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4/20/2025

D. Amélia e a política (Conto histórico), de Paulo Setúbal


D. AMÉLIA E A POLÍTICA

Durante apenas dois anos de reinado — 1829 a 1831 — que poderia ter feito D. Amélia na política do Brasil? Quase nada. O poderio dela cifrou-se, nesse par de anos, em nortear para um caminho mais moralizado o caráter boêmio do Imperador. D. Amélia venceu integralmente o marido. A sua formosura, apregoada com tubas altas por todos os contemporâneos, teve filtros venenosos, que amalucaram o coração enamorado do moço vulcânico.

Daí, desse predomínio, as suas vitórias. Vitórias frágeis, na aparência; mas, na realidade, dificílimas de serem conquistadas.

Assim, foi D. Amélia, de parceria com Barbacena, a única que teve o supremo arrojo de tramar — de tramar e conseguir! — a expulsão do célebre Chalaça do Brasil.

Também conseguiu ela (e isto foi outro serviço grande) arredar do marido, de João Pinto da Rocha, aquele valido detestável, falcatrueiro cínico, que desmoralizava o trono e o Imperador.

João Pinto da Rocha partiu da corte para um emprego na Europa. Lá, após muitas aventuras, meteu uma bala nos ouvidos.

Foi também D. Amélia, com ríspida dignidade e compostura, quem conseguiu lançar fora do Paço definitivamente tudo quanto lembrasse a Marquesa de Santos. Assim, na manhã seguinte à chegada, a duquezinha de Goiás, a bastarda que D. Pedro reconhecera, teve ordem de sair imediatamente de S. Cristóvão. Saiu a meninazinha, a toque de caixa, com as suas açafatas D. Josefa e D. Bárbara, primas da Marquesa de Santos. Instalaram-se todas em Niterói, na casa que foi de D. João VI.

Dizem uns — e Mello Moraes o afirma — que D. Amélia se bateu para que D. Pedro não abdicasse o trono de Portugal na filha D. Maria da Glória. Isto porque sempre afagara a ideia de que D. Pedro viesse a ser um dia Imperador do Brasil e Rei de Portugal. Até onde vai a verdade dessa afirmativa?

Impossível responder. Não há, em documento sério, a comprovação dessa atitude política de D. Amélia. Pouco importa tal atitude. Mesmo que a Imperatriz tivesse se esforçado por unir as duas coroas, o fato é que não o conseguiu. O sete de abril derrubou-a do trono. Obrigou-a a partir, ao lado do marido, para aquela imensa epopeia que D. Pedro, cavaleiro e herói, realizou em Portugal.


FORA DO BRASIL

D. Amélia, enquanto o marido batalhava no Porto, viveu em Paris. Ficou lá, vigilante, ao lado de D. Maria da Glória, a rainha de Portugal.

D. Pedro, num sonho de visionário, arregimentou o seu exercitozinho para atacar o mano Miguel. Correm por aí muitíssimo contadas as façanhas do bragança nessa página formidável da sua vida.

D. Pedro — sabe-o toda gente — teve o supremo gosto de triunfar. E, triunfante, senhor de Lisboa, mandou buscar em Paris a filha Maria da Glória para lhe entregar o trono que conquistara.

Veio para Lisboa, com a rainhazinha, a senhora D. Amélia. Assistiu ela aí as vitórias do marido. Acompanhou-o naqueles gozos embriagantes. Foi ao Porto. Viu, dentro de coches agaloados, os delírios com que a heroica cidade recebera o seu ídolo. Depois...

Depois foram os fracassos. Foram os sucessos políticos. A impopularidade de D. Pedro. A vaia. Os apupos. Os punhados de lama. Toda aquela escumalha de ingratidão popular que fervilhou contra o homem que fora o deus da véspera.

Começa então o martírio do Bragança. É a doença que vem, são as hemoptises, o quebramento das forças, o leito.

D. Amélia, em meio a tudo, doce e boa, a afagar o marido com mãos de veludo! D. Amélia, em meio a tudo, acompanha-o transe a transe, inabalável, única na constância e no carinho!


O PRÍNCIPE AUGUSTO

A rainha D. Maria II, com os seus quinze anos, loiros e frescos, principiou a governar os seus Estados.

Timbrou a menina, desde logo, em tratar com altas deferências a madrasta e ex-imperatriz.

