Uma vítima da vaidade
Na cidade de..., numa chácara retirada, habitava uma família, cujo chefe
chamava-se Manoel Correia. Ex-empregado público, obtivera a aposentadoria e aí
vivia longe do burburinho da cidade.
Homem vaidoso, o seu único anelo era casar uma filha que tinha com
algum fidalgo, que entusiasmasse-se pela beleza dela.
Com efeito, Elvira (tal era o seu nome) era a moça mais linda que imaginar se pode. Morena, de estatura regular, cabelos e olhos pretos, lábios rosados e pequenos, que, quando entreabriam-se, deixavam ver duas linhas de dentes claros como o marfim; era mais pelas suas maneiras agradáveis do que por esses atributos, que ela cativava a todos aqueles que tinham a dita de conhecê-la.
***
Alfredo Torres, estudante do quarto ano de medicina, tinha vindo
passar, nessa mesma cidade, as férias em casa de sua família, que só à custa de
muitos sacrifícios fazia-o prosseguir os estudos.
Aí pela primeira vez viu Elvira e logo consagrou-lhe amor: não esse
amor vulgar, porém um amor sincero, veemente, arrebatado, capaz de afrontar
todos os obstáculos, que, segundo, um escritor contemporâneo, são os maiores
incentivos dele.
Elvira também, cumpre dizê-lo, logo sentiu no seu peito uma emoção, um
não sei que indefinível por Alfredo; mas ao mesmo tempo o seu coração pressago
augurava-lhe infortúnios. É que Alfredo além de não ser fidalgo, era pobre, e o
seu amor havia de encontrar oposição da parte do seu velho pai, que aspirava
ter um parente nobre, que ilustrasse a família.
Todavia amaram-se.
***
Estavam prestes a extinguir-se as suas férias e Alfredo preparou-se
para tornar à Corte.
Sempre, nessa ocasião, ele partia alegre, pois ia dar mais um passo
para chegar ao fim de sua carreira.
Desta vez porém, foi preciso que a família designasse-lhe o dia em que
devia partir.
Nem era de esperar outra coisa: quem pode abandonar sem pena o seu
coração?
E o coração de Alfredo ficava.
Na véspera da partida foi despedir-se da família de Elvira. Oh! Deixem
os leitores que eu passe em silencio este ponto de sua vida: era mister outra
pena que não a minha para descrever a dor desses dois corações cheios da seiva
da juventude, obrigados ainda a ocultá-la, a reprimi-la.
***
Havia já três meses que Alfredo partira para continuar os seus estudos
que Elvira vivia adormecida nos braços da esperança, quando um dia o seu
aristocrático pai introduziu no seio de sua família, com muitas recomendações,
um fidalgo recém-chegado à terra. Era de origem espanhola, dizia ele,
chamava-se D. José Sanchez e tinha o título de barão da Felicidade.
Após dois meses de assídua frequência à casa, pediu ao Sr. Manoel
Correia em casamento a sua encantadora filha.
Imagine-se a alegria deste, vendo realizada a sua única ambição.
Prontamente concedeu-lhe o que queria, sem ao menos consultar a vontade da
filha. – Ela é dócil, pensava, e por força há de fazer o que lhe ordenar.
Mas, se Elvira era dócil, desta vez enganou-se ele. Não só declarou-lhe
que não votava a menor simpatia a esse homem, cujo passado não era conhecido,
como até declarou-lhe que já tinha disposto de seu coração.
Correia ficou furioso e disse-lhe que nunca permitir-lhe-ia que se
casasse senão com Exmº. Barão da Felicidade, ou com outro de sua hierarquia;
que Alfredo era um miserável; e que, quanto ao passado do barão, não importava
a ninguém.
Para ele o titular não era responsável pelos maus atos que praticara
anteriormente, quando usava de seu nome de batismo.
Infeliz Elvira!
***
Vejamos agora quem era o homem destinado para esposo desse querubim.
Filho natural dum taverneiro português, nascera ele numa das cidades
deste vasto império.
Tendo o seu pai, por meio de muitos roubos e baixezas, bem como pela
miséria em que viviam, ajuntado muitos cabedais, morrendo, deixou-lhe toda a
sua fortuna.
