9/15/2019

Os românticos (Ensaio)



Os românticos

Depois da independência política, esforçaram-se os nossos avós por fazer a literária e artística. Coincidindo o movimento, que aqui se operava, com a renovação romântica, vinda através da Inglaterra e da Alemanha para a França, nada mais natural que nós, já sob a fascinação da literatura francesa, procurássemos no Romantismo o roteiro intelectual. Reagindo contra os remanescentes do estilo clássico, que lhes relembrava, quando menos, os estreitos processos da metrópole, entregaram-se confiantes os nossos escritores à nova corrente que, então, entrava em sua fase mais brilhante. Voltaram-se para a terra natal, e, vendo a sua enormidade inculta e desconhecida, procuraram fazer dela uma grande e nobre nação. Entramos, pois, sob o influxo do Romantismo, no período autonômico da nossa literatura.

Desprezados os nomes de muitos poetas sem maior significação, veremos que a nossa poesia romântica apresenta quatro feições distintas. Na primeira, depara-se-nos Gonçalves de Magalhães; na segunda, Gonçalves Dias; na terceira, Álvares de Azevedo; na última, Castro Alves. Gonçalves de Magalhães é geralmente considerado o pioneiro do movimento romântico em nossa pátria. O aparecimento dos Suspiros Poéticos, em 1836, saudado por todos os críticos de responsabilidade como obra original e vigorosa, marcou época em nossas letras. A novidade de tal poesia não estava no calor do sentimento patriótico, pois, desde a escola mineira, e porventura ainda mais longe, com Gregório de Matos e Rocha Pita, muitas vozes nativistas ecoaram por aqui; não estava, também, no acento religioso, já distinto em Souza Caldas, mas na íntima expressão de ambos, com a predominância ora de um, ora de outro. A forma aparece, por igual, mais variada, complica-se mais, apesar de guardar ainda um característico sabor clássico, muito do agrado de Magalhães. Ele influiu na poesia nacional:

1º) — porque lhe deu mais liberdade, maior movimento de ritmos e mais fantasia nos assuntos; 2º) — e porque lhe introduziu um alto caráter religioso e patriótico, largo e eloquente.

Gonçalves Dias foi, sem dúvida, a primeira voz definitiva da nossa poesia, aquele que nos integrou na própria consciência nacional, que nos deu a oportunidade venturosa de olharmos, rosto a rosto, o deslumbramento dos nossos cenários. Nesse homem pouco vulgar palpita com inigualável intensidade a luz dos nossos horizontes, a limpidez de nossos céus, e o sonoro fragor dos nossos rios. Ninguém, até ele, mostrara em tão elevado grau essa compreensão da natureza, esse conhecimento profundo e claro do seu papel na poesia. Há por toda a sua obra, acompanhando as notas de bucolismo, ou as religiosas, ou as puramente descritivas, um idílio permanente com a natureza, de que era ele enamorado, singular. Não se lhe percebem as ruidosas proclamações patrióticas dos românticos da primeira hora; não se lhe descobrem, também, as fastidiosas tiradas sobre a imortalidade da alma, a existência de Deus, a perfeição da Igreja, e outras divagações quejandas, muito estimadas do autor dos Cânticos Fúnebres e dos seus epígonos. É como poeta da natureza que deve Gonçalves Dias ser estudado, sem o que não conseguiremos apanhar-lhe a fisionomia interior. O indianismo não foi mais que um resultado dos seus pendores, pois, ele se aproveitou da vida selvagem para poder mostrar, em toda a sua pujança, a luxuriante e colorida terra brasileira.