D. Amélia, porém, deixou a companhia da rainha e alojou-se nas Janelas Verdes. As relações entre ambas iam num mar de rosas. Contribuiu para isso, não pouco, o casamento de D. Maria II com o príncipe Augusto.

O príncipe Augusto era irmão de D. Amélia. Acompanhara a irmã ao Brasil. Morou no Rio muito tempo. Levou daí saudades e deixou aí amigos.

Trouxera ele da sua pátria um homem culto, seu mestre e filósofo, que foi o conde de Nejaud. Além deste, o Dr. Casanova, médico de nota.

Eram estes três personagens — o príncipe, o conde, o médico — os mais assíduos frequentadores da casa de José Bonifácio. Com o patriarca, numa daquelas boas cavaqueiras que lá havia, foi que o Dr. Casanova se abriu nesta audaciosa confissão, que as crônicas registram.

"Saiba, meu amigo, que o Imperador do Brasil é um louco!"

O velho Andrada achou aquilo muito forte. Pro curou atenuar. Fez ver ao Dr. Casanova que muitos dos atos estroinas de D. Pedro eram o fruto de más companhias, de maus conselhos, de visão errada...

Pode ser, atalhou o grave médico, "mas o estado actual do Imperador, afianço-o, resente-se de alienação mental muito pronunciada".

Isso são detalhes que interessarão decerto os psiquiatras que quiserem um dia estudar a vida do Imperador.

Vamos nós preocuparmo-nos com o príncipe Augusto. Viveu ele no Rio os dois anos que aí vivera a Imperatriz.

D. Pedro estimava-o muito.

Fê-lo alta patente das forças brasileiras e nomeou-o duque: duque de Santa Cruz. O príncipe Augusto foi o único duque do primeiro Reinado. Assim como Caxias foi o único duque do Segundo. Quando os Imperadores partiram, o príncipe Augusto também partiu. Seguiu por toda a parte a irmã. Afinal, em Lisboa, pela mão hábil de D. Amélia, foi tramado o casamento do príncipe com dona Maria da Glória, já rainha de Portugal. Casaram-se. Príncipe consorte, o irmão de D. Amélia teve posição relevantíssima na Corte. Mas essa posição durou pouco: Augusto de Leuchtemberg, algum tempo após, morria de febres bravas.

Tratou a política, sem demora, de casar a soberana com novo príncipe de casa reinante. A escolha foi rápida. Decidiram as cortes por Fernando de Saxe Coburgo Gotha. Foi este o segundo marido de D. Maria II, a rainhazinha brasileira.


DONA AMÉLIA E DONA MARIA II

Depois da morte do irmão, esfriaram as relações entre D. Amélia e D. Maria II. Por quê? Rivalidades, ciumezinhos, intrigas, pequenos nadas de mulher a mulher.

Talvez, no coração de D. Amélia, houvesse fundo espinho. É que, do casamento com D. Pedro, nascera também uma menina. Chamava-se Amélia, tal como a mãe. A ex-imperatriz, no entanto, via essa outra, e não a filha, sentada no trono e refulgindo! Lá diz, com razão, Alberto Pimentel, na Corte de D. Pedro IV:

"Não havia, nem era facil haver, uma intimidade sem nuvens entre a madrasta e a enteada. D. Amelia fora, é certo, uma esposa dedicadissima. No Brasil, mostrara-se carinhosa para com os filhos de D. Pedro; despedira-se delles com sincera saudade. Mas, agora, no fundo do seu coração, sentiria a magua de ver-se reduzida, pella morte do marido, a uma figura secundaria, de ver a sua filha numa obscuridade rellativa, ao passo que D. Maria da Gloria, sua enteada, era a rainha, cingia a coroa, cuja conquista ella propria, a Imperatriz, regára com as suas lagrimas de esposa ausente e sobresaltada durante a campanha da liberdade".

Dia a dia, entre as duas mulheres, acentuavam-se diferenças, que mais as separavam. Até no modo de vestir andavam ambas desencontradas. Basta ler o chistoso cronista:

"Phrases soltas revelavam quanto a rainha e a imperatriz divergiam na maneira de pensar. Por D. Amelia gostava de usar vestidos pretos exemplo : com muytos e altos bordados a ouro. Gostava de pôr brilhantes em profusão. D. Maria da Gloria, não; e quando a via assim, costumava dizer:

Ahi vem a mamã succumbida de enfeites"!