Digno filho de tal pai, D. José Sanchez, que nesse tempo era conhecido
por José Medeiros, continuando a acumular dinheiro do mesmo modo, e só
empregando-o em negócios ilícitos, fez afinal uma viagem a Espanha e a
Portugal, donde voltou com o título de dom, outro nome e um baronato. Eis quem
era D. José Sanchez, barão da Felicidade.
***
Dois meses se tinham passado depois do infausto dia em que o futuro de Elvira tinha sido anuviado por seu pai.
Durante esse tempo, nunca se passou um só dia em que ela não ouvisse,
direta ou indiretamente, alusões a si, como filha desobediente e de sentimentos
baixos, ameaças de maldição paterna e por consequência de castigos na outra
vida.
Finalmente uma manhã apresentou-lhe o seu progenitor um ultimatum: por bem, ou por mal havia de
cumprir as suas ordens.
A pobre moça, tendo perdido esperança de casar-se com Alfredo, e
temendo as ameaças de seu pai, pois era uma filha modelo, disse-lhe que estava
ao seu dispor, que fizesse o que intendesse, não obstante desprezar o noivo que
se lhe impunha.
Mal ouviu isto dirigiu-se logo Correia ao palácio do barão, relatou-lhe
o ocorrido e pediu-lhe que determinasse com presteza o dia em que se devera
efetuar o seu consorcio.
***
Faltavam oito dias para Elvira perder o seu nome, tornar-se baronesa da
Felicidade, ela – a vítima da desgraça.
O Sr. Manoel Correia exultava, crendo ter conseguido a execução de seu
maior anelo – afidalgar sua família.
O barão ainda mais contente estava por ter comprado com a sua infâmia a
posse de uma divindade terrestre.
Só Elvira era triste, apesar das felicitações que de toda a parte e a
cada instante recebia. Pálida, magra, sempre pensativa, dir-se-ia que era presa
de alguma enfermidade.
E na realidade bem próximo estava o dia de sua morte. Pressentindo-o,
escreveu a Alfredo a seguinte carta, cinco dias antes do destinado para a
realização do seu himeneu.
“Alfredo,
“Perdoa-me o golpe que subitamente vou dar-te; mas se não dei-te antes
foi esperando que a desgraça se compadecesse de mim e de ti.
“Cinco meses depois de sua partida, meu pai ofereceu-me como esposo um
fidalgo improvisado, um tal barão da Felicidade, recém-vindo do estrangeiro.
“Recusei: disse-lhe que só a ti consagrava amor, que detestava esse
homem.
“Julgava ter vencido a férrea vontade de meu pai; mas eis que há poucos dias ordenou-me que lhe obedecesse, isto é, que casasse-me com o seu escolhido, sob pena de, caso de novo rejeitasse, merecer a sua maldição.
“Sem lhe dizer que sim, respondi que fizesse o que entendesse. Tu és
bom, meu querido Alfredo, podias aprovar a desobediência de uma filha?
“Ajustaram meu pai e o meu futuro marido que a celebração do meu
matrimonio terá lugar daqui a cinco dias. Mas creio que o céu se compadeceu de
mim; parece-me que estou bem doente, que está próximo o dia de minha morte.
“Adeus; Alfredo; sou e continuarei a ser,
Tua fiel amante
Elvira”.
***
No dia seguinte àquele em que escrevera a carta acima, Elvira foi
acometida duma febre tão violenta, que os médicos logo a desenganaram.
Nos momentos de delírio, o nome de Alfredo, acompanhado de palavras
ininteligíveis, nunca lhe saiu dos lábios.
A morte zombou da ciência: no dia em que devia cingir a capela de
noiva, cingiu a da imortalidade, deu a alma ao criador.
Pobre vítima da ambição e do orgulho, foi no céu receber entre os
anjos, seus irmãos, o prêmio de seu martírio.
Quando Alfredo, já aflito pela leitura da carta que ela lhe dirigiu,
recebeu a notícia de sua morte, despedaçou o crânio com um tiro de revólver.
***
No dia 2 de novembro de 1860, um velho chorava sobre uma sepultura e
arrancava os cabelos, com visíveis sinais de loucura.
A sepultara encerrava os despojos mortais de Elvira e o velho era
Manoel Correia, que murmurava febrilmente:
— Elvira... Alfredo... perdoai ao vosso assassino.
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Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2021)
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