5/29/2017

Machado de Assis: “As Duas Juízas” (Conto)



Machado de Assis: “As Duas Juízas" (Conto)

Eram também bonitas e vistosas; circunstâncias que não determinara a eleição, mas agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro de belas formas”.
Tudo correia de modo costumeiro naquela igreja. Que igreja?
Bem, este é o ponto falho do conto, porém, que importa? “Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa”.
Nessa igreja desconhecida, ou supostamente desconhecida, os sentimentos religiosos eram fervorosos. As irmandades ali estabelecidas, ainda que compartilhando de diferentes devoções, buscavam nessa aparente rivalidade motivos para tornar ainda mais fervorosas essas mesmas devoções.
As coisas permaneceram assim durante muitos anos. A amizade entre as duas devoções materializavam-se mediante a troca de obséquios, empréstimos de utensílios religiosos, e, como demonstração de alicerçada comunhão, as irmandades revezavam-se nas festas que se realizavam na comunidade.
Vencido o prazo dessas duas associações, realizou-se como de costume, uma nova eleição, cujo objetivo era o mesmo de antes, ou seja, “dar mais alguma vida ao culto”. Foram eleitas duas distintas senhoras que, como “irmãs” na fé, nutriam entre si uma bela e sincera amizade.
A primeira, D. Matilde, viúva bonita, abastada e “fresca”. A segunda, D. Romualda, também bonita, e, por ser esposa de um comendador, há de se supor que era não menos abastada. Embora tais “virtudes” não determinaram o resultado da eleição, ao menos “agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro das belas formas”.
Inicialmente nada mudou. Nenhuma medida drástica foi tomada, nada que pudesse caracterizar as novas devoções. “Roma não se fez num dia”, consolavam-se. Entretanto, algo novo aconteceu em entre as devoções, consequência, ao que parece, de um súbito estímulo religioso ou da vontade ardorosa de renovar o culto. A iniciativa foi da viúva que, tomada de certo ímpeto “espiritual”, decidiu levantar a associação: “Vamos trabalhar. A deste ano deve ser esplêndida... A orquestra deve ser de primeira qualidade; podemos ter uma cantora italiana”. Quinze dias depois, D. Romualda, numa sessão solene, exprimia iguais sentimentos.
A partir dali as devoções ganharam vida. As duas juízas empenharam-se por levar a cabo seus planos. Parece que tanto Nossa Senhora da Conceição quanto Nossa Senhora das Dores estavam “gloriosamente” satisfeitas com tamanho fervor.
Supunha-se que as duas juízas haveriam de continuar as mesmas cortesias. Se a finalidade era puramente espiritual, haveria, como era de se esperar de duas respeitadas e sinceras religiosas, o interesse em manter a troca de serviços e mesmo a amizade. Haveria? “- Não; antes vendamos a última joia”, bradou D. Matilde. “- Vender a última joia? Talvez ela já tenha as suas empenhadas!”, respondia a esposa do Comendador Nóbrega. A briga, ao que parece, fruto do estímulo religioso, aumentava: “Creio, creio... Creio que trabalhe mais do que eu, mas há de ser com a língua”, respondia a viúva.
Após muitas acusações e muitas discussões entre as duas devoções, realizou-se para contentamentos dos paroquianos, a festa das Dores. Foi uma festa realmente bonita: muita gente, boa música, excelente sermão. Não fez por menos D. Romualda: a orquestra foi a melhor da cidade, dirigiu o sermão um monge beneditino.
A batalha durou uns dois anos. Com a morte da D. Romualda, cessou o estímulo da D. Matilde. E já a primeira festa esteve muito aquém das anteriores.
Cessou o estímulo? Mas, que estímulo?
Bem. Com o decorrer dos dias, descobriu-se que toda aquela intriga foi apenas o resultado de uma insignificante questão acerca de um simples vestido.
Um acontecimento banal, digno apenas de uma ligeira conversa de botequim, transformou-se num caso realmente interessante, digno apenas de um escritor como Machado de Assis.
O conto Duas Juízas é uma pequena mostra da ironia machadiana. Com seu humor mordaz, ele faz aparecer tudo que acontece debaixo dos “lençóis” da elite brasileira: vaidade, intrigas e exageros. E mais: a própria igreja, não a instituição em si, mas aqueles que dela fazem parte, também ficam na mira da corrosiva ironia do “Bruxo do Cosme Velho”.
Sintetizando, o conto apresenta as seguintes características machadianas:
1 - Inspiração nas pessoas comuns, com suas ações quotidianas; a busca do mínimo e do escondido, onde ninguém mete o nariz: “Um dia a Devoção das Dores elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca, ao mesmo tempo que a Conceição punha à frente a esposa do Comendador Nóbrega, D. Romualda”.
2 - A penetração na consciência da personagem, revelando de maneira aguda e impiedosa, a vaidade, a hipocrisia, a futilidade: “Um paroquiano curioso tratou de indagar, se além das causas de estímulo religioso, alguma outra houve; e veio a saber que as duas damas, amigas íntimas, tinham tido uma pequena questão por causa de um corte de vestido”.
3 - O humor crítico, a ironia: “Eram também bonitas e vistosas; circunstâncias que não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro de belas formas”.
4 - Como é comum em seus contos, o mais importante não é ação que ocorre entre os personagens, mas os processos mentais, a psique humana que os envolve: “Qual Igreja? Este é justamente o ponto falho do meu conto; não posso lembrar-me em qual das nossas igrejas era. Mas, pensando bem, que necessidade há de saber-lhe o nome? Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa”.
5 - Extraordinária capacidade em caracterizar as personagens: “Um dia, a Devoção das Dores elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca...”.

É isso!

Iba Mendes
São Paulo, 2001.

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