Não é preciso dizer mais. Isto mostra, à evidência, a rivalidade que se abriu, até nas miudezas, entre a imperatriz e a rainha.


O MARQUÊS DE REZENDE

D. Maria II, como se compreende, era o foco. Todo o mundo se voltava para as necessidades. O Paço coalhava-se de áulicos. Os cortesãos, aqueles mesmos que se rastejavam outrora aos pés de D. Amélia, puseram-se a desertar dia a dia dos salões tristes das janelas verdes.

Com a morte do príncipe Augusto, então, a debandada foi única. D. Amélia sentiu o amargo travor da desvalia. Teve apenas a Imperatriz, na desdita, a alta fortuna de encontrar um amigo. Um único, é verdade, mas, ao menos, teve um! E esse foi o velho Marquês de Rezende. Companheiro devotadíssimo de D. Pedro, camarista e confidente, o Marquês não se esqueceu jamais do antigo senhor. Também não ocultou jamais a sua dedicação à causa constitucional. Apregoava-a sem rodeios. Certa vez, em Viena, encontraram-se D. Miguel e o Marquês de Rezende. O velho não se embaraçou. Disse rudemente ao inimigo do seu amo:

Nada de cortesias, senhor! Nós não temos, certamente, afeição um pelo outro...

Homem franco assim, com um feitio áspero desses por certo não arrancaria ligeiramente do seu coração as amizades fortes que se enraizassem nele, como se enraízam gravatás em chão bravo.


AS LIMAS E O COCHE

D. Maria II não morria de amores pelo Marquês de Rezende, o cortesão de D. Amélia. Havia dito mesmo, num momento leviano, esta frase que foi ouvida:

Quando meu pai morrer, o Rezende não sentará mais na minha mesa.

O Marquês soube. Foi ele, desde então, quem timbrou em não aceitar, nunca mais, o menor favor da rainha. Alberto Pimentel nos conta dois episódios, ingênuos em si, mas muito expressivos, do turronismo do velho.

Ouçamos o historiador:

"D. Amelia instou com Rezende para que elle ficasse a seu serviço. O Marquez ficou, porque pertencia á Corte velha, e D. Amelia representava o passado".

"Na presença de dona Maria II, mostrava-se o Marquez respeitoso, mas retrahido. Fazia questão de não acceitar nenhum favor do Paço das Necessidades, e, sobretudo, em não se sentar a mesa da rainha. Altiva como seu pae, D. Maria incommodava-se com aquella obstinação. Certa vez, terminado o jantar nas Necessidades, D. Amelia chegou de visita, acompanhada pelo Marquez.

É agora, disse a rainha para alguem; o Rezende vae quebrar o seu protesto.

E offereceu-lhe, gentilmente, umas das excellentes limas, que estavam na mesa:

O Marquez é guloso! Certamente, não recusará estas boas limas que lhe offereço...

Devem ser excellentes, respondeu o velho, examinando-as; e eu já não as como ha muito tempo. A ultima vez — ainda me recordo foi na minha Quinta das Lapas. Ha quanto tempo! Mas, minha senhora, a idade vae se oppondo aos caprichos do guloso. Hoje, todas as cautellas são poucas...

Uma só, Marquez!

Tenho pena, minha senhora: devem ser deliciosas; a apparencia é optima. Realmente, não podem ter melhor cara!

E pousou as limas na bandeja".

.........................................................................................................

"Doutra vez, estando juntas, D. Maria e D. Amelia, foi preciso mandar alguem a S. Vicente, a toda pressa. Se o Marquez me fizesse esse favor... disse a rainha; eu mandava pôr uma carruagem.

Sim, minha senhora, eu vou! Mas a pé. Faz-me muito bem o andar. Os medicos me recommendam isso — que ande muito. E eu vou, eu vou...

Foi a pé, com sacrificio, para não se aproveitar da carruagem do Paço!"

Foi neste homem, neste leal servidor de cabelos brancos, que se resumiu a corte de D. Amélia. Foi o seu último cortesão. Mas foi um cortesão que valeu por todos os outros.


O FIM

Viveu D. Amélia placidamente o final de sua vida. Morava isolada. Fazia muitas esmolas. Teve, anos passados, necessidade de ir a Alemanha levar a filha com o fim de consultar médicos. Mandaram eles a pequerrucha para a Madeira, a ares. Aí morreu a princesinha. Apagou-se o único traço de ligação que havia entre Braganças e Beauharnais.

