
O bocejo de leoa

Em 1635 nasceu numa
prisão de França uma menina. Seu pai, mau tipo, duas vezes acusado de
espionagem, azedou a alma nos cárceres e por fim teve de emigrar para uma ilha
da América, onde morreu. A menina volta para a França com doze anos e começa a
sofrer os safanões da vida. Vai para a casa duma parenta longe, onde é tratada
com rigor extremo.
Querem domá-la, querem
torcer-lhe o pepino do caráter num certo rumo, para que não puxe ao patife do
pai.
Ela reage, e dizem que
sua juventude foi desgraçada, e que da formosa Ninon de l'Enclos recebeu a boa
lição da duplicidade da vida — vida “para a Moral ver”, em cima; vida solta
embaixo, bem secreta, bem oculta em boas casas de encontros clandestinos.
Aos dezesseis anos
surge-lhe um casamento ao qual se agarra como a um presente do céu. Chamava-se
Paul Scarron o noivo.
Era velho, cul-de-jatte, poeta e impotente. Mas a menina, já mestra
em cálculos, calculou certo ao aceitar a monstruosidade dessa ligação.
Libertava-se da tirania da parenta má, adquiria uma situação social e não se
comprometia a coisa nenhuma — nem sequer a ser mulher do seu marido.
Scarron vivia de versos
e esmolas. Tinha uma pensão da rainha-mãe, a título de “doente da rainha”. “O
meu cul-de-jatte”, dizia ela, como hoje
dizem certas donas de casa: “o meu pobre”. A uma destas senhoras ouvi falar
para outra, recém mudada para a sua vizinhança:
— Não te incomodes com
fornecedores. Vou mandar-te o meu padeiro, o meu açougueiro, o meu fruteiro e
até te mando o meu pobre, que é um pobre limpo, decente, sem doença feia e
muito bonzinho.
Scarron morreu quando
sua “mulher de ver com os olhos” entrava nos vinte e cinco anos, e deixou-a na
miséria. Francisca — demos-lhe o nome — requereu ao intendente da rainha-mãe
que lhe mantivesse a pensão do esposo. Esse intendente era italiano, cardeal e
marido oculto da rainha; além disso, um forreta de marca. Recusou em nome da
patroa.
“Está doente Francisca?
Não. Como quer então suceder ao marido no cargo de doente da rainha? Adoeça e
volte”, devia ter sido despachado.
E a viuvinha passou
miséria até que conseguiu do rei uma pensão de duas mil libras, arranjo que lhe
daria para passar como uma datilógrafa de hoje.
Adoradores, sedutores
rodeavam-na de todos os lados, mas o cálculo a defendia melhor que uma cintura
de castidade. O cálculo nesta situação é proceder a jeito que nada desfavorável
mareie a reputação de vestal, de modo a conservar-se a criatura desimpedida e
com os músculos bem trenados para o bote, para o grande bote que é o objetivo
final dos grandes calculistas.
Francisca, vira de cá,
vira de lá, consegue cair nas graças de Mme. de Montespan, amante oficial de Luís
XIV. Faz-se sua criatura de confiança. Torna-se-lhe indispensável. É quem, logo
ao nascerem, toma sob o manto os produtos da cruza do Rei-Sol com a outra e
foge a ocultá-los em Paris. Sete vezes procedeu assim, fazendo desaparecer de
Versalhes sete filhotes de rei. Em Paris organiza uma sábia criação desses
entes meio humanos, meio divinos — uma coelheira real, e escreve numerosas
cartas ao coelho envergonhado, dando conta dos progressos dos reais coelhinhos.
O rei, que a princípio não suportava a presença de Francisca d’Aubigné —
digamos-lhe mais um pedaço do nome — e censurava a Montespan por tê-la em casa,
interessa-se pelas cartas e as lê com agrado crescente. Fraco em cálculo, o rei
se enliçava no estilo do cálculo feito mulher, que era Francisca d’Aubigné. E
passa da curiosidade à amizade e da amizade ao amor e do amor ao desejo de
posse. Esquece, repudia, afasta a Montespan e estende os braços para a
Maintenon — que foi o nome com que entrou na história.
Enganou-se, porém. Pela
primeira vez uma mulher lhe resistia, e o Rei-Sol conheceu essa coisa romântica
que os franceses chamam languir.
O cálculo vencia. O
cálculo é o que é — e o que é o que é vence sempre. Resistir ao rei, coisa que
jamais ocorrera a nenhuma mulher de França, era o meio único de conquistar o
rei.
E o rei conquistado, já
viúvo por esse tempo, aceitou a imposição da calculista insigne:
— Ou casas comigo ou...
Esse ou apavorava o rei. Era um estado vago,
incerto; era o langor, espécie de febre do Texas que só não dá nos zebus; era
condenar-se a passar o resto da vida com o peso de uma derrota na consciência e
a sensação insuportável duma curiosidade não satisfeita em matéria de amor. Luís
XIV não teve ânimo para enfrentar o terrível, o misterioso ou, e contraiu com
Mme. de Maintenon um casamento secreto. Tinha ele quarenta e oito anos e Mme.
Cálculo, cinquenta e dois!
Estava a pobre menina,
filha do espião, transfeita em rainha de França e mais poderosa que nenhuma
mulher o foi jamais.
Deu-se por satisfeita?
Encontrou a felicidade? Não. Um trecho de carta revela o imenso tédio de sua alma:
“Se eu pudesse
comunicar-te a minha experiência, escrevia ela a uma amiga, e revelar-te o
tédio que devora os grandes, e o penoso que lhes é encher os dias... Não vês
que morro de tristeza, no apogeu de uma fortuna que excede aos maiores delírios
da imaginação? Fui jovem e bela; gozei todos os prazeres; fui amada. Na vida
madura passei os anos no comércio do espírito e alcancei o favor supremo; mas
juro-te, filha, que todas estas fases da vida me deixaram n’alma um vazio
horroroso!”
Que grito d’alma!
Sente-se que ao fazer essa confissão a maior calculista do século deu um pontapé
na matemática e abriu o seu coração blindado. A leoa traiu-se. Bocejou...
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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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