5/24/2019

Monteiro Lobato: Krishnamurti (Ensaio)



Krishnamurti

As religiões nascem, crescem, esclerosam-se e morrem. É ridículo dizer isto, porque o próprio dos truísmos é se tornarem ridículos à força de evidência.

No entanto, ao nascerem, tais truísmos provocam espanto e suscitam a mais cruel repulsa por parte das verdades de cabelos brancos, bem instaladas no oficialismo.

Os exemplos clássicos destas verdades que viram axiomas — ontem tímidas revoltosas, amanhã ferozes legalistas, são também ridículos. Tornaram-se ridículos à força de repetição, como acontece com as árias célebres, a “La donna é mobile”, por exemplo, que não perdeu a beleza, mas cansou. Por isso deixo de citar o caso de Galileu às voltas com a polícia censora da época, firmíssima na verdade oficial do sol em rodopios à volta da terra.

Ora, pois, as religiões nascem e como nascem, crescem, salvo quando nascem mortas. E, como crescem, atingem a maturidade, encruam na arteriosclerose do oficialismo e acabam agonizando às mãos de débeis religiões meninas.

Erro pensar que é a ciência que mata uma religião. Só pode com ela, outra religião.

Um período da História sobremodo interessante ao estudioso ocidental é o do choque entre o cristianismo revoltoso e a legalidade pagã. Como abundam documentos que refletem a mentalidade greco-romana durante o longo período do choque, fácil se nos torna a apreensão do quadro.

Luciano de Samosata, por exemplo, denuncia em inúmeros diálogos como estava combalida a crença nos deuses olímpicos, um século antes de Cristo.

No “Júpiter-Trágico” esse Voltaire sírio tem lanços de humor que lembram Mark-Twain ou Bernardo Shaw.

Travara-se na terra, em presença de numerosa assembleia, uma disputa entre o estoico Tímocles e o epicurista Damis. O estoico defendia os deuses e Damis os negava.

A disputa correu animadíssima e acabou interrompendo-se no meio para ser decidida no dia seguinte. Como, entretanto, a assistência se retirasse inclinada para Damis, o Olimpo assustou-se e Jove amarrou o burro. Vem Juno e indaga da causa da divina zanga. Teria acaso a Terra partejado novos gigantes que, à imitação dos Titãs, pretendessem escalar o céu?

— Nada disso, coisa muito pior! diz Júpiter. Estão lá embaixo, os homens, travados numa disputa de cujo desfecho depende a estabilidade do Olimpo. Se sai vencedor Damis, ai de nós!...

O caso foi tido como dos mais sérios, e Jove resolveu convocar todos os deuses para que, “debruçados na amplidão”, acompanhassem os debates e “torcessem” pelo paladino da boa causa.

Assim se fez. Quando, porém, os dois disputantes novamente se enfrentaram, um arrepio de pressentimento perpassou, gélido, pela espinha de Júpiter.

— Tímocles parece-me trêmulo e perturbado. Vai estragar tudo. Já vi pela cara que não pode medir-se com Damis.

E os deuses, em desespero de causa, põem-se a rezar pela vitória do campeão...

Começa a disputa. Júpiter manda que as Horas arredem umas nuvens que lhe estão tapando a vista.

Trava-se o duelo de argumentos. Damis leva o outro à parede, “dá-lhe na cabeça”, como se diria hoje, e a assistência percebe que em poucos “rounds” estará Tímocles nocaute.

Em certo ponto o estoico puxa um argumento espadagão: o fato de serem deístas todos os povos. Damis responde com o antropomorfismo e toda a bicharia ou natureza deificada: no Egito o boi, na Assíria a pomba, na Etiópia o dia, na Pérsia a água, na Pelúsia a cebola, em outros países o gato, o íbis, o cinocéfalo, o crocodilo, etc.

O deus Momus dá um aparte inquieto:

— Eu não disse, Júpiter, que os homens ainda acabavam descobrindo isso?

Júpiter, jeitoso, sossega-o:

— Tens razão, mas havemos de dar um jeito no caso.

A causa dos deuses era positivamente insustentável depois do rapto de Ganimedes e outros escândalos olímpicos, e Tímocles, falto de argumentos, resolve fazer como os Tímocles de todas as épocas: insultar o contendor e apedrejá-lo. E atira-lhe em rosto um vocabulário muito nosso conhecido: infame, desenterrador de cadáveres, esterco imundo, filho das ervas, adúltero, “cocu”, monstro de impudicícia, etc.

Os deuses regozijam-se com a “derrota” de Damis; Júpiter, entretanto, cisma:

— É, mas eu preferia ter do meu lado um Damis a dez mil apedrejadores...

Em toda a obra de Luciano o que se vê é a inquietação dos deuses em face dos progressos do epicurismo, isto é, do livre exame.

Estavam as coisas da legalidade religiosa nesse pé quando irrompe a revolta de Cristo.
O choque foi tremendo e a repressão feroz. Mas se a repressão esmaga o que resiste, nada pode contra o que não resiste. É o caso da bala que espedaça a pedra, mas morre de encontro ao saco cheio de paina.