D. Amélia viveu, daí em diante, um crepúsculo sereno. D. Pedro deixou-a rica. Assim, amparada e tranquila, aquela boneca loura, que foi, por dois anos, a Imperatriz do Brasil, viu chegar certo dia a velha feia, toda ossos, que fecha as pálpebras da gente com mãos muito compridas e muito geladas.


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Dona Amélia (Conto histórico), de Paulo Setúbal

DONA AMÉLIA


Depreendo, pelas cartas que recebo, haver forte interesse por detalhes sobre a vida de D. Amélia, a ascendência da formosíssima Imperatriz, a vida dela no Brasil, os filhos que teve, o seu fim. Nada mais fácil do que satisfazer essas curiosidades. Aí vão, sem mais delongas, minudências a respeito da loura e fascinante Beauharnais, que sucedeu à D. Leopoldina no trono brasileiro.

Comecemos por dizer que D. Amélia Augusta Eugênia Napoleona de Leuchtemberg era filha do príncipe Eugênio de Beauharnais e da princesa Augusta de Leuchtemberg, filha do Rei da Baviera. Quem era o príncipe Eugênio?


EUGÊNIO DE BEAUHARNAIS

Alexandre de Beauharnais, visconde de Beauharnais, general de brigada, deputado ao parlamento de França, casara-se na Martinica, onde nascera, com essa famosa, perturbante créole Josefina (nascida Josefina Tascher de la Pagerie) que mais tarde teria, no mundo, papel tão estridente e alto. Acusado, em 89, de ter contribuído para a capitulação de Mayence, foi o general Alexandre condenado à forca pelo tribunal revolucionário. Executaram-no e confiscaram-lhe os bens.

Do seu casamento, porém, nasceram dois filhos: Eugênio e Hortênsia. Todo o mundo sabe a reviravolta miraculosa que ocorreu na vida romanesca da família Beauharnais: Napoleão Bonaparte casou-se com a viúva Josefina. Do imprevisto consórcio adveio para aquela pequena família a boa fortuna mais atordoante, mais fantástica, de que há lembrança na história moderna.

Napoleão, guindado às culminâncias de soberano máximo, distribuiu a amigos e parentes dignidades supremas. Para com Eugênio, o enteado, teve o Imperador ternuras desmarcadas. Levou-o na campanha da Itália. Fê-lo seu ajudante de campo na invasão do Egito. Nomeou-o general. Obrigou, por um senatus-consultus, a que o parlamento o reconhecesse como Príncipe de França. Concedeu-lhe a honra de arquichanceler do Império. Galardoou-o, depois da coroação, com o cargo altíssimo de Vice-Rei da Itália. Enfim, como prova de estima única, reconheceu a Eugênio, publicamente, solenemente, como seu filho adotivo e, portanto, sucessor eventual à coroa de França. Impossível liberalidades maiores. Eugênio Beauharnais teve tudo.


O CASAMENTO DE EUGÊNIO

Napoleão, que o amava com carinhos leais, não se contentou em fazê-lo culminar na vida pública: timbrou em arranjar-lhe casamento à altura dos seus títulos.

Eis porque, por ordem imperial, a diplomacia francesa negociou e ajustou as núpcias de Eugênio de Beauharnais com a princesa Augusta de Leuchtemberg, filha do Rei da Baviera.

Napoleão pôs extremos terníssimos nesse casamento. Diz A. Levy, no seu Napoléon Intime:

"A toda força, queria o Imperador que a esposa de Eugenio fosse feliz. Nesse intuito, elle, o homem tão rispido em questões de assiduidade no trabalho, elle mesmo põe-se a derogar os seus principios. E escreve a Eugenio:

"Mon fils, vous travaillez trop, votre vie est trop monotone. Cela est bon pour moi. Mais vous avez une jeune femme; que n'allez vous pas au théatre une seule fois par semaine en grande loge"?

O casal foi feliz. Um filho ia aparecer logo... Napoleão, mal soube que a princesa Augusta estava grávida, escreveu-lhe afetuosa carta, muito paternal, pedindo que lhe desse um homem:

"Ma fille! Ménagez-vous dans votre état actuel. Et tachez, surtout, de ne pas nous donner une fille..."

Apesar do pedido de Napoleão, lá apareceu, com grande desapontamento dos pais, loura meninazinha gordanchuda. Puseram-lhe o nome de Amélia Augusta.

