O anjo da solidão
Agradável e venturosa era a existência
que saboreava no Frade a bela e inocente Maria.
Na hora em que, despertos no seu ninho
pela tênue claridade que a poética precursora de Febo bruxuleava, da garganta
delicada extraíam os passarinhos estrofes sublimes, nessa hora tão decantada,
erguia-se ela do seu humilde leito.
Erguia-se; e vestindo sobre a camisa e
saia um simples vestido de chita clara, que debuxava as suas delicadas formas e
os contornos de seu garboso corpo, sem atavio sequer, nem dando-se ao trabalho
de pôr-se ao espelho e pentear seus negros e bastos cabelos, ia, sobre o tope
duma colina, aguardar o nascimento do astro majestoso que maior testemunho dá
da grandeza do Criador.
E aí, saltitando a cada momento,
sorrindo inebriada com os eflúvios do ar puro da manhã, tentava com uma
singeleza infantil parodiar, ora as ternas e maviosas canções do sabiá, ora os
alegres trinados do canário e ainda os gemebundos arrulhos da melancólica
rola. Era nesse imenso teatro da
natureza uma atriz, que por espectadores apenas tinha aqueles de quem copiava
as vozes.
Quando enfim, dourando ligeiras nuvens,
surgia o sol na orla do horizonte, a encantadora menina deixava subitamente de
imitar aos ledos passarinhos e entoava, com voz argentina e melodiosa, cantos
de nativa inspiração.
Depois deitava a correr, saltando de
quando em quando, como uma criança traquina, e, certa de que ninguém a via,
desmudando as suas formas graciosas, mergulhava- as nas rumorosas e espumantes águas
de uma cachoeira, que, por assim dizer, precipitavam-se em avalanchas.
Nesse lugar conservava-se ela, até que,
fatigada dos contínuos choques que sofria e das incessantes e várias posições
que exibia, sempre cantando, após ter velado as graças a que pudicícia impõe
recato, regressava ao seu lar, nadando em alegria.
***
No lar, no seio de sua família, era a
mesma a inconstante Maria.
Semelhante à borboleta, em todos os
sítios libava o suco melífluo do prazer.
Ao chegar a casa, tomava a benção paterna, lançava-se aos braços da mãe,
beijava-a e, sorrindo, dava piparotes na pontiaguda cabeça de um irmãozinho de
quatro anos. Choramingava a criança e
ela, compadecida, tomava-a ao colo, embalava-a, fazia-lhe cócegas e
osculava-lhe as faces.
Mas logo que o pequeno aquietava-se, punha-o no chão, dizendo:
— Salta, manhoso.
E, antes que os pais tivessem cessado
de aplaudi-la, sentava-se à costura, cantarolando, com voz doce e prolongada,
cantigas populares.
Era uma esquisita organização aquela: o
canto era a sua distração predileta.
Maria deverá ter nascido pássaro.
***
Nas
simples labutações domesticas empregava ela a maior parte do dia.
À tardinha, antes que no ocidente
descambasse o sol, saía do mesquinho casebre que habitava e ia esperar esse
momento.
Depois de ter assistido a esse
espetáculo, a que ligava sumo interesse, ia então, com passo vagaroso e
tremulo, requebrando-se graciosamente, visitar algumas pessoas da mais próxima
vizinhança, que muito folgavam com o seu aparecimento.
Depois de ter assistido a esse
espetáculo, a que ligava sumo interesse, ia então, com passo vagaroso e
tremulo, requebrando-se graciosamente, visitar algumas pessoas da mais próxima
vizinhança, que muito folgavam com o seu aparecimento.
Com efeito, sobre todas as pessoas
exercia singular influencia essa gárrula adolescente.
Uns amavam-na pela sua gentileza,
outros pela sua conversação folgazã e divertidas, outros ainda, os pobres
sobretudo, pelos favores que prodigamente distribuía.
Ao cair da noite recolhia-se a casa e,
antes de deitar-se, orava por seus pais e irmãos com fervor.
Depois... estendia-se languidamente no
leito, fechava os olhos, seus seios agitavam-se em doce arfar e dormia.
Às vezes sonhos fagueiros faziam-na
sorrir e balbuciava os nomes dos únicos entes a quem adorava.
***
Tal
era a sua vida quotidiana, passada com uma regularidade inexcedível.
Um dia, voltando ela do seu passeio
matutino, encontrou em sua casa um belo moço, que, de passagem para São
Francisco de Paula, fatigado, tinha pedido a seus pais curta hospitalidade.
