspar era o décimo sexto senhor das Quelhas. Um outro D. Gaspar antigo trouxera o estandarte real na batalha das Navas de Tolosa...

José Ernesto que escutara, muito interessado, terminou por dizer, deitando a cabeça para as costas da cadeira e passando a mão pelos cabelos:

— É ainda uma boa coisa, um bom sangue...

— Pois melhor do que este, meu caro senhor, não o há no reino. E olhe que a raça, apesar de velha, é forte. O Sr. D. Gaspar, há dois ou três anos ainda vergava um cano de espingarda! E nunca vi entrar o médico naquela casa.

José Ernesto exclamou, quase entusiasmado:

— Isso é tudo! A saúde é o essencial numa família, numa raça. Aquelas mulheres, em Lisboa, parece que se desfazem, que se andam a dessorar. Se ao menos aquela fraqueza fosse compensada pelo requinte, o afinamento da natureza... Mas qual! São doentinhas e tolinhas!

Estava realmente excitado, e o procurador sorria, satisfeito, remexendo a salada. Sim, as senhoras de Lisboa eram enfezadinhas... Más comidas, más águas!

O caseiro que entrava com uma garrafa especial de vinho do Abade de Carmelinde, anunciou que a chuva tinha parado: havia mesmo um bocado de céu limpo. Então foi uma grande esperança — e o delicioso vinho do Abade foi bebido entre planos para a visita à quinta e aos arredores, no dia seguinte, logo de manhã cedo. Mas o caseiro e o sacerdote não concordavam: — um queria que se fosse direito ao Mieiro e se entrasse pelos carvalhos, de modo que sua excelência fizesse primeiramente uma ideia de toda a freguesia — o outro preferia que sua excelência visitasse primeiro a quinta, a começar pelo campo da Costa, e fossem depois ao Cerejal, onde tinham os cavalicoques, para irem dar o lindo passeio até São Brás. Ambos, porém, asseguravam a sua excelência que havia tempo de visitar tudo e tomar o comboio das seis horas para o Porto.

José Ernesto, porém, não respondia, torcendo o bigode. Aquela partida para o Porto, e daí para Lisboa, que o separava por uns poucos de meses do Paço, mesmo quando se decidisse a comprá-lo, pareceu-lhe de repente brusca e desagradável. Era como se subitamente o arrancassem de ao pé de não sei quê de vago e ao mesmo tempo real, que o estava interessando e acordando a sua curiosidade. Necessitava realmente estudar, conhecer melhor aquela região. Gostaria de se demorar, vaguear uma semana por aqueles arvoredos e vales.

Depois de um silêncio, de repente, perguntou se não havia um hotel em Vilalva. O padre Ribeiro e o caseiro sorriram:

— Em Vilalva, um hotel? Nem um catre para um trabalhador!

Então José Ernesto, que acabara o café, foi à janela. Com efeito, não havia rumor de chuva benéfica. Os campos repousavam sob a paz da noite, saciados e mudos.

Acabado o cigarro, foi sentar-se no canapé de palhinha — e o serão começou por um longo silêncio entre ele e o procurador, que ficara na sua cadeira, com os cotovelos encostados à mesa, num repouso e sonolência de digestão que lhe cerrava irresistivelmente as pálpebras grossas.

— Se houvesse um baralho — disse, por fim, José Ernesto — podíamos jogar uma bisca.

O procurador abriu os olhos, sorriu, fez: hê, hê — e de novo as pálpebras lhe descaíram, pesadas e dormentes. E José Ernesto terminou por se estirar no canapé, pensando com tédio na sua volta a Lisboa. A sua vida na capital, agora que a via, assim de longe, de entre aquele silêncio de aldeia, no seu conjunto, parecia-lhe intoleravelmente vazia e estéril. Que era ele? Um cavalheiro com uma boa fortuna em inscrições e prédios. Um dia em cada trimestre recebia a sua renda do Estado e dos inquilinos, e todos os outros trezentos e sessenta e um dias os passava gastando essa renda, em comer, em passear, em atos de instinto, exatamente como os do seu cão! Atos de inteligência, de uma humanidade superior, não passavam de algum livro folheado à noite, para adormecer, de um bocado de bluff no clube, de uma ou outra contradança no inverno, e de parar, no Chiado, diante de algum amigo para murmurar com tédio: — "que há de novo?" — Não era realmente uma existência humana! E era sobretudo de uma tão grande solidão!... Amigos, parceiros, as damas que contradançavam, eram na verdade para ele como sombras, meras aparências — e quando por acaso se constipava e tinha de ficar em casa, todas essas sombras se dissipavam e para ele deixavam de existir o mundo e a sociabilidade humana. Decerto, podia casar: tinha de casar, como todos os homens... Mas com quem? Ele exigia tanto numa mulher — a beleza! a alegria! a saúde! a bondade! a simplicidade!... E depois, ainda, princípios sólidos, para que o seu lar fosse honrado! E depois, ainda, uma raça antiga, porque "no fundo, é uma boa condição!..." Onde estava, por acaso, essa maravilha?