Bonaparte, para consolar a mãe, escreveu a Eugênio, caçoando, do seu próprio punho:

Auguste est-elle fachée de n'avoir pas eu un garçon? Dites-lui que, lorsqu'on commence par une fille, l'on a au moins douze enfants...

Não se entristecesse a princesa Augusta! Aquela pequenina criatura ia ter curioso destino: ela é quem deveria ser, um dia, a segunda imperatriz do Brasil.


D. PEDRO E D. AMÉLIA

Anda por aí, já muito sabida, a história do casamento de D. Amélia. Barbacena partiu como negociador. Metternich intrigou. D. Pedro levou inúmeras tábuas. Certo dia uff! o Pedra Branca, então ministro em Paris, conseguiu da princesa Augusta que consentisse no casamento da filha Amélia com o Imperador do Brasil. Apalavrou-se, ajustou-se, casou-se. Tudo num relâmpago!

Afinal, a 16 de outubro de 1829, a princesa Amélia, acompanhada de seu irmão, o Príncipe Augusto, desembarcou no Rio de Janeiro. Houve, no desembarque, pequenina cena sofrivelmente ridícula. Pelo menos, na época, cena muitíssimo comentada.

No arsenal de marinha, tirado a oito, faiscava o coche dourado do Paço. Deviam os esposos D. Pedro, com a sua casaca verde, D. Amélia, com a grinalda de rendas meter-se na linda carruagem para irem receber, na capela imperial, as bênçãos nupciais. Barbacena, porém, ao saltar da galeota, curvou-se diante de D. Pedro:

Senhor! A princesa Augusta, mãe de Sua Majestade a Imperatriz D. Amélia, pediu-me, ainda em Munique, que só entregasse a V. Majestade a imperial esposa depois das bênçãos da igreja...

A que vem isso, Marquês?

 É que, Majestade, tendo eu me comprometido a respeitar esse desejo da princesa-mãe, peço permissão a V. Majestade para, sozinho, acompanhar a nossa Imperatriz no coche nupcial.

D. Pedro, desapontado:

Nesse caso, Marquês, entre!

Apontou-lhe o coche. Barbacena entrou. Sentou-se ao lado da esposa imperial. Assim, sem ser o padrinho, sem ser nada, Barbacena partiu flamante, alvo de todos os olhares, pela cidade afora, levando gloriosamente a Imperatriz para a igreja.

D. Pedro, o marido, esse veio atrás, murcho...


O ENXOVAL

Conta Mello Moraes:

"Tres dias depois da chegada da Imperatriz, a 19 de Outubro, dia de S. Pedro, houve beija-mão geral. Á tarde formou a tropa e fez as continencias do estilo. Á noite, foram Suas Magestades ao theatro assistir a um espectaculo de gala. No dia seguinte, pela manhan, partiram ambos para S. Christovam. Ahi abriram-se as malas da Imperatriz".

"O enxoval que trouxe a princeza Amelia foi bom. Mas estava muy longe do que trouxe para o Brasil a archiduqueza da Austria, D. Leopoldina".

"A princeza Amelia trouxe muytos brilhantes, sendo uns que lhe deu a sua mãe, outros que se compraram em Inglaterra por ordem do Imperador. Tambem se disse que foi para Londres, do thesouro nacional, boa porção de pedras para se fazerem mimos, sendo incumbido dessa missão o Marquez de Barbacena. O Imperador mandou a D. Amelia a magnifica medalha que foi da ex-Imperatriz D. Leopoldina, a afogadeira, assim como um carissimo pingente de brilhantes. Só os brincos custaram em Londres sessenta contos de réis"!


D. AMÉLIA NO PAÇO

Sigamos, para evocar a vida de D. Amélia no Brasil, as minúcias que nos fornece aquele curioso bisbilhoteiro das intimidades de S. Cristóvão:

"A Imperatriz D. Amelia estudava as maneiras de captivar o marido; e isto ella conseguio bem, reduzindo-o francamente á escravidão".

"D. Amelia tratou de pôr D. Pedro em sitio, para não ouvir sinão o que ella lhe dissesse e o que lhe aconselhasse Barbacena. Começou prohibindo accesso até ao Imperador daquelles mesmos que, desde a infancia, tinham liberdade de entrar nos seus proprios aposentos. Para fallar-lhe era preciso esperar horas e horas".