Estava ele, sentado a uma mesquinha
mesa, tomando uma refeição frugal, quando Maria, com a sua natural e inocente
desenvoltura, transpôs o limiar da habitação paterna. Vendo o desconhecido, parou e estremeceu; por
alguns momentos quedou aí, observando-o com inexplicável persistência.
Pasmado desta súbita aparição,
levantara-se o moço para cumprimentá-la, mas também ficou imóvel, sem poder dar
um passo, subjugado pelo altivo e brilhante olhar de Maria.
Quem sabe que ideias nesse momento
turbilhonavam em seu cérebro, presa do ardor da juventude?
Quem sabe o que sentiram estes dois
corações jovens, ainda isentos das feridas roazes dos desenganos?
Quem sabe se para o moço eram os olhos
dela duas pedras de ímã e para a moça os dele?
Quem poderia afirmar se eram ambos
presas desse amor subitâneo e veemente, que rápido apossa-se do coração humano
e domina-o para sempre?
— E então? Que acanhamento é esse?
Perguntou alfim a mãe de Maria, vendo-a hesitar em cumprir com o dever de
saudar o hospede.
— Nunca viu gente? Acrescentou o pai,
aplaudindo o seu próprio dito.
Chamada assim ao sentimento da
realidade, a menina recuperou a sua habitual serenidade e infantis exteriores.
Soltando uma estrepitosa gargalhada,
que fez estremecer ao moço, como se sofresse um choque elétrico, disse ela:
— Se nunca vi gente?... Ora!
— Então como estás aí com tantos luxos,
Cocota? Anda, fala aqui com o senhor.
Anuviando o brilho de seus olhos e
corando, a moça adiantou uns passos e estendeu a mão ao moço.
Este, maquinalmente, fez o mesmo e foi
vencido o principal obstáculo das paixões repentinas.
Em seguida, o moço, relanceando olhares
de fogo à linda virgem, travou com os pais dela conversação sobre assumptos do
lugar.
Às 10 horas da manhã, hora em que o
moço retirou-se, houve entre dono da casa e o viajante, o seguinte diálogo.
Fique certo que a minha casa é também
sua: disponha dela. Nunca passe por aqui sem dar-nos o gosto de sua visita.
— Obrigadíssimo. Sempre que for
possível, com muito prazer abusarei do seu oferecimento.
E, dizendo isso, o moço volveu à menina
um olhar expressivo, que parecia dizer: Virei por ti.
— Abusará, não, senhor; emendo a palavra. Nós, os habitantes do campo, nunca falamos dum modo diferente do que pensamos. Creia que imensa alegria teremos sempre que o senhor se dignar de honrar essa nossa casa.
— Acredito e de novo agradeço-lhe:
aprova de que não minto dar-lhe-ei voltando na próxima semana a ter com as
pessoas tão benévolas para com aqueles a quem não conhecem.
O contentamento irradiou no semblante
de Maria, que fez um ligeiro sinal com a cabeça, como que agradecendo a
promessa de quem levava-lhe o coração.
Perturbado com este incidente, o moço
gaguejou algumas escusas para retirar-se sem demora, despediu-se de todos com
lagrimas nos olhos e desapareceu dentro em pouco.
***
Seis longos dias passaram-se para Maria
e raiou enfim o domingo.
Creio que é Chateaubriand quem diz que
até o boi conhece o domingo.
É esta uma verdade incontestável.
Nas próprias roças onde nada há de
extraordinário nele, nas próprias roças sente-se uma alegria interna, um desejo
inexprimível de gozar, um não sei que que arrebata o homem a um outro mundo,
existente só na sua imaginação.
Era por isso que, de ordinário, no dia
pelo Senhor consagrado ao descanso, Maria despertava mais cedo, tinha mais
transportes de jubilo e recolhia-se mais tarde ao leito.
Desta vez porém não fez o que costumava
fazer na sua digressão matutina.
Se saiu de casa, foi apenas com o intento
de dissimular aos seus pais o tédio de que se achava possuída por tudo quanto a
rodeava.
Desde que perdera de vista o
desconhecido, fora o seu coração invadido por acerba tristeza.
Vivia num mal-estar constante; se ainda
tinha ímpetos prazenteiros, era porque a precaução assim o exigia: não que o
seu coração sentisse o menor prazer.
Não mais arremedava os pássaros, nem a
clara água das cachoeiras tinha a ventura de receber em seu seio o cristalino
corpo da gentil menina.
