Falo. De súbito a minha
vida surgiu-me como um desses dias de inverno pardos e monótonos, em que até o
resquício de sonho que acaso coube em sorte às pedras se concentra adormecido.
Secou-me na boca o riso que ia rir, e acudiram-me ideias em que nunca tinha refletido...
Alguém abala uma árvore até às suas últimas raízes. Arranca-a. O grito que a
terra revolvida dá foi o meu grito.
Deem-me a vida que devem
viver os seres e as coisas a quem ninguém ensina a vida; que bebem a largos
sorvos a existência: em quem a vida corre desordenada e esplêndida. Quero enfim
isto: ser; não fingir, mas ser; não viver da tua vida, mas da minha própria
vida.
O momento em que tu
deparas, a sós com a tua alma, que até aí não tinham encontrado, toca a loucura
– mas depois ouves falar dentro de ti tudo que estava para sempre adormecido...
O que é isto – o escárnio?
Donde vem isto ao mundo? Riem porventura as árvores? E os montes e os rios
também riem? O escárnio torce o coração. Riram-se de mim!
riram-se de mim!
Surraram-me, secaram-me. O
que eu sei é aprendido, vão, construído de palavras que não são minhas. Nada
conheço da vida.
O homem só é feliz quando é
ele. Os outros é que o empurram para a desgraça. O homem precisa de se
encontrar.
Entras na vida e
modelam-te; mestres, amigos, livros, amassam-te e modelam-te. Para quê? Para te
fazerem feliz – dizem. Deixem-me ser desgraçado à minha vontade!...
Qualquer árvore incha,
cresce e por tal forma se liga à terra, pelas suas raízes, que a esfuranca como
nem o ferro do arado a lavra. Só na minha vida não há raízes. Amigos não os
tenho nem os quero, e tudo me parece pardo e inútil.
Ainda a natureza me prende:
fico horas a ver um charco e nunca me comovi como diante da árvore mais
humilde.
A desgraça que eu tenho
encontrado não é a desgraça, nem isto é a felicidade: quero tragar a vida
amarga, misteriosa, profunda, toda a vida; quero o meu quinhão tal como o têm
os misérrimos bichos, os montes ignorados e os pobres...
Ou vou morrer sem ter
vivido.
Só em pequeno é que eu
senti correr em mim a vida. Guardo ainda o cheiro à essência dos pinheiros
mansos, que eu vi há muitos anos, o cheiro a bravio que o mato orvalhado tinha
de manhã, e que me fazia cismar na vida feliz dos lobos e dos bichos, que
respiram o ar livre e são; que dormem sem cuidados nas tocas ou nas sombras
fofas; que matam sem remorsos.
O nosso quintal! No alto há
um muro branco, uma cancela, uma moita de pinheiros sempre verdes e em diálogo
com o mar.
A princípio lembra um
labirinto, uma labareda verde. As couves são do tamanho de árvores e a água
sussurra, mina por toda a parte, em carreirinhos, embebe à farta a terra negra
e gorda. Bordam os canteiros renques de alfazema, cravos, roseiras de flor
singela, e ao fundo há uma figueira grande, de folhas espalmadas e carnudas,
que dá uma sombra subterrânea. Todo o quintal, esfurancado pela água, ressoa
como um cortiço. Cintilações, rumores por toda a parte, por toda a parte a
solidão.
Ali as árvores eram minhas
amigas, as coisas conheciam-me e eu vivia duma vida convencida, forte,
bravia...
Vieram depois as palavras,
os mestres, os amigos, e eu nunca mais achei sabor à vida, até que acordei
agora com este grito: Nunca vivi!...
Ponho-me a pensar:
quantas vezes a felicidade e a desgraça não são verdadeiras, nem sentidas?
Máscaras, só máscaras que afivelamos em determinadas ocasiões, porque os
autores, os amigos, todo o trama complicado em que nos enredam, nos ensina: –
Em tal situação tu serás feliz...
E nós, realmente, por
hábito confessamos: Sou feliz...
Mas examina-te... No fundo
qualquer coisa de amargo remexe...
Fugi. Isolei-me. Não quis
amigos, quis isto: ser só. Para que chamam o Gabiru? Metido no último andar
do prédio, ponho-me a escutar tudo que dentro em mim fala. Esqueci a realidade
para conhecer a realidade. Deitei fora o que aprendera, combati comigo mesmo...
Agora vejo a desgraça!
agora encontro a desgraça!...
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Pesquisa, transcrição e
adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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