6/24/2019

Nem tudo o que luz... (Conto), de Brito Camacho



Nem tudo o que luz...
Subitamente, dominando o barulho das ruas próximas, produziu-se no pequenino jardim, onde brincavam crianças, um ruído formidável, qualquer coisa de semelhante ao estampido dum trovão seco.
Nenhum prédio desabou, não se partiram vidros, não se desenraizaram árvores, mas quem ouviu o estrondo, sem tempo para refletir, acreditou que alguma coisa ruíra, e tal houve que na alucinação do terror viu a terra fender-se em bocas escancaradas, de onde saíam labaredas.
Havia poucos dias que uma bomba, atirada para um café, tinha produzido umas poucas de vítimas, e a polícia já deitara a mão a perigosos bombistas, andando no encalço de outros por igual perigosos. Recrudescera a febre destruidora dos inimigos da sociedade, começando a formar-se o pânico na população.
Um polícia correu para o único mictório que havia no pequeno jardim, a apitar, e toda, a gente o foi seguindo, instintivamente, estacando quando ele parou, segurando pelas costas um galego, que nem tempo tivera para se compor, e fazia esforços desesperados para não sair em jeitos de ofender a moral.
— Está preso!
Houve uma dificuldade enorme para evitar que o povo linchasse o facínora, pois que, embora ali não houvesse o menor sinal de explosão, era certo para toda aquela gente, e era certíssimo para o polícia, que fora aquele galego quem atirara a bomba.
Quem havia de ser, senão aquele malvado?
Por ali não havia ninguém com ares e modos de bombista, não passara ninguém que suscitasse a suspeita de ser um terrível nivelador social.
Quem sabe?
Talvez aquele galego não fosse, como inculcava, um pobre diabo vindo da Galiza para aqui ganhar honradamente a sua vida, mas sim um legionário disfarçado, um autêntico anarquista já com prática de tais proezas.
Galego aquilo, sem corda nem saco...
A cólera subiu de ponto quando uma voz gritou que estava ali morta, em cima de um banco, uma pobre velhota, de aparência decente, vítima de um estilhaço, que lhe penetrara o ventre. Era verdade que a velhota estava morta, e era também verdade que a vitimara a explosão... de um aneurisma, conforme dissera um doutor que ia passando no momento em que ela expirava.
— Conheço, muito bem esta senhora. Era minha cliente e sofria de um aneurisma da aorta há uns quatro anos. Mora na rua de tal, nº tantos.
Poucas pessoas ouviram a explicação do médico, e dessas, umas impuseram-se o dever piedoso de não abandonar o cadáver, enquanto outros iam chamar um carro que conduzisse a velhota ao hospital ou à Morgue.
Para o grande número, para a multidão que se formara junto do urinol, fora sem a menor sombra de dúvida um estilhaço que matara a pobrezinha, e a respectiva bomba fora aquele talassa, em travesti de galego, que a pusera no mictório.
Um patriota, sócio do Club Sola e Vira, chegando em plena balbúrdia, e informado do que se passava, lançou a hipótese de ser aquele galego um talassa, levado à pratica de tão hediondo crime para comprometer a Republica.
Já se erguiam bengalas, já se abriam navalhas, já se engatilhavam pistolas, quando o galego, apercebendo-se do erro daquela gente, num rasgo de gênio, gritou que se afastassem, porque tinha ali outra bomba. Instintivamente o polícia largou-o, a multidão recuou, e ele então, erguendo as mãos acima da cabeça, contraindo a musculatura forte, bumba! — exatamente como havia instantes, sem que nenhum prédio desabasse, sem que algum vidro se partisse, sem que se desenraizassem arvores.
E foram todos concordes, mais vexados do que furiosos, em que nunca tinham ouvido uma coisa assim.

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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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