Em vez de galgar aos saltos o outeiro
donde via erguer-se o sol, como de costume, subia-o indolentemente e,
estendendo o delicado corpo, repousava o rosto na palma da mão. Profundas cismas ocupavam-lhe então o
pensamento e já o sol ia alto, quando ela dava acordo de si.
Então, sacudindo a cabeça, como para repelir as ideias que incomodavam-na, erguia-se lesta, como o amante que, próximo à hora determinada, recorda-se da entrevista prometida.
Com o passo ligeiro dirigia-se para casa, e só quando perguntavam-lhe porque não cantava mais, suspirava as cantigas que noutro tempo tão contente entoava.
No supracitado domingo assim porém não
aconteceu.
Erguendo-se ás 7 horas da manhã,
segundo o seu novo habito, ia arrastando-se com passo tardo, quando de súbito
ergueu a cabeça e sentiu um estremecimento geral, em todo o corpo, ouvindo o estúpido
das patas de um cavalo.
Ficou parada observando todos os pontos
e bem depressa descobriu ao longe um cavaleiro, que vinha com notável
celeridade.
Seria ele?
Ele, a causa única de suas penas?
Não tardou ter certeza de que não a
enganara o coração; da distância em que se achava, o viajante fazia-lhe sinal
com a mão para que o esperasse.
E ela esperou.
Em poucos momentos viram-se os dois
face a face e ambos ficaram silenciosos durante alguns minutos.
De repente a donzela disse:
— Até que enfim...
— Tamanho interesse lhe inspiro eu?
Corou a moça e não respondeu.
— Pois não sabia que eu voltava?
— Sabia; mas não o esperava.
— Era-me impossível não voltar,
replicou o moço; para quem vê os seus olhos uma vez, fugir-lhes é morrer.
— Então o senhor gosta de mim?
— Muito... muito, gentil menina.
— Será verdade? Proferiu Maria, com uma
voz tão triste, tão maviosa, que afugentaria a mentira, se por ventura ali
estivesse.
— Eu o juro por Deus; és a pura
verdade.
— E eu também gosto muito do senhor.
— Oh! Então somos felizes. Quer
casar-se comigo?
— Casar?
— Sim; o que tem?
— Mas se eu não sei o que é isso...
— Eu lhe digo: casar-se é jurar na
igreja o homem à mulher e a mulher ao homem que sempre hão de estimar-se e
acompanhar um ao outro, que gozarão e sofrerão juntos, que hão de ser enfim
como se não fossem ambos mais do que uma só pessoa. Quer?
— Assim quero; mas primeiro há de falar
com Papai e Mamãe.
— Pois sim, quando quiser.
Vamos agora.
Apeando-se, o moço colocou-se a par da
moça e juntos tomaram a direção da casa dos pais desta.
***
Ao
aproximarem-se à porta, nesta surgiu o pai de Maria.
— Oh! Por cá? Exclamou. Como foi de
viagem?
— Bem, excelentemente. Da saúde de
todos os seus já informou-me sua filha.
— Deus lhe pague tamanho interesse por
nós.
— Se alguma coisa merecesse, a única
que cobiço só o Sr. Me poderia dar.
—
Então conte com ela.
— Agradecido.
— Ai! Que me lembrava que o Sr. estava
de pé e fora; faça o favor de entrar.
— Pois não.
E entraram todos.
Após os usuais comprimentos à dona da
casa, que estava na sala, assentou-se o desconhecido, bem como todos os
presentes.
Por singular casualidade achou-se Maria
sentada em frente dele.
— Ainda que mal pergunte, disse Roberto
Dias (o pai de Maria), quem é o senhor? Creio que as relações que temos já nos
permitem indagarmos quem somos.
— Por certo. Chamo-me Emílio da
Fonseca, sou filho de um negociante de Macaé e vim a S. Francisco de Paula
tratar de um negócio seu. Ocupo na casa dele o lugar de guarda-livros, que
dá-me para viver folgadamente. Uma única coisa me faltava para gozar uma
felicidade completa e esta acabo de encontrar.
— Não sabe quanto estimo: queira Deus
que nunca o senhor a perca.
— Se perdê-la, perderei a vida.
— Tanto o senhor a estima?
— Mais ainda do que pode supor.
— E será indiscrição perguntar-lhe qual
será o objeto do seu culto?
— Não; pois é o senhor quem dispõe
dele.
— Diga, que se puder dar-lho...
O moço hesitou em falar.