A religião revoltosa venceu, entronizou-se, fez-se legalidade, assumiu o cetro de única verdadeira e passou com o tempo de ingênua menina a moça belicosa, e de moça a matrona inimiga de novidades. Por estas alturas é que costuma sobrevir a arteriosclerose. Os músculos emperram, as articulações endurecem, as veias calcificam-se. Em matéria de religião isto equivale a dizer que a religião se “igrejifica”, e ao invés de convencer acha mais cômodo impor uma rígida disciplina partidária. É a fase do Crê imperativo e absoluto, prenúncio de que o terreno está apto para o advento de uma religião nova.

Assistimos hoje ao belo fenômeno do choque de uma religião velha com uma religião nascente, em estado de nebulosa ainda, muito vaga e tateante, mas perfeitamente perceptível em suas linhas gerais. É o espiritismo.

Ninguém mais de boa fé, nem sequer a ciência positiva, nega as manifestações do que Crooks chama “força psíquica”. E como tudo leva a crer que essa força cresce na humanidade e cada dia que se passa mais amplia as suas manifestações, o homem volta-se para ela e inconscientemente a vai ordenando em religião.

Surgem “verdades”, cristalizam-se dogmas, uma moral viva e praticante vai-se codificando enquanto cresce prodigiosamente o número dos adeptos. Inutilmente a religião velha guerreia a nova, e de todos os seus baluartes lhe despeja em cima obuses anatematizantes. Inutilmente a ciência positiva, cansada de negar os fenômenos, resolve-se a estudá-los declarando de antemão que nada há sobrenatural nesse psiquismo.

A religião nova, em estado cósmico, segue o seu curso, indiferente à negação ou à análise. Já tem fanáticos, e terá mártires se a antagonista conseguir reacender suas fogueiras depuradoras.

Depois do espantoso abalo mental que sofreu o mundo com a guerra, e por influxo da formidável injeção de espíritos frescos com que a hecatombe enriqueceu o intermúndio astral, o espiritismo ganhou um avanço enorme.

Reflexo disso temos na imprensa. Todos os jornais abrem seções permanente às coisas do espiritismo, ao lado das seções consagradas à religião velha.

E os que o não fizeram ainda fá-lo-ão amanhã, por injunções da clientela. Editores surgem, especializados em livros espíritas — e prosperam grandemente, num país de editores ou falidos ou queixosos. Grandes nomes nas letras e nas ciências passam-se com estrondo para os novos arraiais. O espiritismo já não é um riacho. Tem tudo da onda que rola.

Para os sectários da religião anciã é isso um mal horrível. Para o filósofo não é bem nem mal. É apenas um fato. E um fato muito lógico do espírito humano.

Que é que determina o surto de uma religião? A aflição humana. A pobre humanidade sofredora — e sofre 99% da humanidade — para alívio dos seus males, apela para o céu. As formas desse apelo chamam-se religiões, e perduram enquanto funcionam como bálsamo minorador da humana angústia.

Quando deixam de o fazer, os sofredores, cheios de inquietação, agitam-se em procura de uma forma nova. E esta mata aquela.

Estamos em pleno período de entrechoque de duas formas de apelo ao incognoscível. Quanto tempo durará ele? Cem, duzentos anos? O futuro o dirá. O presente só diz que a luta está travada.

E que diz o passado, por meio de suas férreas lições? Diz que sempre vence a forma que “promete mais”. Ora, uma nos deu a imortalidade da alma, com o paraíso para a alma dos bons legalistas e o inferno para a oposição. A outra dá-nos o paraíso perto de nós; deixa-nos as almas dos entes queridos ao alcance do nosso espírito; podemos ouvi-las, receber seus conselhos, vê-las em certos casos. Não é isso o “mais” que vai decidir da vitória? Foi muito sabermos que as almas dos mortos não acabavam com o corpo; mas é muitíssimo tê-las à mão, consultáveis e manejáveis.

O homem não se conforma com a morte. Teima em não morrer. Aferra-se a todos os meios de sobrevivência, inclusive a imortalidade acadêmica. Mas já se não contenta com a imortalidade dogmática, sem prova provada. O espiritismo será a religião de amanhã porque “prova” a sobrevivência.

E tudo se precipita, no choque entre as duas religiões, para uma batalha de Waterloo, das decisivas. 

No fundo da Índia, eterno ninho de religiões, um messias vem sendo criado a preceito para o grande embate. Iniciou-o Annie Besant, essa mulher-força, talvez a que mais tem influenciado cérebros de quantas mulheres apareceram no mundo a partir de Eva.

Chama-se Krishnamurti, o eleito da luz nova, e seu campo de ação vai ser imenso; abrangerá desta vez todo o mundo budista e todo o mundo cristão.

A moral da religião nova, provisoriamente denominada espírita, participará das duas mais belas morais existentes, a de Buda e a de Jesus, ecletismo que a fará superior a ambas.

Quem viver verá... e verá um dia o Krishnamurtismo vitorioso esclerosar-se em igreja, e por sua vez morrer contrabatido por uma religião que ainda prometa mais — e só poderá ser a que prometa a supressão da morte.



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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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