

A FUGA
Pelas estradas
barrentas, no meio dos rugidos do temporal desfeito, quando a ventania
disparava pelos campos em arranco de boiada, e, topando o capoão além,
constringia-o na medonha luta, ouvia-se, ao esmorecer das vozes do trovão, um
tilintar de correntes, cadenciado, rítmico, acompanhando o estrupido de passos
fortes.
O viandante
tresmalhado, ou o vaqueiro que se recolhia a desoras, ébrio, das delícias do
batuque, fugiria apavorado, julgando ver no som das correntes arrastadas a
penitência de alguma alma penada, — quem sabe se a do pobre Tristãozinho,
espancado há tempos, brutalmente, ali mesmo, à beira do rio, quando de volta da
casa de Paquinha, procurava desamarrar a canoa para a travessia?
O tilintar das
correntes, cadenciado, rítmico, fugia, a pouco e pouco, pela estrada afora,
abafado a espaços pelo glu-glu das enxurradas, que, sopitadas nos caldeirões do
caminho, estancavam, reunindo forças para se derramarem depois, impetuosas,
assoberbantes, pelos sulcos de carros de bois até ao longe, no grande rio.
Dois condenados da
Extração, escravos reúnos, confiscados a seus donos pela Real Fazenda,
aproveitando-se da tempestade, fugiam da rancharia junto de uma gupiara à beira
do córrego, onde eram obrigados a trabalhar para El-Rei, como galés, no serviço
da mineração de diamantes.
Percebida a fuga,
foi dado o alarme, pouco depois, ao som rouco de córneas buzinas, e a força de
dragões avançou confusamente, dando descargas para aqui, para acolá; mas recuou
logo, pela improficuidade da perseguição nessa noite tormentosa.
Os dois fugitivos
porfiavam por meter aos sabujos grande espaço em meio.
— Não aguento mais,
Isidoro!
— Agarra-te a meu
ombro e vamo-nos embora. Olha que os fulares não tardam.
— Valha-me, Senhora
da Abadia!
— Não esmoreças,
Bento. Estou-te desconhecendo. Não pareces o mesmo cabra que aquele dia tirou a
cisma do macho ruão, no terreiro da Cacimba.
— Dói-me tanto o
peito, que me responde cá nas costas. E que descarga danada! Os judeus me
meteram uns dois balázios aqui no braço e na perna. Foi Deus que não os deixou
acertar em lugar mortal.
Por cima de tudo, a
pontada, esse demônio de pontada perto da maminha, desta banda...
A marcha dos
fugitivos enfraquecia. Já não era o mesmo pisar forte, seguido do ranger dos
grilhões.
Abeiravam, então, o
Jequitinhonha, cuja presença era indicada pelo estalar das águas em plena
cheia. Ouviam já o som cavernoso do rio, rolando formidavelmente, no meio dos
ribombos causados pelas grandes árvores, arrancadas a custo pela fúria da
corrente, precipitando-se no abismo das águas com gritos despedaçados dos ramos
e raízes.
Dentro do camoão,
denunciando aos tredos caminhantes por um grau mais intenso de sombra, tomaram
fôlego, pávidos, baixando instintivamente a cabeça com a sensação da grande
massa negra, informe, que lhes pairava em cima. No pandemônio de sons e
movimentos que se adivinhavam no bojo da atra escuridade, pressentiam lutas
supremas de troncos contra os estirões da borrasca, inundações de ninhos,
dramas trágicos de animais silvestres mortos pela queda dos galhos e outros
arrastados pelas enxurradas; uivos entrecortados de onças abrigadas nas lapas
alcançadas pelas águas, junto aos filhos ainda aquecidos pelo calor materno;
berros de sucuris despertando do sono costumeiro com as notas vibrantes e
sonoras da tempestade.
Isidoro carregava
já seu companheiro, arcando ao peso, roncando de esforço a cada passo, incerto,
titubeante, no meio da estrada.
O vaqueano sentiu
perto o rio e, norteando-se ao clarear dos relâmpagos, entrou à esquerda, por
uma trilha de anta, que conduzia a uma grande rocha à beira d'água, seu
pesqueiro habitual em outros tempos.
Acocorou-se aí com
o pobre do companheiro, que nem falava mais. Suspirando longamente, quedou-se,
resignado, à espera da madrugada.
* * *
Serenou a tormenta.
E, já na meia
claridade da antemanhã, uma sensação súbita de frio principiou de invadir os
míseros. Era a grande massa d'água, farrusca, ameaçadora, que grimpava a pedra,
traiçoeiramente, como um jacaré que se arrasta, sutil e feroz, na algidez
repelente de sua pele escamosa, querendo pilhar a presa durante o sono. Espessa
camada de neblina cobria toda a superfície do rio, montando, da flor das águas,
pelas barranceiras acima, aos ramos mais altos do mato frondejante. O tope de
arvoredo rasgava no alto o denso véu cinzento, que se esfarrapava, prendendo
nas pontas da galhada longas flâmulas brancas, arfando serenamente às auras
matutinas.
Os tons roxos do
céu iam cedendo a uma coloração de ouro tenuíssima, que se acumulava ao longe,
na barra do horizonte, onde o rio num préstito triunfal de pequenas ondas
muralhosas, parecia perder-se no espaço ilimitado.