Encarou fixamente a formosa virgem
alguns segundos, como consultando-a, e vendo tingir-se as faces dela com as
cores do pudor, mas nada dizer-lhe na linguagem muda dos sinais, proferiu
afinal estas palavras, arbitras do seu destino:
O que me faltava, Sr., era a vida
intima da família; uma mulher de quem, idolatrando-a, e eu fosse idolatrado;
uma mulher que com suas caricias mitigasse o cansaço das horas de labor, me
fizesse olvidar os dissabores que sofresse; uma mulher que transformasse num
paraíso o meu deserto e tétrico lar. Debalde procurei-a em toda a cidade: a
minha razão e o meu coração me diziam que seguisse outro rumo. Tal era o estado
de minha alma, quando fui constrangido a esta súbita viagem, que me
proporcionou o que eu anelava. Nela encontrei uma donzela linda e pura como a
Virgem, de quem tem o nome, graciosa e encantadora como a mais sublime das
criações de Rafael; amei-a subitamente, desde logo, com um amor sincero, casto
e sem limites, com um amor digno do objeto do meu culto. Sabeis, senhor, quem é
esse ente, que vai decidir da minha felicidade?
— Diga.
— É vossa filha e eu vô-la peço em
casamento.
Seguiu-se um longo e profundo silencio,
interrompido apenas pelo longínquo rumor das cachoeiras e pelo sussurro do
vento nas folhas do arvoredo.
Maria e Emílio sentiam o seu coração
saltar-lhes precipitadamente nos vulcânicos peitos e encaravam os donos da
casa.
Estes trocavam olhares, visto não se
poderem falar livremente.
De súbito Roberto Dias voltou-se para a
moça e perguntou-lhe:
— É de seu agrado, Cocota?
— Sim, senhor.
Roberto e sua mulher observaram-se e
proferiram a um tempo:
— Cumpra-se a vontade de Deus.
Os bons dos roceiros eram fatalistas.
***
O que se passou depois desta
conversação entre as quatro pessoas presentes.
O que disseram, o que combinaram elas?
Eis o que não podemos dizer.
Mas quando no dia seguinte, pelas 8
horas da manhã, Emilio retirou-se, foi seu companheiro de viagem Roberto Dias.
Era seu fim secreto, soubemo-lo depois,
verificar o que lhe afirmara o mancebo.
Ah! Se todos os pais fizessem isso não veríamos pelo matrimonio
vitimadas milhares de ingênuas criaturas, que se deixam somente guiar pelo
coração.
Não veríamos o homem extravagante
dissipando os ganhos, enquanto a família langue na miséria; não veríamos o
infortúnio à cabeceira da maior parte dos tálamos nupciais.
Entretanto... apressemos o desfecho
desta pequena história.
Reconhecendo a evidencia do que lhe dissera o moço, ratificou Roberto a sua resposta e decidiram que o consorcio deveria efetuar-se na cidade, dentro de um mês.
***
Chegara finalmente a véspera do triste
dia em que a linda virgem tinha de deixar a casa paterna, isto é, de mudar-se
para a cidade.
Estava resolvido que os seus pais
acompanhá-la-iam a Macaé e que aí estariam um mês na companhia dela.
Depois intentavam voltar e continuar no
seu trabalho de lavoura, até que, liquidando o que possuíam, pudessem vir morar
coma querida filha.
Que dia de tristeza foi esse para
Maria!
Ao despontar da aurora, deixou ela a
cama e do seu antigo observatório foi assistir ao nascimento do sol.
Tinha tirado esse dia para reproduzir
as cenas da sua vida passada.
A alegria porém abandonara-a; por tudo
o que fazia, em toda a parte, lagrimas silenciosas brilhavam por instantes nos
seus fulgurosos olhos e caíam, como as gotas do orvalho que balouçam-se nas
folhas das arvores.
Uma dor intima a dominava; nem o amor,
cada vez mais intenso, que nutria, tinha poder bastante para sobrepujar-lhe o
sentimento.
É assim o coração humano: o prazer e o
pesar nele dominam à porfia.
À tarde, Maria andou de porta em porta
despedindo-se dos seus vizinhos, que lhe queriam tanto como aos seus próprios
parentes e que chamavam-na, possuídos de singelo pasmo, - o anjo da solidão.
Chegou alfim a noite e o sono adormeceu
as mágoas da pobre moça.
***
No dia seguinte, banhada em pranto e
soluçando, deixou ela o seu berço, o lugar onde por tanto tempo gozou de uma
felicidade que só podia ser excedida pela celeste. Dois dias depois celebrou-se na Matriz de
Macaé o consorcio de Maria e Emílio. Que
vida passará o cândido lírio do vale solitário transplantado para os jardins
tumultuosos da cidade?
Só Deus e ela o sabem.
---
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2021)
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