7/02/2019

Fala (Conto), de Raul Brandão



Fala

Falo. De súbito a minha vida surgiu-me como um desses dias de inverno pardos e monótonos, em que até o resquício de sonho que acaso coube em sorte às pedras se concentra adormecido. Secou-me na boca o riso que ia rir, e acudiram-me ideias em que nunca tinha refletido... Alguém abala uma árvore até às suas últimas raízes. Arranca-a. O grito que a terra revolvida dá foi o meu grito.

Deem-me a vida que devem viver os seres e as coisas a quem ninguém ensina a vida; que bebem a largos sorvos a existência: em quem a vida corre desordenada e esplêndida. Quero enfim isto: ser; não fingir, mas ser; não viver da tua vida, mas da minha própria vida.

O momento em que tu deparas, a sós com a tua alma, que até aí não tinham encontrado, toca a loucura – mas depois ouves falar dentro de ti tudo que estava para sempre adormecido...

O que é isto – o escárnio? Donde vem isto ao mundo? Riem porventura as árvores? E os montes e os rios também riem? O escárnio torce o coração. Riram-se de mim! riram-se de mim!

Surraram-me, secaram-me. O que eu sei é aprendido, vão, construído de palavras que não são minhas. Nada conheço da vida.

O homem só é feliz quando é ele. Os outros é que o empurram para a desgraça. O homem precisa de se encontrar.

Entras na vida e modelam-te; mestres, amigos, livros, amassam-te e modelam-te. Para quê? Para te fazerem feliz – dizem. Deixem-me ser desgraçado à minha vontade!...

Qualquer árvore incha, cresce e por tal forma se liga à terra, pelas suas raízes, que a esfuranca como nem o ferro do arado a lavra. Só na minha vida não há raízes. Amigos não os tenho nem os quero, e tudo me parece pardo e inútil.

Ainda a natureza me prende: fico horas a ver um charco e nunca me comovi como diante da árvore mais humilde.

A desgraça que eu tenho encontrado não é a desgraça, nem isto é a felicidade: quero tragar a vida amarga, misteriosa, profunda, toda a vida; quero o meu quinhão tal como o têm os misérrimos bichos, os montes ignorados e os pobres...

Ou vou morrer sem ter vivido.

Só em pequeno é que eu senti correr em mim a vida. Guardo ainda o cheiro à essência dos pinheiros mansos, que eu vi há muitos anos, o cheiro a bravio que o mato orvalhado tinha de manhã, e que me fazia cismar na vida feliz dos lobos e dos bichos, que respiram o ar livre e são; que dormem sem cuidados nas tocas ou nas sombras fofas; que matam sem remorsos.

O nosso quintal! No alto há um muro branco, uma cancela, uma moita de pinheiros sempre verdes e em diálogo com o mar.

A princípio lembra um labirinto, uma labareda verde. As couves são do tamanho de árvores e a água sussurra, mina por toda a parte, em carreirinhos, embebe à farta a terra negra e gorda. Bordam os canteiros renques de alfazema, cravos, roseiras de flor singela, e ao fundo há uma figueira grande, de folhas espalmadas e carnudas, que dá uma sombra subterrânea. Todo o quintal, esfurancado pela água, ressoa como um cortiço. Cintilações, rumores por toda a parte, por toda a parte a solidão.

Ali as árvores eram minhas amigas, as coisas conheciam-me e eu vivia duma vida convencida, forte, bravia...

Vieram depois as palavras, os mestres, os amigos, e eu nunca mais achei sabor à vida, até que acordei agora com este grito: Nunca vivi!...

Ponho-me a pensar: quantas vezes a felicidade e a desgraça não são verdadeiras, nem sentidas? Máscaras, só máscaras que afivelamos em determinadas ocasiões, porque os autores, os amigos, todo o trama complicado em que nos enredam, nos ensina: – Em tal situação tu serás feliz...

E nós, realmente, por hábito confessamos: Sou feliz...

Mas examina-te... No fundo qualquer coisa de amargo remexe...

Fugi. Isolei-me. Não quis amigos, quis isto: ser só. Para que chamam o Gabiru? Metido no último andar do prédio, ponho-me a escutar tudo que dentro em mim fala. Esqueci a realidade para conhecer a realidade. Deitei fora o que aprendera, combati comigo mesmo...

Agora vejo a desgraça! agora encontro a desgraça!...

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Pesquisa, transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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