Os novos criados do Imperador tratavam a todos com má cara. A Imperatriz não queria que o marido fosse servido pelos antigos camaristas e guarda-roupas. E dizia "que se vexava de ver homens de fardas tão bordadas servindo o Imperador...."

"Fez passar o serviço para os criados particulares. Mas o fim disso era outro: era separar o marido da gente com que tinha vivido até então".


DONA AMÉLIA E AS SENHORAS

"Senhoras que, pela sua posição na corte e até damas, que estavam acostumadas desde o tempo do Rei, a irem ao Paço todas as vezes que queriam, ficavam agora esperando na ante camara até que se lhes quizessem apparecer, ou, quando não, lhes mandavam agradecer a visita. Algumas distinctas senhoras foram mal recebidas pelo Imperador e pela Imperatriz. D. Pedro nem lhes fallava. Limitava-se a dar-lhes a mão a beijar com a viseira carregada. D. Amelia limitava-se a simples cumprimento de cabeça. Chegou o rigor no Paço de S. Christovam a serem os porteiros da canna os que determinavam se podiam, ou não, entrar as pessoas que desejavam cumprimentar a Suas Magestades".

"Espalhou-se a noticia de que a senhora que quizesse saudar a Imperatriz havia de escrever a uma tal baroneza, que veiu de Munich em companhia de D. Amelia, pedindo-lhe dia e hora para ter essa honra. Só depois de dois e tres días é que tinha então a resposta desejada de poder cumprimentar a difficil Imperatriz do Brasil".


A MARQUESA DE AGUIAR

"A tal baroneza que viera de Munich era quem pegava na cauda da Imperatriz em dias de gala. Ás vezes, por mera condescendencia, a baroneza chamava a nobilissima Marqueza de Aguiar, viuva de D. Fermando, Marquez de Aguiar e vice Rei do Brasil. A Marqueza, senhora illustre, camareira-mor, dizia, com magua, quando a baroneza a convidava:

Dé cá esse mantéo, que em outros tempos me era leve, mas hoje me é tão pesado de carregar. Eu lhe ajudarei...

E pegava na cauda".

 

PROTOCOLO SEVERISSIMO

Mello Moraes é francamente hostil a D. Amélia. As suas antipatias para com a Imperatriz ressaltam muito frisantes do seu depoimento. No entanto, para se fazer justiça, é preciso considerar melhor as coisas. A Beauharnais vinha de cortes faustosas, protocolares. Encontrou aqui um Paço desordenado. Paço onde toda a gente entrava. Onde o Imperador recebia sem o menor estilo. Tudo simples, chão. Quis D. Amélia dar a isto o ar de grande corte. Quis fazer valer, regiamente, a personalidade do Imperador. Para isso, mandou pôr em execução protocolos severíssimos, a que os fidalguinhos da época não estavam habituados. Encheu o Paço de criados estrangeiros. Trouxe da Baviera as suas açafatas, as suas retretas, os seus mestres-de-cerimônia, os seus cabeleireiros as suas damas, o seu confessor. Como não entendia o português, determinou que em S. Cristóvão só se falasse francês.

Daí, dessas medidas, do rigor da etiqueta, nasceu decerto essa evidente má vontade dos contemporâneos para com aquela voluntariosa bonecazinha imperial, que governou o Brasil durante dois anos. D. Amélia, está claro, podia ser mais singela. Não o foi. Pretendeu, no Riozinho emosquitado do tempo, dar-se a complicações de majestade altíssima. Daí a sua impopularidade. Nem lhe perdoaram que, como boa francesa e, portanto, como dona-de-casa de mãos agarradas. D. Amélia tomasse contas severas das despesas da cozinha.

Lá comentavam, sem perder detalhe:

"Sendo ella tão moça, se intromettia nas coisas mais ridicullas do Paço, até nas despesas da ucharia. Causava admiração que essa senhora tão fina, e tão criança, se occupasse de ninharias proprias de gente de baixa condição social".


D. AMÉLIA E JOSÉ BONIFÁCIO

José Bonifácio voltara do exílio. Vivia na sua chácara de Botafogo, arredado dos homens, longe da política. D. Amélia, ao chegar, teve notícia do velho eminente que ali vivia, solitário. Quis conhecê-lo.

