Machado de Assis: “As Duas Juízas" (Conto)
“Eram também bonitas e vistosas; circunstâncias que não determinara a eleição, mas agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro de belas formas”.
“Eram também bonitas e vistosas; circunstâncias que não determinara a eleição, mas agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro de belas formas”.
Tudo correia de modo costumeiro naquela igreja. Que
igreja?
Bem, este é o ponto falho do conto, porém, que
importa? “Uma vez que eu diga os outros e
todas as circunstâncias do acontecimento, do caso, o resto pouco importa”.
Nessa igreja desconhecida, ou supostamente
desconhecida, os sentimentos religiosos eram fervorosos. As irmandades ali
estabelecidas, ainda que compartilhando de diferentes devoções, buscavam nessa
aparente rivalidade motivos para tornar ainda mais fervorosas essas mesmas
devoções.
As coisas permaneceram assim durante muitos anos. A
amizade entre as duas devoções materializavam-se mediante a troca de obséquios,
empréstimos de utensílios religiosos, e, como demonstração de alicerçada
comunhão, as irmandades revezavam-se nas festas que se realizavam na comunidade.
Vencido o prazo dessas duas associações, realizou-se
como de costume, uma nova eleição, cujo objetivo era o mesmo de antes, ou seja,
“dar mais alguma vida ao culto”. Foram eleitas duas distintas senhoras que,
como “irmãs” na fé, nutriam entre si uma bela e sincera amizade.
A primeira, D. Matilde, viúva bonita, abastada e
“fresca”. A segunda, D. Romualda, também bonita, e, por ser esposa de um
comendador, há de se supor que era não menos abastada. Embora tais “virtudes”
não determinaram o resultado da eleição, ao menos “agradou às eleitoras, tão certo é que a beleza não é só um ornato
profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os
pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro das belas
formas”.
Inicialmente nada mudou. Nenhuma medida drástica foi
tomada, nada que pudesse caracterizar as novas devoções. “Roma não se fez num dia”, consolavam-se. Entretanto, algo novo
aconteceu em entre as devoções, consequência, ao que parece, de um súbito
estímulo religioso ou da vontade ardorosa de renovar o culto. A iniciativa foi
da viúva que, tomada de certo ímpeto “espiritual”, decidiu levantar a
associação: “Vamos trabalhar. A deste ano
deve ser esplêndida... A orquestra deve ser de primeira qualidade; podemos ter
uma cantora italiana”. Quinze dias depois, D. Romualda, numa sessão solene,
exprimia iguais sentimentos.
A partir dali as devoções ganharam vida. As duas
juízas empenharam-se por levar a cabo seus planos. Parece que tanto Nossa
Senhora da Conceição quanto Nossa Senhora das Dores estavam “gloriosamente”
satisfeitas com tamanho fervor.
Supunha-se que as duas juízas haveriam de continuar as
mesmas cortesias. Se a finalidade era puramente espiritual, haveria, como era
de se esperar de duas respeitadas e sinceras religiosas, o interesse em manter
a troca de serviços e mesmo a amizade. Haveria? “- Não; antes vendamos a última joia”, bradou D. Matilde. “- Vender a
última joia? Talvez ela já tenha as suas empenhadas!”, respondia a esposa
do Comendador Nóbrega. A briga, ao que parece, fruto do estímulo religioso,
aumentava: “Creio, creio... Creio que
trabalhe mais do que eu, mas há de ser com a língua”, respondia a viúva.
Após muitas acusações e muitas discussões entre as
duas devoções, realizou-se para contentamentos dos paroquianos, a festa das
Dores. Foi uma festa realmente bonita: muita gente, boa música, excelente
sermão. Não fez por menos D. Romualda: a orquestra foi a melhor da cidade,
dirigiu o sermão um monge beneditino.
A batalha durou uns dois anos. Com a morte da D.
Romualda, cessou o estímulo da D. Matilde. E já a primeira festa esteve muito
aquém das anteriores.
Cessou o estímulo? Mas, que estímulo?
Bem. Com o decorrer dos dias, descobriu-se que toda
aquela intriga foi apenas o resultado de uma insignificante questão acerca de um
simples vestido.
Um acontecimento banal, digno apenas de uma ligeira
conversa de botequim, transformou-se num caso realmente interessante, digno
apenas de um escritor como Machado de Assis.
O conto Duas
Juízas é uma pequena mostra da ironia machadiana. Com seu humor mordaz, ele
faz aparecer tudo que acontece debaixo dos “lençóis” da elite brasileira:
vaidade, intrigas e exageros. E mais: a própria igreja, não a instituição em
si, mas aqueles que dela fazem parte, também ficam na mira da corrosiva ironia
do “Bruxo do Cosme Velho”.
Sintetizando, o conto apresenta as seguintes características
machadianas:
1 - Inspiração nas pessoas comuns, com suas ações
quotidianas; a busca do mínimo e do escondido, onde ninguém mete o nariz: “Um dia a Devoção das Dores elegeu para juíza
uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca, ao mesmo tempo que a
Conceição punha à frente a esposa do Comendador Nóbrega, D. Romualda”.
2 - A penetração na consciência da personagem,
revelando de maneira aguda e impiedosa, a vaidade, a hipocrisia, a futilidade: “Um paroquiano curioso tratou de indagar, se
além das causas de estímulo religioso, alguma outra houve; e veio a saber que
as duas damas, amigas íntimas, tinham tido uma pequena questão por causa de um
corte de vestido”.
3 - O humor crítico, a ironia: “Eram também bonitas e vistosas; circunstâncias que não é só um ornato
profano, e, posto que a religião exija principalmente a perfeição moral, os
pintores não se esquecem de pôr o arrependimento da Madalena dentro de belas
formas”.
4 - Como é comum em seus contos, o mais importante não
é ação que ocorre entre os personagens, mas os processos mentais, a psique
humana que os envolve: “Qual Igreja? Este
é justamente o ponto falho do meu conto; não posso lembrar-me em qual das
nossas igrejas era. Mas, pensando bem, que necessidade há de saber-lhe o nome?
Uma vez que eu diga os outros e todas as circunstâncias do acontecimento, do
caso, o resto pouco importa”.
5 - Extraordinária capacidade em caracterizar as
personagens: “Um dia, a Devoção das Dores
elegeu para juíza uma senhora D. Matilde, pessoa abastada, viúva e fresca...”.
É isso!
Iba Mendes
São Paulo, 2001.
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