Com Álvares de Azevedo, tomou a nossa poesia rumo diferente e matizes novos. A sua Lira dos Vinte Anos trouxe às nossas letras o amargor irônico de Byron, a melancolia de Musset, a inquietação de Shelley e Espronceda, e o pessimismo imaginativo de Leopardi. Os aspectos ruins da vida, os vícios e as deformações de toda espécie, a atração pela carne, o desejo lúbrico e desvairado irromperam de todos os carmes, como se a nossa poesia estivesse entregue, momentaneamente, a angustiosos histéricos. Concorria para agravar o mal, não só a novidade sedutora dos cantos, mas ainda a morbidez ingênita dos cantores. Uns, por doenças físicas, outros por sofrimentos morais, o certo é que todos os imitadores de Álvares de Azevedo mostraram-se fracos e desalentados em face da vida, sem energias para o rude combate do mundo, em constante conflito com o ambiente em que viveram, reagindo apenas com imprecações e ameaças, sorrisos e suspiros, contra a onda temerosa que os arrastava no seu torvelinho. A poesia da dúvida, ao mesmo tempo dolorosa e irônica, elevou-a Álvares de Azevedo á mais alta intensidade, servindo-se para isso de um estilo cheio de tons velados, e daquelas meias tintas tão do gosto dos satanistas, como Baudelaire e Rollinat, aos quais, diga-se de passagem, nada ficou devendo o nosso poeta. Êmulos de Álvares de Azevedo foram Laurindo Rabelo, o poeta lagartixa, Junqueira Freire, Casimiro de Abreu, lírico dos mais populares do Brasil, e Fagundes Varela, um dos nossos melhores poetas descritivos, de larga e numerosa inspiração.

Castro Alves encontrou na campanha abolicionista a finalidade da sua ardente poesia; ele possuía, além de admirável poder verbal, emoção agudíssima e fina sensibilidade. Juntava, assim, as duas forças motrizes da poesia, isto é, a eloquência, que pertence à imaginação, e a doçura que é fruto do sentimento. Não podia deixar de ser, pois, como realmente o foi, um dos maiores caiadores de símbolos, não só da nossa, senão até das letras portuguesas, muito embora lhe saísse por vezes impura a dicção e abusasse constantemente das chamadas licenças poéticas, que são o visgo onde a sua larga asa se despluma inutilmente. Vibram-lhe nos poemas, cordas ignoradas de paixão e ternura, uma onda de perfumes se desprende dos seus versos de amor, onde reponta um sainete de fatalidade, próprio da mistura de raças, voluptuosas e sensuais. Quando deixava falar o coração, simplesmente, de si para si, fundiam-se todas as arestas duras numa perspectiva suavíssima, feita de tonalidades cambiantes, de macias sombras e odoríferos vergéis. Nossas paisagens entremostravam-se, por um momento, engalanadas de ramagens ricas e aromáticas, o corpo moreno das nossas mulheres destacava-se das folhas reluzentes de orvalho dos espaçosos vales.

Quando, porém, sua voz se elevava para reivindicar direitos oprimidos, como em Vozes d'África e no Navio Negreiro, para estigmatizar tiranias inglórias, como em Pedro Ivo e No Meeting do Comitê do Pão, ou para descrever a dureza de certos preconceitos sociais, como em Ahasverus e o Gênio, sua Musa era bem um incêndio em marcha, para empregar uma expressão de Michelet.

O sucesso do seu lirismo declamatório, empolado e brilhante, onde refulgem, de trecho a trecho, imagens de uma formosura quente e arrebatada, tem as raízes no caráter grandiloquente e enfático da cultura brasileira. Ele foi, e é ainda amado, aqui, por várias razões de ordem moral, porquanto é, de certo modo, um genuíno representante do nosso pendor para o excessivo, até para o extravagante.

Ao lado desses quatro poetas de maior significação, poderemos mencionar Porto Alegre, autor do Colombo, largo poema em versos brancos, onde há porções de real beleza; Francisco Otaviano de Almeida Rosa, em cuja obra se encontram ainda ressaibos de classicismo, à maneira de José Bonifácio; barão de Paranapiacaba, célebre por suas tradições, entre as quais avulta a das Fábulas de La Fontaine; Antônio Francisco Dutra e Melo, que foi também crítico perspicaz; Aureliano José Lessa, lirista delicado; José Bonifácio, o moço, poeta eloquente; Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, colorista agradável e descritor elegante; José Alexandre Teixeira de Melo, que versejou com sentimento, à feição de Casimiro de Abreu; Pedro Luís Soares de Sousa, onde se encontram muitas notas particularmente caroáveis aos condoreiros, aos quais, é mister dizer, precedeu de alguns anos; Trajano Galvão de Carvalho, Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, Gentil Homem de Almeida Braga, Melo Moraes Filho, todos bucolistas leves e agradáveis; Vitoriano Palhares, cujo estro patriótico e inflamável faz lembrar o de Castro Alves; Moniz Barreto, o repentista; Luís Gama, o endiabrado mestiço da Bodarrada, Bruno Seabra e Joaquim Marinho Serra Sobrinho, que descreveram com chiste alguns aspectos do nosso meio sertanejo os quais, em nada concorreram para imprimir feições novas à Poesia no Brasil.