O Patriarca, um dia, apresentou-se no Paço. D. Pedro, em pessoa, conduziu o austero Andrada aos aposentos da Imperatriz. Aí, entre os soberanos e o paulista, desenrolou-se curiosa, chocante cena.

José Bonifácio, num discurso pequeno, mas muito vivo, de cores muito carregadas, pintou à Beauharnais o estado do Brasil. Pintou a completa separação do povo e do governo. As iras da opinião pública. Os desacertos do trono. As facilidades de D. Pedro. Mil coisas! O Imperador não gostou. Interrompeu azedamente o ex-ministro:

"Senhor Andrada! Vossa Exa. está desarrazoando. Isso são disparates"...

José Bonifácio, com autoridade:

"Não me interrompa, senhor! Deixe-me dizer a verdade, porque ella interessa a Vossa Magestade e a seus filhos"!

E continuou o discurso.

 

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Uma aventura do Imperador (Conto histórico), de Paulo Setúbal


UMA AVENTURA DO IMPERADOR 

Contam-se de D. Pedro I as aventuras mais picarescas.

O fundador do Império avulta aos olhos dos pósteros como príncipe de novela, sempre enredado em amores, perdidamente fascinado por todas as mulheres bonitas do seu tempo. Tão derramada andava a sua fama de milhafre que, no dizer do cônsul Gestas, era para as senhoras casadas, e formosas, arriscadíssima temeridade o frequentarem o Paço.

D. Pedro cometia doidices sem conta. Não se contentava com as noitadas folionas ao lado da Ludovina, famosa atriz que enlouquecera a rapaziada guapa do tempo. Nem lhe bastavam os amores fáceis da Noemi ou da Saissait.

D. Pedro metia-se nas famílias. Teve o desplante de cortejar desabridamente a filha do armador João Ciríaco. Ia à casa do homem todos os dias. Enchia a moça de presentes. Transbordava-se num galantear afrontoso.

João Ciríaco era homem com quem não se brincava. Homem de grande brio. Muito cioso da reputação de sua casa. Certo dia, ao entrar o Imperador, convidou-o João Ciríaco para merendar. D. Pedro aceitou.

Foram-se para a sala de jantar. Na mesa, galantemente disposta, havia larga bandeja de frutas. Ao lado, cravado com acinte, um punhal. A arma rebriIhava, chocante. D. Pedro reparou naquilo:

Para que é esse punhal, João Ciríaco?

Para espetar nele, majestade, quem tentar desonrar a minha casa.

O olhar do homem fuzilava. A sua voz tinha estranha tonalidade. D. Pedro compreendeu o aviso. Nunca mais apareceu em casa do João Ciríaco.

Mas a lição não bastou. Outras, e sérias, recebeu o Imperador naqueles curiosos nove anos de reinado. Diziam até  muitos cronistas o apregoam que D. Pedro, pilhado numa aventura, levara tremendíssima roda-de-pau. Difícil acreditar-se que a coisa tenha chegado a extremo assim tão violento. Mas que fazer? É o que dizem os mexericos.

O caso deu-se com a Condessa de Belmonte. Não passa ele de tradição. Tradição que vem de longe, é verdade, mas sem nenhum documento digno em que se apóie.

Vou trasladá-lo para aqui, tal como o narram as más línguas.

* * *

D. Mariana Carlota Verna de Magalhães era a mulher daquele Verna de Magalhães, conde de Belmonte, que viera de Portugal com a fuga de D. João VI. Tiveram ambos, na corte do Rei bonacheirão, destaque brilhante. Verna de Magalhães pertencia àquela velha escola de cortesãos rigidamente protocolares. Não é de admirar, portanto, ter sido a etiqueta que o matasse.

Como? Muito simplesmente.

Rezava-se, certa vez, grande missa em ação de graças pelo restabelecimento de D. Pedro, já então Imperador. Verna de Magalhães ardia em febre. Mas o cortesão, ao saber da missa, não vacilou: ergueu-se, meteu a casaca de riço verde, espremeu o pescoço num colarinho de palmo, tocou-se para a igreja, pôs-se a assistir à missa. Estavam no momento mais grave. O Padre erguia o cálice. Todos ajoelhados. Todos numa severa compunção.

Eis que, de repente, estronda áspero baque. O povo alvoroça-se. Que foi? Isto: Verna de Magalhães desabara no lajedo. E desabara por quê? Fulminado por súbita apoplexia cerebral.