Longas fitas de
ouro e púrpura cairelavam o céu na comissura do rio, sobrepondo-se
paralelamente, até se afogarem no pélago de nimbos que refluía de onde se
arqueava o firmamento.
— Eh lá!
companheiro! Esperta e vamos embora, batendo mato pela beira do rio. Olha que
enchente! Vigia: se nós cochilamos mais um bocadinho, a água nos papava.
E, meio estarrecido
da longa quietação e do frio, Bento estremunhou distendendo os braços com
gritos de dor das feridas.
— Assim, com esse
inferno de corrente pesada, eu quase não me posso mexer — disse Bento, batendo
o queixo, apertando no corpo o timão de baeta já meio enxuto.
Isidoro lembrou-se,
então, da lima finíssima que lhe dera, há tempos, o Chico Júlio e de que se não
pudera servir na precipitação da fuga. Começou a cerrar vigorosamente o anel de
aço que roxeara o tornozelo do seu pobre companheiro. Depois, prendendo num
gancho de ferro pendente do cinturão de sola toda a corrente, que lhe subiu do
pé pela perna acima, exclamou:
— "Vamos
ganhar a estrada!" E, suspendendo o companheiro por baixo dos braços:
— Corpo duro! Nós
já desnorteamos os fulares, que andaram bestando pelo mato. A chuva apagou os
rastros, mas eles podem andar farejando por aí; eu deixo para limar minha
corrente na venda do Chico Júlio.
Iam começar a
marcha, quando estacaram de chofre, estremecendo, com o estrépito de um corpo
que caía pesadamente na água. Assuntaram algum tempo, mas ouviram logo outro
ruído igual e, não longe duas ou três capivaras que se precipitavam no rio,
assustadas com a presença de tais franduleiros nos seus domínios.
Tranquilizados,
partiram, numa farfalhada de folhas molhadas e de taquaras que se quebravam,
assustando as jaós, fazendo os nhambus ocultar as cabecinhas no meio das
folhas, levantando para o ar o uropígio coberto de frouxéis.
Queriam atravessar
o rio a nado, fora de porto frequentado, onde pudessem ser vistos, mas a
fraqueza de Bento, fê-los hesitar diante da impetuosidade da corrente.
Encontrado, alfim,
um espraiado, onde a enchente, sem a constrição de barrancos, podia pavonear
suas forças, avassalando pacificamente, sem tropeço, os descampados, os
fugitivos derribaram algumas piteiras, já meio secas, cujas hastes se erguiam,
ainda retas e altaneiras, das touças em redor, e, jungindo-as fortemente com
cipós em grossos travessões de taquaruçu, improvisaram uma jangada.
Isidoro encontrou,
arrancada pela ventania da véspera, uma folha de coqueiro, cujo talo lhe serviu
de remo.
— Encomenda a alma
a Deus e vamos embora. Tu não tens alguma oração contra enchente? Esta jangada
é muito leve e nos aguenta, mas não por muito tempo, porque a pita encharcando
afunda sob o peso. Segura bem, rapaz!
Cavalgaram a
jangada e fizeram-se ao largo, demandando um portozinho na outra margem, muito
embaixo.
Bento acurvou o
busto, azindo fortemente a estiva.
Ao ganharem o fio
da corrente, a jangada foi fortemente impelida para baixo e Isidoro começou a
lutar a grandes remadas, para aproximar-se da margem oposta. Então jangada e
tripulantes se confundiram, se unificaram, semelhando, no movimento que se lhes
percebia, o dorso mosqueado de um surubi retouçando ao sabor da correnteza.
Quase não se lhe
notava a marcha, mas sentia-se que um esforço vivo e inteligente, terrível e
heroico, lutava contra a força esmagadora da natureza onipotente.
Conseguiram vingar
o portozinho, que era antes um bebedouro de animais.
Saindo d'água,
tiraram os chapéus de couro e puseram as mãos, levantando os olhos ao céu, em
profundo reconhecimento pela salvação; já não temiam os fulares, nem os tiros
de reúnas.
A jangada que
tinham abandonado lá foi, boiando sempre, topar uma grande árvore esgalhada,
flutuando também. Outros ramos se lhe foram juntar e mais uns restos de macegas
e garranchadas, que formaram um batel selvagem, todo franjado de espumas
pardas, no qual pousava às vezes um martim-pescador, soltando gritos
estridentes, numa alacridade de vitória e de fartura.
O sol iluminou,
ainda baixo e frio, o campo de batalha da véspera; beijou, reverente, numa
carícia de vassalo humilde, a face do rio, que pompeava seu poderio, ostentando
os despojos da liça com os bosques marginais e rolando sempre, no meio de um como
"ave! triunphator!" da natureza.
Do outro lado,
lobrigavam-se ainda, pequeninas, amesquinhadas, as figuras dos fugitivos.
Esses primeiros
raios do sol no levante, esbatendo suas cabeças, aquecendo seus corpos meio
entorpecidos e alquebrados de sofrimento e de fadiga, pareciam ter uma carícia
de amor e piedade para os miserandos, um resplendor de vitória para os
lutadores.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes
Iba Mendes Editor Digital. São Paulo, 2025.
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