Padre Ribeiro, que havia instantes ressonava, teve um ronco tão forte que despertou: e endireitando-se na cadeira, pedindo desculpas a sua excelência — o seu primeiro cuidado foi ir à janela ver se chovia. Não, com efeito o céu limpara, prometia um dia claro. De modo que o que lhe parecia razoável, visto terem a esperança de madrugar e de visitar a freguesia, era retirarem para vale de lençóis... E ele mesmo arranjou a vela de José Ernesto, que acompanhou, ainda estremunhado e bocejando, até à porta do quarto.

— O Sr. padre Ribeiro, lá em Vilalva — dizia José Ernesto pelo corredor — deita-se cedo, deitam-se todos cedo...

Sim, com efeito, em Vilalva, aí pelas dez, estava tudo recolhido. Só a Sra. D. Maria Joana é que tresnoitava.

— Passa às vezes da uma hora da noite e ainda está na sala, sozinha, a ler! E a casa toda apagada. E não tem medo! Enfim, cada pessoa tem lá os seus hábitos e as suas ideias.

Estavam à porta do quarto, ambos com os castiçais na mão — e então José Ernesto, rindo, e com imensa familiaridade, acusou padre Ribeiro de pouca predileção pela Sra. D. Maria Joana.

O procurador arregalou os olhos, quase ofendido:

— Ora essa! Isso seria ingratidão! Ih, Jesus, Sou tão amigo dela como das outras meninas...

José Ernesto ria, gracejava:

— Isto é brincadeira, Sr. padre Ribeiro! mas como tem falado já das ideias da Sra. D. Maria Joana como se fossem singulares...

Padre Ribeiro concordou que nem sempre apoiava as ideias da Sra. D. Maria Joana:

— Olhe, por exemplo, divergimos em política...

— Em política?

— Eu lhe digo... A Sra. D. Maria

Joana tem ideias muito livres. Chega a ser republicana!... Para ela, todos são iguais! Não há nem fidalguia nem povo. Eu também sou liberal, mas enfim, há hierarquias. E vossa excelência, por exemplo, não aperta a mão ao seu criado...

— Nem a Sra. D. Maria Joana!...

— Muito capaz disso, meu caro senhor, muito capaz disso!

— Mas enfim, não casaria com o criado! — exclamou José Ernesto, rindo sempre, com o mais vivo interesse por aquelas confidências.

Padre Ribeiro encolheu os ombros: nem ele sabia se ela não casaria com o criado!

— Acredite vossa excelência que não sei. Muito capaz disso! Quero dizer, não casa porque o criado não chegaria lá às alturas que ela fantasia. Mas se chegasse!... Olhe que já perdeu dois casamentos soberbos. Então o último, com o fidalgo da Avelã, lá nosso vizinho, nem se compreende! Um bonito rapaz, com belas propriedades! Mas então, não o achava esperto. Declarou ao pai que o rapaz era um sensaborão, e nada! Está claro, o fidalgo da Avelã não é homem de livros. Mas eu não sei por quem ela espera!

Tornou a encolher os ombros:

— Enfim, tem lá as suas ideias, mas é uma perfeição de menina, e Deus há de fazê-la feliz. Não será por falta de eu lho pedir!... E aqui ficamos de palestra, com os castiçais na mão. Tenha vossa excelência muito boas noites. Às seis cá o mando acordar.

José Ernesto entrou no quarto, foi pôr devagar o castiçal sobre a mesa e ficou encostado à beira da cama, perdido em pensamentos vagos, com os olhos na luz. A solidão da sua existência voltava de novo a aparecer-lhe, muito nítida, com uma forma quase material, como um grande descampado onde era sempre crepúsculo. E ao mesmo tempo sentia um desejo vago de ficar ali, muito tempo, naquela aldeia onde todavia a solidão lhe seria mais profunda e real. Quando se deitou, suspirava, sem razão, com um vago enternecimento. E antes de adormecer, na escuridão do quarto, via passar, fugir, o brilho de uns cabelos de ouro que corriam num jardim.

Às sete horas, o caseiro bateu à porta do quarto. José Ernesto gritou de dentro, estremunhado:

— Então?