Está visto que D. Pedro, desde esse desastre, tomou sob a sua alta proteção a viúva do cortesão perfeito. 

A senhora Verna de Magalhães, condessa de Belmonte, passou a ter na corte de D. Pedro I o mesmo relevo fúlgido que tivera na corte de D. João VI. Ora...

* * *

Acontecia que a condessa era linda. Lindíssima! Todos os contemporâneos trombeteiam a boniteza dela. Diziam, sem discrepar, que era a mulher mais fascinante da corte. O retrato que dela existe prova-o com brados largos. D. Mariana Carlota, não há dúvida, deslumbrava.

Tinha, para enlouquecer os homens, mais do que o ser bela, a fama de ser absolutamente séria.

D. Pedro cobiçou-a. Para D. Pedro, quando cobiçava uma mulher, não havia estorvos. A história com ele era sumária: ver e realizar.

Assim, em certo beija-mão, no Paço, o Imperador disse num cochicho para a condessa:

Amanhã, pelas duas horas, Vossa Mercê trate de me esperar. Vou visitá-la. E vou só.

D. Mariana Carlota, muito surpresa:

Imensa honra, Majestade!

No outro dia, seriam duas horas, estacou a sege imperial em frente à casa de D. Mariana. D. Pedro saltou. A lindíssima condessa recebeu, na sala-de-fora, o imperial visitante.

D. Pedro não teve panos quentes. Foi explicando logo ao que vinha. Disse a coisa com todas as letras. D. Mariana franziu o cenho:

V. Majestade enganou-se! Eu não sou dessas...

A recusa era de somenos. D. Pedro não se perturbou. Ergueu-se. Avançou para a dama. E tentando enlaçá-la:

Meu amor!

A condessa de Belmonte afastou-se, rápida.

Majestade!

D. Pedro deu um passo. Ia agarrá-la. Nesse instante, escancarando a porta, surgem dois homens. Vêm armados de grossos porretes de caviúna. E...

Dizem que desandaram no Imperador uma sova de mestre!

Será certo? Não é de crer-se. O desfecho parece demasiadamente brutal. O verossímil é que a ousadia de D. Pedro arrefecesse com a entrada dos dois homens. Parou aí, por certo.

Fato é, porém, que D. Pedro desapontou. Pôde ele gabar-se de haver vencido todas as mulheres que quis. Mas não venceu uma: a condessa de Belmonte!

 * * *

Qual foi o resultado dessa recusa? D. Mariana Carlota retirou-se do Paço. Começou a viver na sua chácara, arredada. Vivia sem amigos, ferida de morte pela desvalia imperial. Todos a evitavam. Verdadeiro desterro.

A condessa, no entanto, suportou com alegria o desfavor. Teve até orgulho da sua solidão. Rejubilava-se do seu ermo.

Ninguém mais na corte ouviu falar dela. A beleza espantosa, a grande beleza do primeiro Império, morreu para as galas e para vida.

Mas o mundo dá volta. Certo dia, sacudindo a corte, reboou a notícia aterradora: morreu a Imperatriz! Deixava D. Leopoldina vários filhos pequeninos. E, sobretudo, deixava uma criancinha de apenas um ano. Era um bebê delicioso, rechonchudo. Era o príncipe herdeiro.

D. Pedro, na sua desolação, correu os olhos pelas senhoras da corte. Tinha necessidade de colocar no Paço alguém que servisse de mãe àquele pequerrucho. Alguém que formasse o coração do futuro Imperador. Quem haveria de ser? Quem, naquela corte de costumes fáceis, podia ter, pelas suas virtudes essa honra suprema?

D. Pedro não titubeou. Havia, capaz para posto tão dignificante, uma pessoa só: a condessa de Belmonte. O Imperador, em pessoa, foi buscá-la no seu exílio.

Instalou-a em São Cristóvão. Cobriu-a de honras. Entregou-lhe a formação do seu filho, o herdeiro do seu trono, o seu enlevo. D. Mariana Carlota tomou conta do príncipe. Foi a preceptora dele. Como educou o menino, como formou aquele coraçãozinho implume, aí está na história, para respondê-lo, o vulto soberanamente inconfundível de D. Pedro II. De tal preceptora, saiu tal pupilo. Não é preciso dizer mais.

* * *

Assim terminou a aventura do Imperador. E digam agora se D. Pedro I, mesmo nas estroinices, foi ou não um tipo simpático?


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