Os prosadores do período romântico são dos mais notáveis da nossa literatura. Somente com Manuel de Macedo e José de Alencar é que a prosa de ficção tomou fisionomia própria, ganhou contornos definitivos, e avultou em nossas letras. Antes da Moreninha e do Guarani houve apenas tentativas mais ou menos felizes, corno as de Teixeira e Sousa e Norberto Silva, todas mui louváveis, porém de apoucado merecimento, se as considerarmos pelo seu valor literário. Manuel de Macedo foi o verdadeiro fixador dos nossos costumes fluminenses e cariocas naquela época ainda colonial na maioria dos seus aspectos. Ele compreendeu admiravelmente os pendores da nossa alma popular, sentimental e piegas, e fez, com pequenas intrigas ingênuas, à guisa de um Bernardim de Saint-Pierre atrasado e rústico, a sua história íntima e simplória. Na imensa galeria dos seus personagens, alguns, a exemplo do Moço Louro, e da Moreninha, vivem na memória de todos os brasileiros, embora os anos hajam decorrido às dezenas desde a sua ruidosa aparição. Seu estilo, a não ser na poesia enfática e palavrosa, é correntio, agradável, flui serenamente. Faltava-lhe apenas um certo colorido, mas é sempre correto no desenho das criaturas e na descrição das paisagens, posto lhe não seja castiça a dicção. Esse colorido, quem o teve por excelência foi José de Alencar. O Guarani e Iracema, sem esquecer as Minas de Prata, são obras fundamentais para quem quiser conhecer a história do nosso romance. Alencar possuía o gênio do pitoresco. Seus romances de índole americana, incontestavelmente os melhores que produziu, são verdadeiras epopeias, onde a urdidura da intriga é quase sempre um pretexto para a pintura de uma série de quadros e painéis naturais, de impressivo poder descritivo. Aprendemos com ele a ter estilo, isto é, a considerar o romance como obra de arte, e não simplesmente como um divertimento, um mero jogo de situações, mais ou menos possíveis, ou um punhado de anedotas picantes. Se não bastassem as suas qualidades de lirista delicado e imaginoso, Alencar teria ao menos influído pela riqueza da forma, antes dele desconhecida em nossa prosa de ficção. Sucedendo a Macedo e Alencar, surgiram Manoel de Almeida, autor das Memórias de um Sargento de Milícias, onde se vislumbra um narrador sagaz do meio popular no Rio de Janeiro; Bernardo Guimarães, pintor artificioso, mas interessante, do ambiente sertanejo; Franklin Távora e Escragnole Taunay, ambos notáveis por suas novelas de assunto nacional, das quais, O Cabeleira, do primeiro, e Inocência, do último, deveriam ficar popularizadas em nosso país.

Entre os críticos, publicistas e historiadores desse período, vale apontar Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto-Seguro, um dos mais ativos pioneiros dos estudos históricos e literários, e o maior escavador de arquivos de que há notícia no Brasil; Pereira da Silva, cuja obra um tanto fantasista revela espírito operoso; Sotero dos Reis, espécie de Quintiliano brasileiro, de muita lição e pouco aprazimento para o leitor; Joaquim Norberto de Souza e Silva, esforçado amigo das nossas tradições, e João Francisco Lisboa, o crítico mais sagaz e agudo entre os seus contemporâneos.

Aos românticos devemos, também, a criação do teatro nacional. Pode-se afirmar que ele surgiu em 1838, com a tragédia Antônio José, de Magalhães, e a comédia de Martins Pena, O Juiz de Paz na Roça. Sobressaíram, no gênero, o já citado Martins Pena, talvez o mais forte teatrólogo do tempo, França Júnior, Macedo, Alencar, Agrário de Menezes, Pinheiro Guimarães, Augusto de Castro e Álvaro de Carvalho. O teatro do romantismo é, porventura, até hoje, o mais característico da nossa literatura, pelo menos o mais nacional, sem preocupações estritamente regionais, e por isso, perfeitamente sincero e representativo.

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RONALD DE CARVALHO
Estudos Brasileiros (1924)
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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