5/24/2019

Monteiro Lobato: O inimigo (Ensaio)



O inimigo


Muito se há dito contra a nossa república, mas para sermos justiceiros é mister não lhe neguemos os benefícios que trouxe. E trouxe-os, incontestavelmente. Há o estado de sítio permanente, há a dilapidação permanente, há o desastre da Central permanente, há o déficit permanente, há a seleção às avessas permanente. São erros, e só os erros dão na vista. Os acertos, esses permanecem ignorados. Gozamo-nos dos seus benefícios, esquecidos de exaltá-los e lançá-los num dos pratos da balança onde se pesam os crimes da república.

Entre esses acertos profundamente benéficos está o modo de proceder republicano em relação ao livro.

Como todo o mundo sabe, o livro é o causador de todas as desgraças que derrancam o homem moderno. Antes que Gutenberg inventasse o meio de pôr o livro ao alcance de toda a gente, a vida do homem no mundo era edênica.

Um rei em cima, uma corte em redor, plebe infinita embaixo e o carrasco de permeio. O rei queria, a corte dizia amém, a plebe executava. O carrasco mantinha a ordem da maneira mais eficiente, cortando a cabeça dos díscolos, enforcando-os ou assando-os vivos.

Mas veio o livro e toda esta bela organização desabou. Os homens deram de instruir-se, descreram do direito divino dos reis e dos sagrados privilégios da corte. O papa deixou de ser o dono das consciências e viu sua fogueira depuradora reduzida a tições extintos. O rei teve que submeter-se a delegações chamadas parlamentos e virou rei de baralho. A plebe folgou. Abriu os olhos e convenceu-se de que também era gente.

Isto foi bom para a plebe, porém péssimo para o papa, para o rei e para os valetes. Tivessem eles adivinhando as consequências da humilde invenção de Gutenberg e assá-lo-iam numa boa fogueira com todos os seus tipos de pau antes que a peste da cultura, que vai com os livros, se propagasse pelo mundo. Não se mostraram avisados, não acudiram a tempo e a consequência foi o que estamos vendo. O livro multiplicou-se e envenenou a humanidade com “a doença que abre os olhos”.

Aqui no Brasil começou essa doença a disseminar-se, como nefasta gripe, em virtude de termos por 50 anos um chefe de estado que sabia ler e era amigo dos livros. Esse mau homem favoreceu a propaganda da peste e acabou vitimado por ela: a república veio como consequência da difusão do livro entre nós.

A república, porém, logo que se pilhou instalada, reconheceu o perigo do livro e tratou de sufocá-lo. Como? Onerando de impostos proibitivos a matéria-prima do livro, o papel. Quis assim precaver-se, e mui sabiamente, contra a peste que matara a monarquia e podia também pô-la de catrâmbias. E o vai conseguindo. Há quase 40 anos que a república subsiste talvez graças à sábia taxação que mantém asfixiado o gérmen letal. Eis, pois, uma das benemerências da república que valem por contrapeso dos muitos males que nos trouxe.

Essa abençoada guerra ao livro, inteligentemente surda para que não dê na vista do espírito liberal (que é a desgraça dos povos), intensifica-se de ano para ano com muito bons resultados. Criam-se aumentos progressivos de impostos contra a odiosa matéria-prima, além de embaraços alfandegários que acabarão desanimando os seus petroleiros importadores. E neste andar chegaremos ao objetivo visado: tornar o livro só acessível aos ricos, gente comodista que não faz revoluções porque para eles tudo vai pelo melhor, no melhor dos mundos possíveis. No dia em que o livro for de vez arredado das mãos da plebe, a vitória republicana estará completa. Fica outra vez o rei em cima (tenha o nome que tiver), os valetes e damas em torno e a plebe embaixo, cavando a terra de sol a sol, sem caraminholas na cabeça, sem pensar em seus irrisórios direitos, reivindicações e outras bobagens.

No momento atual o papel para livro paga de direitos o “dobro do custo”. Já é alguma coisa, pois que já afasta o livro de três partes da população. A experiência, porém, demonstra que se um quarto do país ainda pode ler, continua o perigo. Cumpre ao Estado elevar o imposto ao triplo, e mesmo ao quíntuplo, se a triplicagem for insuficiente. Com um pouco mais de boa vontade lá chegaremos, para felicidade nossa.

Outra medida profilática muito sábia que o governo republicano tomou contra o livro foi a instituição dum protecionismo às avessas, de modo que a “indústria editora nacional não possa concorrer com a portuguesa”. Livro e papel impresso. Se o papel vem de fora em branco para ser impresso aqui paga, como dissemos, o “dobro do custo”; mas se já vem feito da Metrópole goza de “absoluta isenção de direitos”. Este protecionismo, instituído por D. Maria I quando mandou destruir os prelos do Brasil colônia, foi restaurado pelo governo republicano sob o hábil disfarce de favorecer o intercâmbio com a Metrópole, intercâmbio, está claro, que não existe nem pode existir.

Foi um golpe de mestre. A concorrência tornou-se impossível, porque não há concorrência possível quando o protecionismo intervém a favor de uma das partes.

Mas, dirão, tudo é livro, venha da Metrópole ou seja feito aqui na colônia. Logo a república não é de todo infensa ao livro.

Sim, mas os livros que nos vêm da Metrópole são livros estrangeiros, que não estudam as nossas coisas, que não gritam, que não petrolizam, que não esperneiam. Inócuos, portanto. Dum róseo cosmético de Júlio Dantas virá uma dose maior de gravatas ao caixeirinho da esquina — ideia nenhuma; mas dum livro indígena de Oliveira Viana ou José Oiticica podem vir ideias e isso, é o diabo.

Alta sabedoria, portanto, demonstra a colônia em manter a avisada lei de D. Maria I. Dos males o menor. Cosmético perfumado, sim. Ideias, nunca. É de cedo que se torcem os pepinos. Se a França tivesse queimado vivos os Elzevires e outros difundidos da peste gráfica, não andariam hoje as estantes cheias desse nefasto Anatole France, que sorri de Jeová, dos reis e dos valetes. País novo que somos é mister que tudo se faça para que jamais prolifere aqui a raça maldita dos que duvidam. E o meio é esse: taxar inda mais o livro, favorecer inda mais o protecionismo à indústria editora da Metrópole contra a sua rival da colônia.

Diz Antônio Torres que em Minas o povo inda não está convencido de que D. Maria I morreu. Supõe-na ainda no trono, velhinha, mas tesa.

Minas pensa muito bem, e a nossa felicidade está em sermos por ela governados.
Amém.



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In: Na Antevéspera
Pesquisa e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)

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