— Saiba vossa excelência que está chovendo, e a valer...

José Ernesto escutou. A chuva caía, despenhada sobre o Paço!

Quando José Ernesto daí a pouco apareceu na sala, padre Ribeiro que esperava, plantado tristemente à janela, abriu os braços, desolado:

— E então que me diz vossa excelência a esta infelicidade? Em fins de abril!

José Ernesto hesitou um instante, com um leve rubor na face; depois, olhando também o céu fusco, as longas cordas de água:

— Tenho estado a pensar, Sr. padre Ribeiro, e eis o que me parece mais razoável. Este tempo não melhora. Eu também não posso voltar para Lisboa sem ter visto a propriedade e tomado uma resolução. Mas como já aqui estou e a jornada a Vilalva não é grande, acho que o mais razoável é ir durante estes dias de chuva conversar diretamente com o Sr. D. Gaspar, porque a gente por cartas nunca se entende; assentamos bem as nossas condições, e depois, em aliviando o tempo, volto por aqui, e visito a propriedade e o sítio com o amigo Brás. Que lhe parece?

O padre Ribeiro esfregava as mãos lentamente:

— Acho muito bem... Acho muito bem! O Sr. D. Gaspar há de estimar muito... Eu não posso oferecer a casa, que não é minha, mas vossa excelência, na tia Rita, está perfeitamente. Eu falo com ela... Eu tinha hoje aí o carro para voltar... Acho muito bem.

— Podemos partir depois do almoço.

— Como vossa excelência quiser. O Sr. D. Gaspar há de ter muito gosto. Estamos lá aí por volta das quatro horas. Acho muito bem.

José Ernesto voltou logo ao quarto, cantarolando, a arrumar a maleta. Depois, foi percorrer com o padre, outra vez, o Paço todo, até à adega. Mas agora já se detinha nas salas, estudando consertos, tabiques que deitaria abaixo — fez mesmo planos de mobílias. Quando vieram almoçar, era como se ele fosse já o dono do Paço, e declarou mesmo que faria ali a sala de jantar.

Ao meio-dia a chuva cessou; e imediatamente o Brás propôs uma visita, pelo menos até ao rio, pela avenida dos carvalhos. Mas José Ernesto recusou: — Não valia a pena encharcarem-se até aos joelhos, receber talvez uma impressão desfavorável, quando daí a dois dias ele viria fazer então a visita completa e repousada. De resto o cocheiro, já no pátio, instava para que marchassem, para aproveitar a aberta.

José Ernesto, alegre e ligeiro, levou ele mesmo, apesar das exclamações do caseiro, a sua maleta para o carro. Então o Brás pediu que esperassem um instante: queria ir buscar umas poucas de rosas, de uma bela roseira de ao pé do tanque, que o Sr. padre Ribeiro levaria às meninas. O ramo foi acomodado dentro de um cesto — e José Ernesto tirou uma pequena rosa que pôs ao peito.

Depois, ao largar a traquitana pela grande estrada, que ali subia toda em encostas, José Ernesto perguntou:

— Como é o nome todo do Sr. D. Gaspar?

— D. Gaspar Maria Alcoforado Teles de Meneses.

A chuva cessara de todo; havia uma nesga de céu azul.

Quando a carruagem ia entrando em Vilalva, ao passar no Cruzeiro, padre Ribeiro teve um sobressalto, debruçou-se na portinhola, gritando ao cocheiro que parasse.

— São as meninas! É o Sr. D. Gaspar!

E com efeito, junto do Cruzeiro, ia caminhando um homem alto, de grandes barbas e chapéu desabado, com uma senhora envolvida numa capa de borracha. O padre Ribeiro saltou do carro — e ali mesmo, na estrada, fez a apresentação do hóspede. E pelos magníficos cabelos louros, José Ernesto reconheceu a Sra. D. Maria Joana! Era alta, de um branco saudável e doce, com belos olhos verdes, finos e meigos.

Padre Ribeiro mostrou logo o cesto de flores. Ela tirou uma rosa que prendeu no botão do casaco. José Ernesto ia já conversando com o Sr. D. Gaspar, caminhando a pé para a tia Rita, que era logo adiante do Cruzeiro, nas primeiras casas da vila. Depois, quando ela se acercou, o velho afastou-se para dar uma ordem ao cocheiro. Maria Joana e José Ernesto ficaram um momento sós na estrada.

Tinham ambos, ao peito, rosas da mesma roseira...

Seis meses depois casavam, na capela do solar de Vilalva, por uma manhã também de grande chuva.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...